Em 1980, após o falecimento do marido, vítima
de câncer no pulmão, minha sogra precisou aprender a se virar sozinha, com a
ajuda de filhos, genros, noras e filhas. Até então, todas as atividades
externas eram feitas pelo marido, especialmente as compras mensais de
supermercado.
Ela não sabia o preço de nada nem como
escolher os produtos mais baratos nas gôndolas. Por isso, passou a comprar
quase tudo em uma pequena mercearia a meia quadra de distância de sua casa.
Teve a sorte de conquistar a simpatia do proprietário, que a ajudava nas
compras e nas contas.
Outra mudança digna de nota foi ter passado a
ir à missa todo domingo, o que não acontecia enquanto o marido era vivo. Ele
ia; ela, não. Viajou com a irmã para Aparecida do Norte e para Niterói, cidade
onde nasceu, onde pôde rever ou conhecer parentes ainda vivos.
Resumindo, livrou-se do uniforme de senhora
idosa e meio amarga que sempre usou e vestiu a roupa que a acompanhou até o fim
da vida: a de senhora bem-humorada e alegre, capaz até de concordar e fazer as maluquices
propostas pelos netos mais velhos.
Lembrei-me desse caso por perceber estar
passando por um processo semelhante. A perda – às vezes dificílima de suportar
e aceitar – está fazendo com que eu mude meu comportamento. Hoje, tão pouco
tempo depois de nossa separação, creio poder dizer que já não tenho o perfil de
ogro recluso que sempre divulguei aqui no blog.
Entre outras mudanças, passei a sentir
necessidade de sair de casa, conversar, abraçar, manter contato com pessoas
conhecidas. Já fiz até uma relação mental das casas que quero visitar. Uma delas,
por estranho que pareça, é a de minha irmã, a quem abracei durante o velório da
Eliany e a quem não via há pelo menos três anos.
Outra visita que pretendo fazer é a uma amiga
de juventude da minha Lily, que sofre de uma doença degenerativa há pelo menos
seis anos e que limitou seus movimentos, impedindo-a de sair de casa. Eu
deixava minha mulher na porta do prédio e voltava para buscá-la, nunca me
animando a entrar para vê-la.
Quero também reatar a amizade com quem um dia
me desentendi. Ainda no hospital, abracei meu cunhado com quem estava brigado
(pelo motivo que parece ser o mais comum em quase todas as famílias: herança,
partilha). Infelizmente, é tarde para voltar a conversar com meu irmão, que
sofre de algum tipo de demência, mas quero não ter mais arestas com ninguém.
E a mudança mais significativa está na
autoavaliação, pois percebo estar menos petulante, menos soberbo, menos
vaidoso, menos orgulhoso – mesmo que eu não confessasse isso nem a mim mesmo.
Eu gostava de falar mal de mim, mas me sentia o rei da cocada preta, um lord
inglês, com brilho intelectual quase igual ao de um Einstein. Hoje percebo que
mudei – e espero continuar mudando –, pois os valores que eu defendia e
aprovava deixaram de ser relevantes.
Não posso dizer que estou me transformando em
um monge trapista, despojado de tudo, mas o desapego aos bens materiais é real
e tem-me feito bem. Se perdi o que era mais importante na minha vida, que valor
ainda pode ter tudo aquilo que um dia valorizei?
Até a programação que fiz ao perceber que não
demoraria a ficar sozinho, sem Ela, já estou mudando. Cheguei a dizer a meus
filhos e filhas que guardaria um luto de um ano, mas depois arranjaria uma
namorada, por desejar sentir de novo o contato íntimo com a pele feminina. Esse
desejo tornou-se totalmente desimportante.
As cores vivas de tudo o que apreciava antes se
tornaram desbotadas, foscas, opacas e sem brilho. Hoje, a mim basta apenas
conversar e abraçar as pessoas que conheço. Creio que o ogro saiu
definitivamente de cena – e não sinto nenhuma falta dele.
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