segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

MUNDO LINEAR

Ele é jovem, negro, pobre e favelado. Em um país onde muitos acreditam não haver racismo, essa definição equivale a um carimbo de "exclusão social". Sempre o vejo perambulando por uma das avenidas que delimitam o bairro onde moro. Cabeça raspada, sempre sem camisa, trajando apenas calção e sandálias de borracha. Às vezes empurra um carrinho de supermercado onde carrega sucata metálica, papelão e outros materiais comercializáveis. Outras vezes traz na mão apenas uma garrafa pet ou bucha de pano embebida em algum solvente, que cheira compulsivamente. Não imagino o que come nem como dorme, só sei que é forte, mal encarado e me causa medo. Sei também que mora no início da avenida, próximo ao ribeirão Arrudas, em uma pequena favela que ficou esquecida quando urbanizaram o entorno do rio, definitivamente transformado em esgoto a céu depois de ser retificado e canalizado.


Hoje, parado no semáforo, novamente o vi em uma de suas idas e vindas pela avenida. Comecei a pensar sobre sua provável origem e sobre qual deve ser sua visão de mundo. Deve ser analfabeto, deve morar sozinho, não vota, não lê jornal, não sabe nomes de ruas, não torce para nenhum time de futebol, não dá notícia de nada, não tem empatia por ninguém. Foi aí que me ocorreu que, para ele, o mundo deve ser linear, unidimensional. O mundo que conhece não é redondo nem colorido nem alegre, é apenas uma serpente coberta de asfalto preto, resume-se apenas à avenida por anda diariamente, às vezes empurrando um carrinho de supermercado de que se apoderou, às vezes trazendo na mão uma pequena garrafa pet ou bucha de pano embebida em algum solvente, que cheira compulsivamente.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

ÁLBUM DE CASAMENTO - "VERSÃO DO DIRETOR"

MAKING OF

Os posts Álbum de Casamento" 1 e 2 já publicados no Blogson foram escritos a partir da consternação que senti ao tentar ajudar (inutilmente) uma pessoa próxima. Pouco tempo depois que eu e minha mulher nos casamos, aconteceu o casamento dessa amiga. O fotógrafo (Paulinho) foi o mesmo nas duas cerimônias. A diferença é que só nós mandamos fazer o álbum. Muitos anos depois esse casal separou-se e ela às vezes lamentava nunca terem se preocupado em fazer o álbum de casamento. Como sou fissurado em retratos antigos, eu e minha mulher resolvemos bancar os detetives, pois tínhamos o endereço antigo do fotógrafo. Encontrar as tais fotos pelas quais o ex-marido aparentemente nunca  manifestou muito interesse não era um desejo totalmente desinteressado, pois fomos padrinhos do casal. A história dessa busca está descrita na segunda parte do texto. 

Como fiquei realmente entristecido com o resultado da busca, resolvi criar uma conversa telefônica que introduzisse o assunto. E viajei na maionese. Imaginei uma cena ainda com algum rancor, uma pitada de chantagem emocional e melancolia, adequados a sentimentos ainda não de todo resolvidos. No texto inteiro, embora seja um diálogo, só se conhece a fala de quem recebeu o telefonema, um homem que se aproveita da ligação para dar alfinetadas chorosas e melodramáticas na ex-mulher (nada disso aconteceu na vida real. Aliás, quem pediu a separação foi o marido). Caso alguém se interesse, pode imaginar tudo o que não se ouviu. Foi assim que surgiu a primeira parte.

Para mim, o melhor trecho da segunda parte é justamente aquele "Adeus" fictício do final, sem ênfase, sem emoção. Relendo tudo agora, vejo que o texto (especialmente a primeira parte, da qual gostei mais no início) ficou menos que meia boca. Muito dramalhão mexicano e pouca literatura.

E antes que eu me esqueça, eu sempre utilizo expressões do tipo "making of" e "versão do diretor" a título de piada!. Sou presunçoso, mas não totalmente idiota.


PRIMEIRA PARTE

- Alôu!

- Alô! Quem está falando?

- Quem?

- Não acredito! Uma janela para o passado acabou de se abrir! Está tudo bem com você?

- Demorou, mas agora eu estou bem.

- Pois é... E o que te fez ligar para mim depois de tanto tempo?

- Ahn? Álbum de retratos?

- Você quer ver nosso "álbum de casamento"? Mas nós NÃO TEMOS UM ÁLBUM, NUNCA TIVEMOS! Aliás, foi você que nunca quis mandar fazer!

- Não estou brigando! Não tenho mais vontade nem energia para brigar com você.

- Eu sei, no início você queria escolher as fotos. Mas o tempo foi passando, você nunca tinha tempo, e as ilusões e os sonhos logo começaram a se desmanchar. E nós tínhamos tantos sonhos!

- Não estou te culpando de nada! Nós já brigamos tanto para saber quem estava com a razão! Pode acreditar, esses são momentos que eu não quero repetir.

- Não se preocupe, está tudo bem. Mas, voltando ao álbum, o que você pretendia fazer com ele depois de tanto tempo?

- Entendi. É engraçado..., hoje, mais do que antes, eu curto ver fotografias, imagens de pessoas queridas que já morreram, fotos de quando eu era criança... E é isso que você quer resgatar? Fotos de alguns momentos em que ainda acreditávamos em um futuro comum? É isso? E nós fizemos tantos planos!

- Não estou forçando barra nenhuma, estou dizendo o que sinto e me lembrando do que senti naquele dia. Toda aquela gente sorrindo para nós e nos cumprimentando... E você estava tão linda!

- Você está chorando? Não precisa desligar, não há motivo, não há mais motivo para isso! Desculpe-me o que eu disse. Eu me deixei levar pelas lembranças e acabei me emocionando também.  Não sei por que, me lembrei daquela música do Paulinho da Viola que você amava.

- É claro que você se lembra! Sinal Fechado! Lembrou agora?

- Você nunca se ligou que ela, sem que nos déssemos conta disso, prenunciava nossa vida?

