quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
MUNDO LINEAR
Ele é jovem, negro, pobre e favelado. Em um país onde muitos acreditam não haver racismo, essa definição equivale a um carimbo de "exclusão social". Sempre o vejo
perambulando por uma das avenidas que delimitam o bairro onde moro. Cabeça raspada, sempre sem
camisa, trajando apenas calção e sandálias de borracha. Às vezes empurra um
carrinho de supermercado onde carrega sucata metálica, papelão e outros
materiais comercializáveis. Outras vezes traz na mão apenas uma garrafa pet ou
bucha de pano embebida em algum solvente, que cheira compulsivamente. Não
imagino o que come nem como dorme, só sei que é forte, mal encarado e me causa
medo. Sei também que mora no início da avenida, próximo ao ribeirão Arrudas, em
uma pequena favela que ficou esquecida quando urbanizaram o entorno do rio,
definitivamente transformado em esgoto a céu depois de ser retificado e canalizado.
Hoje, parado no semáforo, novamente o vi em
uma de suas idas e vindas pela avenida. Comecei a pensar sobre sua provável origem
e sobre qual deve ser sua visão de mundo. Deve ser analfabeto, deve morar sozinho, não vota, não lê jornal,
não sabe nomes de ruas, não torce para nenhum time de futebol, não dá notícia de nada, não tem empatia
por ninguém. Foi aí que me ocorreu que, para ele, o mundo deve ser linear, unidimensional. O mundo que conhece não é redondo nem colorido nem alegre, é apenas uma
serpente coberta de asfalto preto, resume-se apenas à avenida por anda
diariamente, às vezes empurrando um carrinho de supermercado de que se apoderou, às vezes trazendo
na mão uma pequena garrafa pet ou bucha de pano embebida em algum
solvente, que cheira compulsivamente.
domingo, 25 de fevereiro de 2018
ÁLBUM DE CASAMENTO - "VERSÃO DO DIRETOR"
MAKING OF
Os posts Álbum de Casamento" 1 e 2 já publicados no Blogson foram escritos a partir da consternação que senti ao tentar ajudar (inutilmente) uma pessoa próxima. Pouco tempo depois que eu e minha mulher nos casamos, aconteceu o casamento dessa amiga. O fotógrafo (Paulinho) foi o mesmo nas duas cerimônias. A diferença é que só nós mandamos fazer o álbum. Muitos anos depois esse casal separou-se e ela às vezes lamentava nunca terem se preocupado em fazer o álbum de casamento. Como sou fissurado em retratos antigos, eu e minha mulher resolvemos bancar os detetives, pois tínhamos o endereço antigo do fotógrafo. Encontrar as tais fotos pelas quais o ex-marido aparentemente nunca manifestou muito interesse não era um desejo totalmente desinteressado, pois fomos padrinhos do casal. A história dessa busca está descrita na segunda parte do texto.
Como fiquei realmente entristecido com o resultado da busca, resolvi criar uma conversa telefônica que introduzisse o assunto. E viajei na maionese. Imaginei uma cena ainda com algum rancor, uma pitada de chantagem emocional e melancolia, adequados a sentimentos ainda não de todo resolvidos. No texto inteiro, embora seja um diálogo, só se conhece a fala de quem recebeu o telefonema, um homem que se aproveita da ligação para dar alfinetadas chorosas e melodramáticas na ex-mulher (nada disso aconteceu na vida real. Aliás, quem pediu a separação foi o marido). Caso alguém se interesse, pode imaginar tudo o que não se ouviu. Foi assim que surgiu a primeira parte.
Para mim, o melhor trecho da segunda parte é justamente aquele "Adeus" fictício do final, sem ênfase, sem emoção. Relendo tudo agora, vejo que o texto (especialmente a primeira parte, da qual gostei mais no início) ficou menos que meia boca. Muito dramalhão mexicano e pouca literatura.
E antes que eu me esqueça, eu sempre utilizo expressões do tipo "making of" e "versão do diretor" a título de piada!. Sou presunçoso, mas não totalmente idiota.
