sábado, 10 de novembro de 2018

RUDENESS' PRIDE?


Lá pela década de 1980, em uma das empresas onde trabalhei, fui colega de um senhor idoso, afável e muito simpático, tratado por todos como “Major”, sua última patente militar antes de ser reformado. Puxa-saco juramentado que sou, chamava-o de “Coronel”, patente adquirida automaticamente após a reforma.

Apesar da afabilidade e modos corteses, mantinha sobre sua mesa - a guisa de peso de papeis – um protótipo de sua autoria (segundo ele!) de uma granada de mão – na prática, um cilindro de ferro oxidado de uns doze centímetros de altura e sete de diâmetro, oco por dentro, todo ranhurado externamente e com tampa de rosca e pesado pra caramba. Buona gente, já se viu. Era da Arma de Cavalaria.

Segundo esse senhor, os militares da Cavalaria são normalmente mais abrutalhados, toscos e sem noção que os das outras Armas. Contou-me sobre um de patente mais graduada, que levantava a perna, peidava alto e dizia “Cavalaria!”.  Ao arrotar, fazia o mesmo. Devia ser a autêntica expressão do “Rudeness’ Pride”, do orgulho da própria grossura (ou rudeza). Segundo meu colega, uma característica comum naquela Arma.

Mas entrei nessa só para falar do orgulho que algumas pessoas aparentam ter da própria ignorância, pouco verniz civilizatório, falta de educação, ou como queiram chamar isso, porque o assunto de hoje é café, café gourmet.

Ganhamos de uma cunhada fodona e super conceituada três convites para um “Seminário Internacional do Café” que aconteceu em BH. Como sou viciado em café, lá fomos nós – eu, minha mulher e o filho mais novo. Antes, preciso de um parêntese: graças a duas noras e dois filhos metidos a entendedores de café, o produto que consumimos hoje em casa é “100% arábica” “torra média” e moído na hora, graças a um moedorzinho que minha mulher comprou pela internet. Uma das noras só bebe o café se tiver sido coado a não mais que quinze minutos. Apesar dessa frescura toda, o café fica bom mesmo. O problema é que os meninos ingerem uma bebida amarga (para mim, pelo menos), pois bebem aquela coisa sem açúcar nenhum. Fecha-se o parêntese.

Na Expominas, lugar onde aconteceu o seminário, encontravam-se dezenas de estandes de produtores, cada um – ou quase todos – oferecendo seu produto para degustação. E eu lá, encarando cada copinho que me estendiam. Mas tudo sem açúcar! Um dos expositores teve a coragem de vir com aquele papo de “acidez”, “sabor frutado” “complexo e encorpado”, como se estivesse falando de vinho francês.

Até tive vontade de comparar seu cafezinho com o famoso “Kopi Luwak”, o café cagado (produzido na Indonésia com grãos de café retirados das fezes de um bichinho chamado civeta e preço de mil dólares o quilo), mas estava com minha mulher ao lado e me segurei. Principalmente porque usaria a delicada expressão “café cagado”. Como eu queria dormir na minha cama, tive de me conter.

E aí é que eu queria chegar. Comecei a me sentir um bronco no meio daqueles "cafetões" (pessoas que vivem às custas do café, entendeu?), a sentir orgulho da minha própria ignorância "cafeeira" (talvez pudesse até dizer "cafe-feira"). Em que lugar da história ficaram os bebedores de café adoçado?

Até comentei com um ou dois expositores que estava me sentindo um muçulmano entre cristãos, pois o café que eu bebo diariamente leva açúcar (ou adoçante). Pude notar a expressão de horror em um deles, fazendo-me temer ser escorraçado da feira como herege e até a tomar um banho de água benta (fácil de acontecer, pois bastaria abençoar a chuva que caía sem parar). Para suavizar, contei a receita de café ensinada por meu falecido amigo Pintão.

Segundo ele, em um daqueles cafés do Rio de Janeiro do final do século XIX ou início do século XX, lia-se pintada na parede azulejada a seguinte frase, atribuída a um Barão de sei lá o quê, do tempo do império: "O café deve ser negro como a noite, quente como o inferno e doce como o amor". Nem esse lirismo todo abalou a rígida convicção  do cafetão.

A única coisa de positivo foi perceber que ao contar essas histórias eu estava exibindo um orgulho de gente inculta, incivilizada, o tal “Rudeness’ Pride”. Mesmo assim, fiquei irritado com essa frescura de café gourmet. Onde já se viu tomar café não adoçado? Meio contrariado, contabilizei mais esse fato na lista de comportamentos politicamente corretos que provocam em mim o desejo de mudar para outro planeta. A sorte é que ainda dá para rir um pouco desse tipo de coisa.

Hoje, ao contar para um conhecido a história do “muçulmano entre cristãos”, ele perguntou:
- Muçulmano não gosta de açúcar?
Não deu outra: fiquei feliz por constatar que a ignorância é um produto que nunca se extinguirá. Como diria um dos 2,3 leitores deste blog:
-Eita porra!

2 comentários:

  1. Cafetão foi uma boa sacada. No seu caso, lhe garanto, não é orgulho da própria ignorância, não; é orgulho da própria macheza. E que tal orgulho, nunca percamos, JB.
    Ficou um texto muito bom.

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    Respostas
    1. Não sou o autor da designação. Na mesma empresa da granada, um funcionário adolescente circulava pelas salas com um carrinho abastecido com café e pães. Meu chefe era um sujeito engraçadíssimo, quase no limite da loucura, capaz de criar os apelidos mais pegajosos possíveis. Um deles foi esse, destinado ao menino do café.

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