- Como não? E essa frase "Tudo bem, eu vou indo correndo pegar meu lugar no futuro". Ou essa: "Me perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios". Você estava sempre com pressa, parecia pensar mais na sua profissão que no nosso casamento...  E nós éramos tão jovens!

- Eu sei que você queria se realizar profissionalmente, nunca fui contra isso. Só se fosse louco. O que eu sei é que...

- Espera, deixa eu completar! Aos poucos eu fui notando que, para você, nosso casamento tinha perdido o brilho, estava se dissolvendo.

- Foi culpa minha também! Acho que a última vez que eu te falei para fazermos o álbum - que já estava pago! - você torceu a boca sem perceber, fazendo uma cara de desconsolo ou descaso, como se dissesse -"agora talvez seja tarde!". E é esse álbum que você deseja ver agora?

- Eu sei, eu já tinha ciúmes antes, sempre fui inseguro! Mas a sua expressão me deixou mais inseguro ainda, mais ciumento.

- Bom, não quero tomar seu tempo com sentimentalismo, com esse tipo de lembranças. Se é isso o que você quer, vou procurar o Paulinho fotógrafo e pedir que ele faça nosso, ou melhor, seu álbum de casamento. Acho que ainda tenho o endereço dele. Te ligo assim que tiver notícia.


SEGUNDA PARTE

- Alô? Sou eu, claro! Já se esqueceu da minha voz?

- Demorei a ligar porque custei muito para achar o endereço dele. Mas as notícias não são boas.

- Calma, não há mais pressa. Eu fui até o endereço que eu tinha, mas encontrei um bar onde antes era o estúdio dele. Ele morava no fundo do imóvel. Perguntei ao dono do bar se ele sabia do Paulinho, se havia se mudado. Nem conhecia. Um freguês do bar me indicou uma casa próxima, e disse que a família dele ainda morava lá.

- Não, não o encontrei. Bati a campainha, veio uma senhora e eu perguntei pelo Paulinho. Ela me disse que era a viúva dele. Eu quase caí duro. Aí contei do álbum de casamento e perguntei onde estariam os negativos, já imaginando que teria de procurar uma agulha em palheiro, como no ditado. Mas ela deu o golpe final: contou que pouco tempo antes de morrer e já quase cego, o Paulinho colocou todos os negativos e fotos que tinha em um quartinho sem laje, nos fundos da casa. Em um dia de tempestade muito forte, os ventos arrancaram algumas telhas do quartinho e a chuva pesada que caia fez o resto.

- Pois é, eu também fiquei em choque. Perguntei se não tinha sobrado nada, mas ela disse que a maior parte tinha se estragado e, por isso, depois da morte dele, a família resolveu jogar tudo fora. Mas que traria o que conseguiram recuperar. Voltou com alguns negativos de outros casamentos, mas nenhum do nosso.

- Quer saber? Não sei se foi assim tão ruim. Veja bem, o que esse álbum significaria agora? Além de mostrar você tão linda, vestida de noiva, o que mais representaria? Seria um testemunho do nosso fracasso, dos nossos enganos, dos sonhos desfeitos, das ilusões perdidas? (Pô, isso ficou parecendo música de corno!).

- Não estou brincando, falo sério. Acho que a perda dos negativos do nosso álbum é um fecho definitivo para o que foi nosso casamento, concorda? É melhor que as lembranças sobrevivam apenas em nossas mentes. Assim, podemos escolher se ficamos com as melhores ou as piores. Com o passar do tempo, nem isso.

- Não precisa agradecer! Foi legal conversar outra vez com você, ouvir de novo sua voz. 

- Não, acho que não... Não temos mais nada a falar.

- Não se cola vidro quebrado, sabe? Ainda mais depois de tanto tempo...

- OK, outro para você. Cuide-se.

- Adeus.


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

NORTON ANTIVIRUS - "VERSÃO DO DIRETOR"

O Blogson tinha apenas quatro meses de vida quando resolvi postar um texto há muito abandonado, que era o embrião abortado de um livro que imaginei escrever. Para meu espanto, fez um sucesso danado (padrão Blogson, que fique bem claro). Depois dele divulguei a segunda e terceira parte (tinha de aproveitar, não é?). Pois bem, passado um tempo, resolvi juntar a primeira e terceira parte (a segunda era só de explicações) e mudei o título original. Como tenho obsessão por documentar tudo, resolvi guardar também essas explicações, para poder excluir os três posts originais.

O maior problema desses espicha-encolhes que invento é não saber mais onde está esse ou aquele texto, às vezes já no terceiro título, como é o caso agora. O título original era "Norton Antivirus", mudou para "O Sentido da Vida", "Há Sentido na Vida?" e terminou como "Ponto de Partida" (por ter sido o pontapé inicial para a criação do pretensiosíssimo Blogson Crusoe). 

Assim, para corrigir essa zona, resolvi fazer a "versão do diretor" do conto-crônica já publicado. Na verdade, será mais uma volta à versão original, um "back to basics", inclusive no título. Isso significa que ao texto ficcional junta-se agora o "making of" (rapaz, isto está muito pedante!). Bora lá.


MAKING OF - PARTE I

O texto deste post faz parte de meu projeto pessoal de registrar minhas lembranças – ou o que resta de minha memória – por mais ingênuas ou desinteressantes que possam ser. E o blog revelou-se ideal para isso. Mas, talvez fosse melhor deixar esses escritos em paz. Não por conterem alguma revelação íntima demais, mas por ser uma atitude presunçosa de minha parte imaginar que alguém possa ler e gostar do que leu.

Porque, ao contrário de todos os textos já divulgados no blog, este não é um comentário sobre uma situação qualquer nem é mais uma piadinha sem graça; é uma tentativa pretensiosa de escrever algum tipo de ficção. Mas este blog bem que poderia ter também como lema a frase "O blog da presunção exacerbada". Isso, porque tenho um certo carinho pelo texto, mesmo que seu objetivo original tenha resultado no mais absoluto fracasso. Essa afeição tem razões que só serão entendidas lendo-se a segunda parte deste “making of” (eita!). Espero que se divirtam (ou me critiquem) um pouco.