Como fiquei realmente entristecido com o resultado da busca, resolvi criar uma conversa telefônica que introduzisse o assunto. E viajei na maionese. Imaginei uma cena ainda com algum rancor, uma pitada de chantagem emocional e melancolia, adequados a sentimentos ainda não de todo resolvidos. No texto inteiro, embora seja um diálogo, só se conhece a fala de quem recebeu o telefonema, um homem que se aproveita da ligação para dar alfinetadas chorosas e melodramáticas na ex-mulher (nada disso aconteceu na vida real. Aliás, quem pediu a separação foi o marido). Caso alguém se interesse, pode imaginar tudo o que não se ouviu. Foi assim que surgiu a primeira parte.
Para mim, o melhor trecho da segunda parte é justamente aquele "Adeus" fictício do final, sem ênfase, sem emoção. Relendo tudo agora, vejo que o texto (especialmente a primeira parte, da qual gostei mais no início) ficou menos que meia boca. Muito dramalhão mexicano e pouca literatura.
E antes que eu me esqueça, eu sempre utilizo expressões do tipo "making of" e "versão do diretor" a título de piada!. Sou presunçoso, mas não totalmente idiota.
PRIMEIRA PARTE
- Alôu!
- Alô! Quem está falando?
- Quem?
- Não acredito! Uma janela para o passado
acabou de se abrir! Está tudo bem com você?
- Demorou, mas agora eu estou bem.
- Pois é... E o que te fez ligar para mim
depois de tanto tempo?
- Ahn? Álbum de retratos?
- Você quer ver nosso "álbum de
casamento"? Mas nós NÃO TEMOS UM ÁLBUM, NUNCA TIVEMOS! Aliás, foi você
que nunca quis mandar fazer!
- Não estou brigando! Não tenho mais vontade
nem energia para brigar com você.
- Eu sei, no início você queria escolher as
fotos. Mas o tempo foi passando, você nunca tinha tempo, e as ilusões e os
sonhos logo começaram a se desmanchar. E nós tínhamos tantos sonhos!
- Não estou te culpando de nada! Nós já
brigamos tanto para saber quem estava com a razão! Pode acreditar, esses são
momentos que eu não quero repetir.
- Não se preocupe, está tudo bem. Mas,
voltando ao álbum, o que você pretendia fazer com ele depois de tanto tempo?
- Entendi. É engraçado..., hoje, mais do que
antes, eu curto ver fotografias, imagens de pessoas queridas que já morreram,
fotos de quando eu era criança... E é isso que você quer resgatar? Fotos de
alguns momentos em que ainda acreditávamos em um futuro comum? É isso? E nós
fizemos tantos planos!
- Não estou forçando barra nenhuma, estou
dizendo o que sinto e me lembrando do que senti naquele dia. Toda aquela gente
sorrindo para nós e nos cumprimentando... E você estava tão linda!
- Você está chorando? Não precisa desligar,
não há motivo, não há mais motivo para isso! Desculpe-me o que eu disse. Eu me
deixei levar pelas lembranças e acabei me emocionando também. Não sei por
que, me lembrei daquela música do Paulinho da Viola que você amava.
- É claro que você se lembra! Sinal
Fechado! Lembrou agora?
- Você nunca se ligou que ela, sem que nos
déssemos conta disso, prenunciava nossa vida?
- Como não? E essa frase "Tudo bem,
eu vou indo correndo pegar meu lugar no futuro". Ou
essa: "Me perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios". Você
estava sempre com pressa, parecia pensar mais na sua profissão que no nosso
casamento... E nós éramos tão jovens!
- Eu sei que você queria se realizar
profissionalmente, nunca fui contra isso. Só se fosse louco. O que eu sei é
que...
- Espera, deixa eu completar! Aos poucos eu
fui notando que, para você, nosso casamento tinha perdido o brilho, estava se
dissolvendo.
- Foi culpa minha também! Acho que a última
vez que eu te falei para fazermos o álbum - que já estava pago! -
você torceu a boca sem perceber, fazendo uma cara de desconsolo ou descaso,
como se dissesse -"agora talvez seja tarde!". E é esse
álbum que você deseja ver agora?
- Eu sei, eu já tinha ciúmes antes, sempre
fui inseguro! Mas a sua expressão me deixou mais inseguro ainda, mais
ciumento.