Neste ponto, entrava o texto inicial do livro (que acabou virando crônica).


PARTE II (“CORTA!!!”)

O tal livro foi interrompido na segunda página (!). Não tive mais paciência de continuar, principalmente depois de ter lido em um livro de psicologia que, à medida que as pessoas envelhecem, passam a querer perpetuar-se através de textos e coisas semelhantes. E eu, que me achava único, singular, descobri que tenho reações como as demais pessoas. Um sujeito mediano – assim como a maioria – ou medíocre, segundo meu colega Pintão.

E escrever muito é um trabalho árduo, pois você tem que se preocupar com a gramática, com a trama da história, tem que ficar ligado no “continuísmo” (igual nas novelas) para não se contradizer e, principalmente, tem de ter imaginação.

Para tentar minimizar essas dificuldades, o texto digitado naquela época foi imaginado como uma costura ou colagem de lembranças, não só pessoais como de todos os que convivem ou conviveram comigo. Não pretendia ser, portanto, um texto autobiográfico – nem deveria. Melhor seria defini-lo como “multibiográfico”. Acabou saindo um texto cheio de aspas, parênteses e indecisões. Ou seja, foi só um passatempo (pretensioso, diga-se) de fôlego muito curto.

Na época, até escrevi uma pequena introdução ao “livro”, quase uma “mea culpa” pelo potencial (e bastante provável) desastre literário que se prenunciava. E, antes que alguém pergunte, já vou explicando o motivo do nome esdrúxulo desse texto. Eu ainda não estava aposentado quando pensei na linha mestra de um livro que imaginava conseguir escrever. Comecei então a batucar a introdução no computador da empresa. Para não chamar atenção, salvei o arquivo com o nome de “Norton Antivírus”. Assim, se alguém usasse o computador na minha ausência, talvez não se interessasse em ler um informativo sobre um programa antivírus. Grande início! 

E aí vai a tal introdução – ou “mea culpa”:

Não sei quando surgiu o desejo de escrever um livro, mas existe há um bom tempo. No mínimo, uns dez anos. Também não está claro o motivo de querer fazer isso.  Penso que o ato de escrever implica em um desejo de aprovação, em uma vontade de ser elogiado, valorizado ou coisa assim, principalmente quando nos sentimos menosprezados, ignorados ou, até mesmo, vilipendiados.

Há ainda um componente “genético”, familiar, pois segundo meu pai (que também gostava de escrever seus textos), um de seus irmãos escrevia de forma magnífica, mas, até onde sei, nada ficou guardado pelos parentes, pois queimou tudo antes de morrer.

Finalmente, há aquele impulso criador que os verdadeiros escritores possuem, resultando em romances, contos, biografias, crônicas e toda sorte de expressão escrita. No meu caso, isso não se aplica, pois não tenho inspiração nenhuma. Fazer o quê?

Bom, o livro não saiu, mas não faz mal contar o que imaginei para ele. É a história de um sujeito de cinquenta a sessenta anos (“melhor idade” é a puta que pariu!), solitário, que se angustia com a aproximação da morte ou, pelo menos, com as incertezas que chegam com a velhice. Esse sentimento do personagem é o mesmo que começou a dominar minha mente depois de fazer cinquenta anos.


PARTE III

(O terceiro post trazia o final imaginado para o tal livro).
E aqui vai um “onde está Wally?” da inspiração, um verdadeiro Who’s Who "literário":

– solidão e afastamento dos filhos, marcas de cigarro e de copo na mesa e roupas espalhadas: um cunhado (na época) recém-separado;

– nome do personagem: irmão do meu avô materno;

– máquina Remington comprada em leilão e aparas de jornal: meu pai;

– mala de couro e quarto sem guarda-roupas: meu avô (ele se separou de minha avó, mas continuou morando na mesma casa, só que em um quarto no fundo do quintal – exceto quando ia visitar a segunda família que tinha);

– prateleiras feitas com tábuas sem acabamento e caixas de papelão (na verdade, embrulhos) cheias de papéis antigos e alguns livros: quarto onde eu e meu irmão dormíamos;

– escrivaninha antiga: nosso quarto.

Já viu que costurar essa confusão não seria uma tarefa muito fácil, não é? Curiosamente, há pouco tempo, comecei a escrever minhas lembranças das famílias de meu pai e minha mãe, citadas em anotação na parte final do texto. Também escrevi um pouco sobre minha infância e adolescência. Até parece uma ação instintiva para continuar o tal livro. O problema é tornar impessoais lembranças tão particulares. Seria necessário mudar nomes, datas, etc.

A mesma coisa precisaria ser feita com as conversas porventura existentes. Para dar verossimilhança aos diálogos, eu pretendia usar e-mails trocados com filhos, colegas e amigos. Imagina o trabalhão de despersonalizar essas conversas. Além do mais, a maioria desses diálogos se perdeu depois que me aposentei.

Outra coisa que pesou é a percepção de que, nesta história, a realidade seria muito mais interessante que a ficção, uma ficção meio esquizofrênica, meio Frankenstein.

 Resumindo, até que a linha mestra estava nítida. Foda seria o trabalhão dos diabos para “fazer a coisa acontecer”. Isso sem falar – fato não mencionado até agora – que o final (já imaginado) seria melancólico e oposto às novelas brasileiras, onde tudo acaba bem. Não esse final. Até porque o protagonista era um perdedor.

Voltando aos dias de hoje, depois de mudanças sucessivas de título, de exclusões dos posts originais, substituídos por outros que já nem sei onde encontrar, a solução mais sensata era juntar tudo no mesmo balaio e manter o título original, acrescido a título de piada da expressão “Versão do Diretor" e republicar. Se alguém leu até aqui, pode acreditar, seu fígado processa até ácido sulfúrico. E agora, o maravilhoso, magnífico, monumental, legalático texto (que os 2,3 leitores do blog já conhecem). Fui.



NORTON ANTIVIRUS

 Quem chega à porta do quarto, pouca coisa tem para olhar. Imediatamente à direita, logo após a ombreira da porta, algumas prateleiras feitas com tábuas sem acabamento vergam-se sob o peso de caixas de papelão cheias de papéis antigos e alguns livros. Encostada na parede à direita, no canto, encontra-se uma cama de solteiro, desarrumada.

Ao fundo, um banco de madeira suporta uma mala de couro cru, decorada com desenhos feitos a ferro quente, onde são guardadas as peças de vestuário, já que o quarto não tem armário embutido nem guarda-roupa.

À esquerda, debaixo da janela, vê-se uma velha escrivaninha e, sobre ela, roupas sujas misturam-se descuidadamente com jornais antigos, algumas frutas, uma sacola com pães e uma máquina de escrever. A máquina é uma Remington cor de ouro-velho e foi comprada anos atrás em um leilão. Uma cadeira com o assento estofado já gasto e desbotado – sempre usada como cabide de calças – completa a mobília do quarto.

Tudo ali é velho ou ordinário. O tampo de madeira da escrivaninha ostenta várias marcas circulares desbotadas, causadas por copos cheios de água que ali coloca antes de deitar-se. As bordas são escuras e queimadas pelos cigarros que acendeu e se esqueceu de pegar, no tempo em que ainda fumava.

O quarto onde passa a maior parte do tempo é alugado e fica nos fundos de uma casa velha, transformada em pensão. O acesso a ele é feito através de um corredor na lateral, o que lhe confere alguma independência e privacidade.

Na carteira de identidade consta o nome de Odorêncio, dado em homenagem a um tio-avô que nunca viu. Tem sessenta anos presumíveis. Os cabelos já escassos estão quase totalmente brancos. A barriga flácida e volumosa teima em derramar-se sobre o cinto.

Como vem acontecendo há tempos, sente-se infeliz e irritado com a vida que leva. Não tem amigos com quem conversar – “não tenho amigos, tenho apenas conhecidos”.

Depois que se separou, praticamente perdeu o contato com os filhos, que não o procuram nunca, exceto para pedir algum dinheiro. Dos parentes próximos – poucos – também não dá notícia.

Como está aposentado, quando não está lendo, escreve coisas que depois joga no lixo, numa rotina tediosa e um pouco angustiante.

Cumprindo uma espécie de ritual diário, Odorêncio aproxima-se da escrivaninha, tira um pé de meia preta de cima da máquina e, com zelo e interesse, usa-o como espanador para limpar os farelos de pão espalhados no tampo da mesa. Concluída a limpeza, senta-se na cadeira, retira de uma das gavetas um pacote de aparas de papel de jornal, cortadas em tamanho “ofício”. Pega uma das folhas e coloca-a cuidadosamente na máquina. Junta as duas extremidades para ver se estão bem alinhadas e se dá por satisfeito.

Existirmos: a que será que se destina?” Quando criança, eu era um menino cheio de inseguranças variadas. Adolescendo, comecei a não ter certeza de nada, verdadeiro espelho do Raul Seixas ("prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo").
À medida que fui envelhecendo, foi aumentando mais e mais minha perplexidade sobre essa coisa incompreensível chamada Vida, de tal forma que hoje eu me sinto totalmente solidário com quem pronunciou essa pérola: "‘só sei que nada sei”.

– “Início mais lixo que esse, impossível”, pensou, enquanto retirava e amassava a folha. Pegou nova folha, repetiu o ritual e começou:

Qual é o sentido da vida? Deve haver um sentido para a vida! Não é possível que os seres vivos tenham surgido por conta de um capricho de moléculas de carbono delinquentes e desocupadas! Não consigo entender que uma pessoa, um animal ou mesmo uma bactéria sejam apenas sistemas fechados, programados para reproduzir-se e movido por impulsos eletroquímicos. Para que? É tão imbecil pensar assim! Por outro lado...

Sentiu-se ridículo escrevendo sobre coisas que sabia não ter condições de explicar ou entender. Invejou as grandes mentes da humanidade (– “eu temo o poder e admiro o conhecimento, mas a única coisa que eu respeito de verdade é a inteligência”, gostava de dizer para os antigos colegas de trabalho).

Arranca a folha, amassa-a e joga no chão. Pega outra folha, coloca na máquina e recomeça:

Sinto-me como se fosse o resultado de um projeto ambicioso que não deu certo, seja por defeito de concepção, seja por erro de dimensionamento, talvez pela má qualidade dos materiais empregados ou por falhas no processo produtivo ou, até mesmo, por vícios de utilização.

Divertiu-se com a ideia e prosseguiu:

Não sei por que algumas pessoas dão-se bem na vida, constituem família, divertem-se e enriquecem, enquanto outras caminham justamente na direção oposta. Não se trata aqui de reinventar a psicologia ou outra ciência do comportamento, apenas de constatar uma realidade estranha e desigual. Qual é o sentido disso, qual a lógica obscura disso tudo? Afinal, qual é o sentido da vida? Não sei o sentido da vida e talvez trocasse a minha própria pela resposta a essa pergunta.

Por alguns instantes ficou imóvel, sem saber como continuar. Irritou-se pela falta de imaginação, pela incapacidade de verbalizar os pensamentos confusos que giravam em sua mente. Ia tirar de novo o papel da máquina, quando lhe ocorreu uma ideia que pareceu interessante:

– Vou escrever sobre minha vida. Talvez, ao resgatar todas as lembranças, isso me ajude a compreender o sentido da vida. Se não da Vida, metafisicamente falando, pelo menos da minha.

Acreditando que finalmente tinha imaginado algo que o faria preencher as longas horas ociosas, deixou-se ficar pensativo. Não tinha ilusões sobre a qualidade literária do que iria produzir, mas intimamente, tinha a convicção de que todo romance, toda obra de ficção tem sempre alguma coisa de autobiográfico.

Os dois indicadores usados para datilografar começam a bater nas teclas:

- Nasci em uma família...