- Bom, não quero tomar seu tempo com
sentimentalismo, com esse tipo de lembranças. Se é isso o que você quer, vou
procurar o Paulinho fotógrafo e pedir que ele faça nosso, ou melhor, seu álbum de
casamento. Acho que ainda tenho o endereço dele. Te ligo assim que tiver
notícia.
SEGUNDA PARTE
- Alô? Sou eu, claro! Já se esqueceu da minha
voz?
- Demorei a ligar porque custei muito para
achar o endereço dele. Mas as notícias não são boas.
- Calma, não há mais pressa. Eu fui até o
endereço que eu tinha, mas encontrei um bar onde antes era o estúdio dele. Ele
morava no fundo do imóvel. Perguntei ao dono do bar se ele sabia do Paulinho,
se havia se mudado. Nem conhecia. Um freguês do bar me indicou uma casa
próxima, e disse que a família dele ainda morava lá.
- Não, não o encontrei. Bati a campainha,
veio uma senhora e eu perguntei pelo Paulinho. Ela me disse que era a viúva
dele. Eu quase caí duro. Aí contei do álbum de casamento e perguntei onde
estariam os negativos, já imaginando que teria de procurar uma agulha em palheiro,
como no ditado. Mas ela deu o golpe final: contou que pouco tempo antes de
morrer e já quase cego, o Paulinho colocou todos os negativos e fotos que tinha
em um quartinho sem laje, nos fundos da casa. Em um dia de tempestade muito
forte, os ventos arrancaram algumas telhas do quartinho e a chuva pesada que
caia fez o resto.
- Pois é, eu também fiquei em choque.
Perguntei se não tinha sobrado nada, mas ela disse que a maior parte tinha se
estragado e, por isso, depois da morte dele, a família resolveu jogar tudo
fora. Mas que traria o que conseguiram recuperar. Voltou com alguns negativos
de outros casamentos, mas nenhum do nosso.
- Quer saber? Não sei se foi assim tão ruim.
Veja bem, o que esse álbum significaria agora? Além de mostrar você tão linda,
vestida de noiva, o que mais representaria? Seria um testemunho do nosso
fracasso, dos nossos enganos, dos sonhos desfeitos, das ilusões perdidas? (Pô,
isso ficou parecendo música de corno!).
- Não estou brincando, falo sério. Acho que a
perda dos negativos do nosso álbum é um fecho definitivo para o que foi nosso
casamento, concorda? É melhor que as lembranças sobrevivam apenas em nossas
mentes. Assim, podemos escolher se ficamos com as melhores ou as piores. Com o
passar do tempo, nem isso.
- Não precisa agradecer! Foi legal conversar
outra vez com você, ouvir de novo sua voz.
- Não, acho que não... Não temos mais nada a
falar.
- Não se cola vidro quebrado, sabe? Ainda
mais depois de tanto tempo...
- OK, outro para você. Cuide-se.
- Adeus.
sábado, 24 de fevereiro de 2018
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018
NORTON ANTIVIRUS - "VERSÃO DO DIRETOR"
O
Blogson tinha apenas quatro meses de vida quando resolvi postar um texto há
muito abandonado, que era o embrião abortado de um livro que imaginei escrever.
Para meu espanto, fez um sucesso danado (padrão Blogson, que fique bem claro).
Depois dele divulguei a segunda e terceira parte (tinha de aproveitar, não é?).
Pois bem, passado um tempo, resolvi juntar a primeira e terceira parte (a
segunda era só de explicações) e mudei o título original. Como tenho obsessão
por documentar tudo, resolvi guardar também essas explicações, para poder
excluir os três posts originais.
O maior problema desses espicha-encolhes que invento é não saber mais onde está esse ou aquele texto, às vezes já no terceiro título, como é o caso agora. O título original era "Norton Antivirus", mudou para "O Sentido da Vida", "Há Sentido na Vida?" e terminou como "Ponto de Partida" (por ter sido o pontapé inicial para a criação do pretensiosíssimo Blogson Crusoe).
Assim,
para corrigir essa zona, resolvi fazer a "versão do diretor" do conto-crônica já publicado. Na
verdade, será mais uma volta à versão original, um "back to basics", inclusive no
título. Isso significa que ao texto ficcional junta-se agora o "making of" (rapaz, isto está
muito pedante!). Bora lá.