As lembranças, as conversas, as impressões e as mágoas foram pouco a pouco preenchendo aquelas folhas, empilhadas cuidadosamente em uma caixa de camisa social que tinha guardado. Nada escapou de ser registrado, mesmo os casos mais fúteis, mesmo as conversas mais tolas. Ainda no início, olhando a papelada que se avolumava, pensou em voz alta, não sem uma ponta de ironia:

– Minha história e minha vida estão nesta caixa!

Entretanto, à medida que o texto e as lembranças se aproximavam do momento em que se encontrava, Odorêncio ia ficando mais e mais inquieto e irritado. Já tinha até comprado outra resma de papel, já tinha trocado a fita da máquina. E o que seria uma forma de passar o tempo havia se transformado aos poucos em obsessão. E aquela agitação só aumentava. Afinal, mesmo depois de passar em revista toda a sua vida, Odorêncio continuava no mesmo ponto onde tinha começado. Exasperado, exclamou quase gritado:

– Qual é a porra do sentido da minha vida?

Nesse instante, começou a sentir um mal estar, um pouco de enjoo. – "Será que é aquela carne de porco que eu comi? Talvez fosse bom tomar um bicarbonato...", pensou. Sentou-se na cama e passou a mão na testa. Percebeu que estava suando frio. Sem entender o que estava acontecendo, tentou se levantar. Uma dor intensa que começava no peito e que se irradiava para o braço esquerdo – como se uma mão invisível estivesse esmagando seu coração – o impediu. Meio tonto e com dificuldade para respirar, pensou em chamar alguém, em pedir ajuda.

* * *

Duas mulheres de aparência cansada e lenço amarrado na cabeça limpam o quarto. Enquanto a mais nova varre o cômodo e recolhe o lixo espalhado, a outra tira o lençol da cama e faz uma trouxa com a roupa suja.

– O velho era bem porco. Olha essa mesa como tá suja!

– Ah, homem é assim mesmo, tudo igual. Ainda mais se mora sozinho...

– Os filhos estiveram aqui mais cedo e pegaram uns documentos, livros, dinheiro...

– Disseram que é pra dar as roupas e os sapatos pra algum asilo.

– A mala também?

– Sei não.

– Ó, tem uma papelada danada dentro desta caixa. Tá tudo escrito. Que é que vai fazer com isso?

– Eles falaram que é papel à toa, sem importância, que pode jogar tudo fora.



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

POESIA, DE QUE ME SERVE?

Alguém pode pensar que estou sem assunto para um post original. Na verdade, estou mesmo. Mas, como disse no post anterior, estava atrás de poesias para ler na internet, pois atualmente só leio livros que me emprestam ou ganho de presente. E tenho preferido biografias e livros que abordam a Realidade (muitas vezes mais louca que a mais delirante das ficções).

Por isso, talvez ninguém saiba que considero a Poesia uma inutilidade absolutamente necessária, capaz de tornar a Vida melhor e de suscitar "uaus!", wows!", "epas!", "issas!" e outras interjeições de espanto e admiração provocadas pela capacidade de síntese que os poetas - esses neurocirurgiões da literatura -, conseguem atingir, compactando emoções e belas imagens em apenas meia dúzia de versos. Como nesses dois poemas que pincei da internet.  Fica só uma dúvida (dúvida real, de ignorante): no poema do Bandeira a expressão original seria mesmo "tábua rasa"? Ou o certo seria "tábula rasa"? Olhaí.


VELHA CHÁCARA
A casa era por aqui…
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.
Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinquenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida… nos desenganos…)
A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa…
- Mas o menino ainda existe.
(Manuel Bandeira)


ESCÁRNIO PERFUMADO
Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D’uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas – isso dói, me aflige…

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme…
(Cruz e Souza)


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

DEUSES, TÚMULOS E SÁBIOS - A REVANCHE

Em 25 de dezembro de 1967 eu e meu irmão demos a nosso pai um livro que ele adorou. Como o próprio título indicava, o assunto era arqueologia. Eu também adorei o livro, ao ponto de lê-lo duas vezes. Uns dois anos antes de meu pai morrer, ganhei dele esse livro, todo assinalado por ele e com anotações nas laterais das páginas. É um livro divertidíssimo, cheio de histórias da “aurora da arqueologia”.

Logo no início do Blogson, transcrevi um trecho que trazia a descrição exata do dilúvio bíblico, só que muito mais antiga que o texto do Gênesis e encontrada em tabuinhas de argila da velhíssima Suméria. Muito bem.

Ontem, estava pentelhando pela internet à procura de alguma poesia para ler e, eventualmente, postar no blog, quando me lembrei de uma estrofe de quatro versos que tinha lido no livro de arqueologia. Resolvi então desencavar essa quadrinha para divulgar no blog, com a convicção de que a Poesia é uma inutilidade absolutamente necessária, essencial até mesmo para um cientista. Há ainda o fato de que provavelmente ninguém a conhece, principalmente por ter sido escrita por um figuraça, arqueólogo alemão do século XIX(!). Como a página onde estão esses versos traz algumas informações divertidas sobre esse sujeito, resolvi escanear tudo. Olhaí.


Robert Koldewey nasceu em Blankenburg, Alemanha, em 1855. Estudou arquitetura, arqueologia e história da arte em Berlim, Munique e Viena. Antes de completar trinta anos fez escavações em Assos e na ilha de Lesbos. Em 1887 escavou em Babilônia, em Surgul e EI-Hibba, mais tarde na Síria, no Sul da Itália e na Sicília, e, em 1894, outra vez na Síria.
Dos quarenta aos quarenta e três anos lecionou numa escola de arquitetura de Görlitz (uma época que ele não gostava de recordar), depois, em 1898, com quarenta e três anos, iniciou escavações em BabeI.
Koldewey era um homem estranho, e, principalmente na opinião dos seus colegas, um cientista estranho: O seu amor à arqueologia, geralmente tratada de maneira absolutamente seca nas publicações especializadas, não lhe turvava a vista para a apreciação da terra e dos povos, para o encanto do ambiente e para as mil e uma alegrias cotidianas, nem esgotou nunca a fonte de seu humor, que trasbordava exuberantemente de tudo o que escrevia.
Existem poesias do arqueólogo Koldewey, rimas nascidas de pura alegria de viver, aforismos que nos dão, com um piscar de olho, uma dúbia sabedoria. Não foi o estudante Koldewey e sim o professor de cinquenta e seis anos, mundialmente famoso, que produziu esta saudação de Ano Bom:

Dúbios são os caminhos do fado,
Ignorada a estrela do porvir.
Antes de deitar para dormir,
Um conhaque bebo de bom grado.

E há inumeráveis cartas suas, cuja nonchalante vivacidade folhetinística os ultra-sérios sábios normais olham não só com desconfiança, mas consideram indigna de um cientista.
            Assim escreve ele a propósito de uma viagem pela Itália: "Afora a escavação nada mais ocorre atualmente em Selinunte, mas noutro tempo o diabo andou à solta por estas bandas, e pode-se imaginar por quê: até onde a vista podia alcançar, a planície ondulante da costa era coberta pelos frutos da terra, pomares e vinhas, e tudo pertencia aos gregos de Selinunte, que desde alguns séculos gozavam dessa prosperidade em pai e harmonia. Isso durou até ao ano de 409, quando, em consequência de uma disputa com os habitantes de Segesta, os cartagineses vieram sobre eles e Aníbal Gisgon assaltou os muros dos aterrados selinuntenses com aríetes - o que foi tanto mais vil quanto ;inda há pouco os selinuntenses tinham sido aliados dos cartagineses. Mas Aníbal derrubou os muros negligenciados e, após nove dias de terríveis combates dentro da cidade, nos quais as mulheres tomaram parte muito ativa, jaziam 16.000 mortos nas ruas. Os bárbaros cartagineses entregaram-se então ao roubo e ao saque, sem respeitarem sagrado nem profano, ornando os cinturões de mãos decepadas e outras coisas horripilantes. Os selinuntenses nunca se refizeram desta derrota. Daí que hoje em dia os coelhos atravessem livremente as ruas de Selinunte com tanta frequência, e daí que, de vez em quando, ao jantar, nós pudéssemos comer um coelho, morto pelo Sr. Gioffré e que já estava assado e pronto quando, à noite, acabávamos de banhar o corpo cansado das escavações nas ondas ruidosas do mar eternamente inquieto"
Escreve sobre "a terra das óperas e dos tenores": "Está subentendido que todo o mundo tem voz, e um homem que mostre a mais leve dificuldade em dar um dó de peito é considerado um aleijado". - Depois,nas próximas linhas, entra muito seriamente na construção do templo,no século V A. C. - até que o espetáculo dos gendarmes italianos o faz pilheriar: “... vendo-os assim de casaca profusamente agaloada e imponente tricorne, dir-se-iam almirantes a cavalo. Assim cavalgam eles pelas estradas desertas, mantendo a ordem".(...)
O templo de Himera induziu-o a escrever a seguinte carta: "Mas que é feito da poderosa Himera!... Embaixo, bem junto à estrada de ferro, erguem-se os restos miseráveis do suntuoso templo, algumas de cujas colunas assentam no interior de um curral de vacas moderno. Um curral de vacas, nada mais nada menos! E as vacas esfregam-se nas caneluras e comportam-se em geral como não é próprio comportar-se num templo antigo. A única coisa que se pode fazer diante de tal procedimento é deplorar o templo e invejar as vacas. Pois quanto não dariam muitos arqueólogos alemães para poderem pernoitar num templo antigo!"




segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

FUTUROS AMANTES - CHICO BUARQUE

Segundo o Nelson Motta, essa é a música mais bonita que o Chico já compôs. Sem me preocupar em classificá-la com tanto rigor, o que sei é que é linda demais. Salve, Chico!



domingo, 18 de fevereiro de 2018

DESFADO - PEDRO DA SILVA MARTINS

Há uma situação curiosa e meio paradoxal que acontece na interface do blog com seus escassos leitores (“interface”, mesmo que inapropriado, ficou muito chique!). Percebe-se o paradoxo na leitura dos comentários já feitos pelas pessoas que se dispuseram a isso. Esses leitores (raríssimos!) demonstram ser muito mais cultos, bem informados e inteligentes que o blogueiro que catilografa este texto introdutório.

E é real a maior cultura e inteligência dos leitores, pois falam de coisas que desconheço, possuem um vocabulário rico e culto, enquanto eu não passo de um caipira que finge exibir conhecimento, que tem um verniz cultural tão ralo que descasca ao menor contato. Isso faz com que eu me sinta quase como um bicho de zoológico, um orangotango, um chimpanzé, um mono, que ao ver os manos em frente à sua jaula, pensa: “que é que esses caras viram em mim?

E este monólogo monótono, monocórdio, quase monomaníaco, é apenas introdução a um belíssimo poema postado no blog à guisa de comentário, por um(a) leitor(a) que se identifica apenas por "J".

Como sou mesmo um ignorante incorrigível, daquele tipo que só lê os livros que ganha de presente, daquele que só ouve músicas, bandas e cantores que estão dentro de sua zona de conforto (não confundir com bordel de luxo), nunca tinha ouvido falar da fadista portuguesa Ana Moura, intérprete da canção "Desfado", cuja letra serviu de comentário aqui no Blogson.

Como não curto fado, continuarei na minha zona de conforto. Por isso, apenas transcreverei a letra, lindíssima. Seu autor é Pedro da Silva Martins, compositor, letrista e guitarrista português. Em 2013 venceu o Prêmio "Melhor Canção do Ano" de 2012 com o tema "Desfado", escrito para o disco homônimo de Ana Moura, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores. A mesma canção ganhou em maio de 2013 o Globo de Ouro para "Melhor Canção". "Sente" só a beleza:


Quer o destino que eu não creia no destino
E o meu fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo bem sem sequer o ter sentido
Senti-lo como ninguém, mas não ter sentido algum

Ai que tristeza, esta minha alegria
Ai que alegria, esta tão grande tristeza
Esperar que um dia eu não espere mais um dia
Por aquele que nunca vem e que aqui esteve presente

Ai que saudade
Que eu tenho de ter saudade
Saudades de ter alguém
Que aqui está e não existe
Sentir-me triste
Só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem
Só por eu andar tão triste

Ai se eu pudesse não cantar "ai se eu pudesse"
E lamentasse não ter mais nenhum lamento
Talvez ouvisse no silêncio que fizesse
Uma voz que fosse minha cantar alguém cá dentro

Ai que desgraça esta sorte que me assiste
Ai mas que sorte eu viver tão desgraçada
Na incerteza que nada mais certo existe
Além da grande certeza de não estar certa de nada


terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

CRIATIVIDADE É ISSO!