MAKING OF - PARTE I
O texto deste post faz parte de meu
projeto pessoal de registrar minhas lembranças – ou o que resta de
minha memória – por mais ingênuas ou desinteressantes que possam ser.
E o blog revelou-se ideal para isso. Mas, talvez fosse melhor deixar esses
escritos em paz. Não por conterem alguma revelação íntima demais, mas por ser
uma atitude presunçosa de minha parte imaginar que alguém possa ler e gostar do
que leu.
Porque, ao contrário de todos os
textos já divulgados no blog, este não é um comentário sobre uma situação
qualquer nem é mais uma piadinha sem graça; é uma tentativa pretensiosa de
escrever algum tipo de ficção. Mas este blog bem que poderia ter também como
lema a frase "O blog da presunção exacerbada". Isso, porque tenho um
certo carinho pelo texto, mesmo que seu objetivo original tenha resultado no
mais absoluto fracasso. Essa afeição tem razões que só serão entendidas
lendo-se a segunda parte deste “making of” (eita!). Espero que se divirtam (ou
me critiquem) um pouco.
Neste ponto, entrava o texto inicial
do livro (que acabou virando crônica).
PARTE II (“CORTA!!!”)
O tal livro foi interrompido na
segunda página (!). Não tive mais paciência de continuar, principalmente depois
de ter lido em um livro de psicologia que, à medida que as pessoas envelhecem,
passam a querer perpetuar-se através de textos e coisas semelhantes. E eu, que
me achava único, singular, descobri que tenho reações como as demais pessoas.
Um sujeito mediano – assim como a maioria – ou medíocre, segundo meu colega
Pintão.
E escrever muito é um trabalho árduo,
pois você tem que se preocupar com a gramática, com a trama da história, tem
que ficar ligado no “continuísmo” (igual nas novelas) para não se contradizer
e, principalmente, tem de ter imaginação.
Para tentar minimizar essas
dificuldades, o texto digitado naquela época foi imaginado como uma costura ou
colagem de lembranças, não só pessoais como de todos os que convivem ou
conviveram comigo. Não pretendia ser, portanto, um texto autobiográfico – nem
deveria. Melhor seria defini-lo como “multibiográfico”. Acabou saindo um texto
cheio de aspas, parênteses e indecisões. Ou seja, foi só um passatempo
(pretensioso, diga-se) de fôlego muito curto.
Na época, até escrevi uma pequena
introdução ao “livro”, quase uma “mea culpa” pelo potencial (e
bastante provável) desastre literário que se prenunciava. E, antes que
alguém pergunte, já vou explicando o motivo do nome esdrúxulo desse texto. Eu
ainda não estava aposentado quando pensei na linha mestra de um livro que
imaginava conseguir escrever. Comecei então a batucar a introdução no
computador da empresa. Para não chamar atenção, salvei o arquivo com o nome de
“Norton Antivírus”. Assim, se alguém usasse o computador na minha ausência,
talvez não se interessasse em ler um informativo sobre um programa antivírus.
Grande início!
E aí vai a tal introdução – ou “mea culpa”:
Não sei quando surgiu o desejo de
escrever um livro, mas existe há um bom tempo. No mínimo, uns dez anos. Também
não está claro o motivo de querer fazer isso. Penso que o ato de
escrever implica em um desejo de aprovação, em uma vontade de ser elogiado,
valorizado ou coisa assim, principalmente quando nos sentimos menosprezados,
ignorados ou, até mesmo, vilipendiados.
Há ainda um componente “genético”,
familiar, pois segundo meu pai (que também gostava de escrever seus textos), um
de seus irmãos escrevia de forma magnífica, mas, até onde sei, nada ficou
guardado pelos parentes, pois queimou tudo antes de morrer.
Finalmente, há aquele impulso criador
que os verdadeiros escritores possuem, resultando em romances, contos,
biografias, crônicas e toda sorte de expressão escrita. No meu caso, isso não
se aplica, pois não tenho inspiração nenhuma. Fazer o quê?
Bom, o livro não saiu, mas não faz mal
contar o que imaginei para ele. É a história de um sujeito de cinquenta a
sessenta anos (“melhor idade” é a puta que pariu!), solitário, que se angustia
com a aproximação da morte ou, pelo menos, com as incertezas que chegam com a
velhice. Esse sentimento do personagem é o mesmo que começou a dominar minha
mente depois de fazer cinquenta anos.
PARTE III
(O terceiro post trazia o final
imaginado para o tal livro).
E aqui vai um “onde está Wally?” da
inspiração, um verdadeiro Who’s Who "literário":
– solidão e afastamento dos
filhos, marcas de cigarro e de copo na mesa e roupas espalhadas: um cunhado (na
época) recém-separado;
– nome do personagem: irmão do
meu avô materno;
– máquina Remington comprada em leilão
e aparas de jornal: meu pai;
– mala de couro e quarto sem
guarda-roupas: meu avô (ele se separou de minha avó, mas continuou morando na
mesma casa, só que em um quarto no fundo do
quintal – exceto quando ia visitar a segunda família que tinha);
– prateleiras feitas com tábuas
sem acabamento e caixas de papelão (na verdade, embrulhos) cheias de papéis
antigos e alguns livros: quarto onde eu e meu irmão dormíamos;
– escrivaninha antiga: nosso
quarto.
Já viu que costurar essa confusão não
seria uma tarefa muito fácil, não é? Curiosamente, há pouco tempo, comecei a
escrever minhas lembranças das famílias de meu pai e minha mãe, citadas em
anotação na parte final do texto. Também escrevi um pouco sobre minha infância
e adolescência. Até parece uma ação instintiva para continuar o tal livro. O
problema é tornar impessoais lembranças tão particulares. Seria necessário
mudar nomes, datas, etc.
A mesma coisa precisaria ser feita com
as conversas porventura existentes. Para dar verossimilhança aos diálogos, eu
pretendia usar e-mails trocados com filhos, colegas e amigos. Imagina o
trabalhão de despersonalizar essas conversas. Além do mais, a maioria desses
diálogos se perdeu depois que me aposentei.
Outra coisa que pesou é a percepção de
que, nesta história, a realidade seria muito mais interessante que a ficção,
uma ficção meio esquizofrênica, meio Frankenstein.
Resumindo, até que a linha
mestra estava nítida. Foda seria o trabalhão dos diabos para “fazer a coisa
acontecer”. Isso sem falar – fato não mencionado até agora – que o final (já
imaginado) seria melancólico e oposto às novelas brasileiras, onde tudo acaba
bem. Não esse final. Até porque o protagonista era um perdedor.
Voltando
aos dias de hoje, depois de mudanças sucessivas de título, de exclusões dos
posts originais, substituídos por outros que já nem sei onde encontrar, a
solução mais sensata era juntar tudo no mesmo balaio e manter o título
original, acrescido a título de piada da expressão “Versão do Diretor" e
republicar. Se alguém leu até aqui, pode acreditar, seu fígado processa até
ácido sulfúrico. E agora, o maravilhoso, magnífico, monumental, legalático
texto (que os 2,3 leitores do blog já conhecem). Fui.
NORTON ANTIVIRUS
Quem
chega à porta do quarto, pouca coisa tem para olhar. Imediatamente à direita,
logo após a ombreira da porta, algumas prateleiras feitas com tábuas sem
acabamento vergam-se sob o peso de caixas de papelão cheias de papéis antigos e
alguns livros. Encostada na parede à direita, no canto, encontra-se uma cama de
solteiro, desarrumada.
Ao fundo, um banco de madeira suporta uma
mala de couro cru, decorada com desenhos feitos a ferro quente, onde são
guardadas as peças de vestuário, já que o quarto não tem armário embutido nem
guarda-roupa.
À esquerda, debaixo da janela, vê-se uma
velha escrivaninha e, sobre ela, roupas sujas misturam-se descuidadamente com
jornais antigos, algumas frutas, uma sacola com pães e uma máquina de escrever.
A máquina é uma Remington cor de ouro-velho e foi comprada anos atrás em um
leilão. Uma cadeira com o assento estofado já gasto e desbotado – sempre usada
como cabide de calças – completa a mobília do quarto.