As coisas mais legais que acontecem (e acontecem aos montes) durante o festejos momescos são produto da ironia, do bom humor e da criatividade. Fantasias bizarras, distintivos hilariantes, o escambau. Um exemplo disso são os nomes escolhidos para batizar alguns dos blocos de rua que ressuscitaram o Carnaval de BH. Para mim, o mais engraçado e criativo é "Trema na Linguiça", trocadilho genial em cima da reforma ortográfica que aboliu os dois pontinhos na horizontal (antes o nome do bloco era "Não Trema na Linguiça"). Há também o "Volta Belchior", criado depois do sumiço do cantor e por aí vai.

Mas, ontem, eu rolei de rir ao ver no Facebook um post tão bem sacado que "fui obrigado" a copiar para divulgar aqui no Blogson. Nem todo mundo aprovou, pois cinco pessoas odiaram, vinte e oito apenas "curtiram" e vinte uma "riram" ("hahaha").

Inconveniente para alguns, politicamente incorreto para outros, mas genial na criação. E não estou falando da fantasia usada na imagem irreverente. O que me matou mesmo de rir foi a frase que um gênio anônimo criou em cima da fotografia. Imbatível no humor e na ironia sacana. Olhaí.


domingo, 11 de fevereiro de 2018

EPITÁCIO

Cheguei à conclusão de que um blog é um parente próximo dos tamagotchi, bichinhos virtuais semi-extintos que precisavam ser alimentados para não "morrer". Assim é o Blogson. Sinto que se não alimentá-lo com com alguma frequência, acabará morrendo de inanição. E como os posts que ele abriga quase não tem sustança, a morte pode acontecer mais rápido. Por isso, resolvi fazer uma sopa de chuchu só para enganar a fome.

Depois de certa idade (frase clichê), a coisa mais normal é conversar sobre morte, doenças e perdas, especialmente em velórios, lugar ideal para exibir saúde e pujança - ou decrepitude - para os amigos e parentes de idade aproximada à sua. Fala-se de tudo: remédios, tratamentos, sintomas e dores, tanto próprias quanto de conhecidos em comum. Contam-se piadas, fala-se em voz alta (a perda auditiva é a responsável por isso), uma zona, enfim. Isso aconteceu agora, há poucos dias, no velório do irmão de minha mulher.

Já se aproximando a hora do sepultamento, um primo de minha mulher perguntou a idade de meu cunhado. “Setenta e dois”, respondi. Nova pergunta: “E você, quantos anos tem?” Como não tenho o costume ridículo (para mim!) de pintar os cabelos nem o hábito ou desejo de falsear ou esconder minha idade, respondi: “Sessenta e sete, por quê?

- “É engraçado, conheço uns dez casos recentes de pessoas que morreram na faixa dos setenta”, respondeu ele.

Esse primo é alguns anos mais moço que eu, por isso brinquei que ele estava falando aquilo só para me agradar, pois ainda tenho três anos para me esbaldar. E como ele também já se aposentou, resolvi sacanear:

- “Você deveria ter se aposentado mais tarde! Segundo uma estatística americana, a pessoa vive em média só mais doze anos após parar de trabalhar”. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro (segundo clichê!), pois resolvemos fazer as contas. E ficou assim: aposentei-me em 2009, prestes a completar cinquenta e nove anos. 2009 mais 12 é igual a 2021, ano em que farei setenta e um!

Resumindo, mesmo querendo mandar essas estatísticas à puta que o pariu, não posso deixar de reconhecer que “estou na tábua da beirada” (hoje estou bom em clichês!). E foi assim que fiquei tentando imaginar um epitáfio legal para mim. Para não ficar muito dramático, vou chamá-lo amistosamente de epitácio. E creio que o epitácio que mais combinaria comigo (embora patético) seria este:

- “Seu sonho era ser amado por todas as pessoas do mundo”.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

FALSIDADE IDEOLÓGICA

Em pleno sábado de Carnaval, alguém resolveu fazer uma denúncia muito séria (nem todo mundo gosta da esbórnia momesca!). Acabei de ver agora uma faixa esticada entre dois postes com esta frase:

CARNAVAL SEM LULA É FRAUDE!

Estupefato com a gravidade da denúncia, pensei comigo:
Sacanagem, nem no Carnaval a Polícia Federal pode descansar... Mais uma investigação!

Entretanto, depois de meditar uns três segundos sobre isso, cheguei à conclusão que se trata de notícia falsa, fake news. É só (mais uma) falsidade ideológica.


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

À SOMBRA DA PAINEIRA

Como já disse antes, este ano, para mim, para a família de minha mulher, para nossa família, a Quarta-Feira de Cinzas aconteceu antes do Carnaval, pois foi exatamente na semana anterior ao Carnaval que o Taco, meu cunhado, padrinho, compadre, amigo e irmão foi sepultado.

Talvez por ter escrito um texto sob o impacto da tragédia acontecida com seu irmão "Canário", morto em acidente na "Rodovia da Morte", estava pensando em escrever alguma coisa sobre o Taco, mas fiquei relutante, sem saber o que falar, o que dizer sobre o abalo que senti com sua morte. Ontem (quarta-feira), quando ainda conversávamos perto da sepultura onde meu cunhado acabara de ser enterrado, bem ao lado de uma paineira ali plantada, um primo de minha mulher fez o seguinte comentário:
- Por que você não escreve um texto sobre o Taco com o título “À sombra da paineira”?