Tudo ali é velho ou ordinário. O tampo de
madeira da escrivaninha ostenta várias marcas circulares desbotadas, causadas
por copos cheios de água que ali coloca antes de deitar-se. As bordas são
escuras e queimadas pelos cigarros que acendeu e se esqueceu de pegar, no tempo
em que ainda fumava.
O quarto onde passa a maior parte do tempo é
alugado e fica nos fundos de uma casa velha, transformada em pensão. O acesso a
ele é feito através de um corredor na lateral, o que lhe confere alguma
independência e privacidade.
Na carteira de identidade consta o nome de
Odorêncio, dado em homenagem a um tio-avô que nunca viu. Tem sessenta anos
presumíveis. Os cabelos já escassos estão quase totalmente brancos. A barriga
flácida e volumosa teima em derramar-se sobre o cinto.
Como vem acontecendo há tempos, sente-se
infeliz e irritado com a vida que leva. Não tem amigos com quem conversar – “não
tenho amigos, tenho apenas conhecidos”.
Depois que se separou, praticamente perdeu o
contato com os filhos, que não o procuram nunca, exceto para pedir algum
dinheiro. Dos parentes próximos – poucos – também não dá notícia.
Como está aposentado, quando não está lendo,
escreve coisas que depois joga no lixo, numa rotina tediosa e um pouco
angustiante.
Cumprindo uma espécie de ritual diário,
Odorêncio aproxima-se da escrivaninha, tira um pé de meia preta de cima da
máquina e, com zelo e interesse, usa-o como espanador para limpar os farelos de
pão espalhados no tampo da mesa. Concluída a limpeza, senta-se na cadeira,
retira de uma das gavetas um pacote de aparas de papel de jornal, cortadas em
tamanho “ofício”. Pega uma das folhas e coloca-a cuidadosamente na máquina. Junta
as duas extremidades para ver se estão bem alinhadas e se dá por satisfeito.
“Existirmos:
a que será que se destina?” Quando criança, eu era um menino cheio de
inseguranças variadas. Adolescendo, comecei a não ter certeza de nada,
verdadeiro espelho do Raul Seixas ("prefiro ser essa metamorfose
ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo").
À medida que fui envelhecendo, foi
aumentando mais e mais minha perplexidade sobre essa coisa incompreensível
chamada Vida, de tal forma que hoje eu me sinto totalmente solidário com quem
pronunciou essa pérola: "‘só sei que nada sei”.
– “Início
mais lixo que esse, impossível”, pensou, enquanto retirava e amassava a
folha. Pegou nova folha, repetiu o ritual e começou:
Qual é o sentido da vida? Deve haver
um sentido para a vida! Não é possível que os seres vivos tenham surgido por
conta de um capricho de moléculas de carbono delinquentes e desocupadas! Não
consigo entender que uma pessoa, um animal ou mesmo uma bactéria sejam apenas
sistemas fechados, programados para reproduzir-se e movido por impulsos
eletroquímicos. Para que? É tão imbecil pensar assim! Por outro lado...
Sentiu-se ridículo escrevendo sobre coisas
que sabia não ter condições de explicar ou entender. Invejou as grandes mentes
da humanidade (– “eu
temo o poder e admiro o conhecimento, mas a única coisa que eu respeito de
verdade é a inteligência”, gostava de dizer para os antigos colegas de
trabalho).
Arranca a folha, amassa-a e joga no chão.
Pega outra folha, coloca na máquina e recomeça:
Sinto-me como se fosse o resultado de
um projeto ambicioso que não deu certo, seja por defeito de concepção, seja por
erro de dimensionamento, talvez pela má qualidade dos materiais empregados ou
por falhas no processo produtivo ou, até mesmo, por vícios de utilização.
Divertiu-se com a ideia e prosseguiu:
Não sei por que algumas pessoas dão-se
bem na vida, constituem família, divertem-se e enriquecem, enquanto outras
caminham justamente na direção oposta. Não se trata aqui de reinventar a
psicologia ou outra ciência do comportamento, apenas de constatar uma realidade
estranha e desigual. Qual
é o sentido disso, qual a lógica obscura disso tudo? Afinal, qual é o sentido
da vida? Não sei o sentido da vida e talvez trocasse a minha própria pela
resposta a essa pergunta.