Desconversei, pois ainda estava inseguro sobre se iria ou não escrever alguma coisa sobre essa perda. Mas fiquei com aquele título na cabeça. E me lembrei de que exatamente no Carnaval do ano passado bateu a vontade de registrar um caso divertido que aconteceu na casa desse cunhado, em uma das muitas festas, encontros ou reuniões que fazia com e para os parentes e os amigos de seus filhos. Como bem disse um dos meninos, os amigos dos filhos acabavam tornando-se seus amigos também, pois gostava de beber cerveja e comer tira-gostos em casa, cercado de pessoas amigas a quem recebia alegremente.

E o caso que registrei e agora reproduzo é o seguinte: um dia, não sei a propósito de que, fomos a uma festa em sua casa, Nessa época eu ainda bebia cerveja (super moderadamente). Papo vai, papo vem, o assunto “cachaça” surgiu na roda. O Taco, vaidoso como quem deseja exibir o filhinho prodígio para as visitas, comentou que tinha (tem) um armário só com marcas famosas, que tinha ganhado durante suas muitas viagens pelo interior do estado.

Comentei ter lido uma matéria sobre o fabricante da mais famosa e mais cara cachaça do país, a “Havana”, que, depois de um processo ligado ao registro da marca por outra pessoa, mudou o rótulo para “Anísio Santiago”, justamente o nome do fabricante. Ainda tive oportunidade de exibir meus “vastos” conhecimentos, contando o preço cobrado por garrafa, uns R$200,00, na época (hoje, parece que custa mais de quatrocentas pratas), mas fui interrompido por ele:
- Eu tenho! Quatro “Havana” e duas “Anísio Santiago”!

Puxa-saco profissional que sou, louvei seu “tesouro”, comentando que gostaria de, um dia, provar um pouquinho de uma delas.
- “Vou trazer para você experimentar”. E saiu da mesa, voltando com um copinho pouco maior que um dedal de costura, que me entregou, dizendo:
- “Prova esta maravilha”!

Enquanto me observava com um sorriso de ansiedade no rosto, levei o copinho ao nariz, comentando que precisava antes sentir o perfume da “bebida dos deuses”. Depois de cheirar, fazendo toda dramatização possível, emiti o veredito:
- Tem cheiro de cachaça...
- “Não enche o saco, prova logo”!

Mesmo que tenha tomado alguma cachaça na juventude, fazia séculos que não passava nem perto da marvada”. Tomei um golinho, esperando uma epifania gustativa, mas aquela coisa desceu rasgando e queimando minha garganta, exatamente como sentia na juventude.
- Não me leve a mal, mas essa Havana tem gosto de cachaça!

Entre ofendido e irritado, Tacão tomou de minhas mãos o “dedal”, exclamando:
- “Ah, dá aqui, você não entende nada de cachaça”!

Assim era o Taco. Ou Tacão, ou Taquinho, ou “Véio”. Estopim super curto, turrão, temperamental, mas com um coração gigantesco. E solidário. Todos os pepinos mais sérios que surgiam, olha ele lá disponível. Aliás, não só ele, pois tinha sempre ao lado a Neymar (ou Ney ou Neyzinha), formando uma dupla imbatível nos quesitos disponibilidade e solidariedade.

Passional e emotivo, às vezes ficava bravo e exaltado no trânsito (creio que não só no trânsito), mas era um chorão da melhor qualidade. Lembro-me de muitas vezes ganhar seu abraço por algum motivo qualquer e ouvir dele um “Gosto demais d’ocês”, bem mineiro, com os olhos úmidos.


Graças às inúmeras viagens profissionais que fez por todo o estado, tinha muitos casos saborosos e divertidos para contar, provavelmente um pouco mais temperados que a realidade. Como esquecer a vez em que contou ter chegado à noite, varado de fome, em um lugarejo tão ermo, tão isolado, que só possuía um botequim ainda aberto, onde não havia nada para comprar, exceto uma esquecida lata de salsicha começando a estufar? Que foi o que ele e o motorista comeram! Algumas vezes sugeri que registrasse essas histórias amalucadas e bizarras, e lamento que não tenha feito isso.


Mesmo sabendo terem gasto mais de trinta minutos para reanimá-lo, mesmo depois de vê-lo na cama do CTI todo plugado em mil aparelhos, tive a esperança de que se recuperasse, que usasse a parte não atingida de seu cérebro privilegiado - por menor que fosse essa parte intacta -, para recuperar a consciência, pois parecia estar ali apenas dormindo. Em vão. Depois, já no velório, tinha uma expressão tranquila no rosto e o que me pareceu um discreto sorriso, como se estivesse sonhando um sonho bom com os netinhos. Sinceramente, tive vontade de dizer para ele: “Acorda, filhadaputa, levanta daí!” (e agora me pego chorando ao escrever esta bobagem).

Uma coisa me consola: desde o instante em que se sentiu mal, generosamente nos concedeu três dias para que fossemos aos poucos nos acostumando com sua ausência, uma falta tão gigantesca que quase dá para pegar nas mãos. Pois, apesar de aparentar ser cascudo e espinhento como tronco de paineira, por dentro lembrava mais a paina que recheava os travesseiros de antigamente: acolhedor, amistoso e solidário. Como quando, na juventude, ao descobrir que as irmãs estavam fumando, em vez de recriminá-las como outros fariam, disse que gostaria que elas fumassem perto dele, sem medo. Um gentleman, sem dúvida.


Não sei mais o que dizer. Minha garganta está queimando um pouco. Tentei lembrar mais alguns casos para homenagear um excelente filho, irmão, esposo, pai, avô, colega, amigo, mas não consegui, pois nesse garimpo de lembranças só encontrei tristeza e saudade na bateia da memória. Agora, toda vez que eu olhar para uma paineira, já sei que irei me lembrar de um homem bom e digno a quem tive a honra e a sorte de conhecer e de ter como cunhado, padrinho, compadre e amigo, meu caríssimo irmão Taco - que repousa agora à sombra de uma paineira.


MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4