Por alguns instantes ficou imóvel, sem saber
como continuar. Irritou-se pela falta de imaginação, pela incapacidade de
verbalizar os pensamentos confusos que giravam em sua mente. Ia tirar de novo o
papel da máquina, quando lhe ocorreu uma ideia que pareceu interessante:
– Vou
escrever sobre minha vida. Talvez, ao resgatar todas as lembranças, isso me
ajude a compreender o sentido da vida. Se não da Vida, metafisicamente falando,
pelo menos da minha.
Acreditando que finalmente tinha imaginado
algo que o faria preencher as longas horas ociosas, deixou-se ficar pensativo.
Não tinha ilusões sobre a qualidade literária do que iria produzir, mas
intimamente, tinha a convicção de que todo romance, toda obra de ficção tem
sempre alguma coisa de autobiográfico.
Os dois indicadores usados para datilografar
começam a bater nas teclas:
- Nasci em uma família...
As lembranças, as conversas,
as impressões e as mágoas foram pouco a pouco preenchendo aquelas folhas,
empilhadas cuidadosamente em uma caixa de camisa social que tinha guardado.
Nada escapou de ser registrado, mesmo os casos mais fúteis, mesmo as conversas
mais tolas. Ainda no início, olhando a papelada que se avolumava, pensou em voz
alta, não sem uma ponta de ironia:
– Minha história e
minha vida estão nesta caixa!
Entretanto, à medida que o
texto e as lembranças se aproximavam do momento em que se encontrava, Odorêncio
ia ficando mais e mais inquieto e irritado. Já tinha até comprado outra resma
de papel, já tinha trocado a fita da máquina. E o que seria uma forma de passar
o tempo havia se transformado aos poucos em obsessão. E aquela agitação só
aumentava. Afinal,
mesmo depois de passar em revista toda a sua vida, Odorêncio continuava no
mesmo ponto onde tinha começado. Exasperado, exclamou quase gritado:
– Qual é a porra do
sentido da minha vida?
Nesse instante, começou a
sentir um mal estar, um pouco de enjoo. – "Será que é aquela
carne de porco que eu comi? Talvez fosse bom tomar um bicarbonato...",
pensou. Sentou-se na cama e passou a mão na testa. Percebeu que estava suando
frio. Sem entender o que estava acontecendo, tentou se levantar. Uma dor
intensa que começava no peito e que se irradiava para o braço esquerdo – como
se uma mão invisível estivesse esmagando seu coração – o impediu. Meio tonto e
com dificuldade para respirar, pensou em chamar alguém, em pedir ajuda.
* *
*
Duas mulheres de aparência
cansada e lenço amarrado na cabeça limpam o quarto. Enquanto a mais nova varre
o cômodo e recolhe o lixo espalhado, a outra tira o lençol da cama e faz uma
trouxa com a roupa suja.
– O velho era bem
porco. Olha essa mesa como tá suja!
– Ah, homem é assim
mesmo, tudo igual. Ainda mais se mora sozinho...
– Os filhos estiveram
aqui mais cedo e pegaram uns documentos, livros, dinheiro...
– Disseram que é pra
dar as roupas e os sapatos pra algum asilo.
– A mala também?
– Sei não.
– Ó, tem uma papelada
danada dentro desta caixa. Tá tudo escrito. Que é que vai fazer com isso?
– Eles falaram que é
papel à toa, sem importância, que pode jogar tudo fora.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018
POESIA, DE QUE ME SERVE?
Alguém pode pensar
que estou sem assunto para um post original. Na verdade, estou mesmo. Mas, como
disse no post anterior, estava atrás de poesias para ler na internet, pois
atualmente só leio livros que me emprestam ou ganho de presente. E tenho
preferido biografias e livros que abordam a Realidade (muitas vezes mais louca
que a mais delirante das ficções).
Por isso, talvez ninguém saiba que considero
a Poesia uma inutilidade absolutamente necessária, capaz de tornar a Vida melhor e de suscitar "uaus!", wows!", "epas!", "issas!" e outras
interjeições de espanto e admiração provocadas pela capacidade de síntese que
os poetas - esses neurocirurgiões da literatura -, conseguem atingir,
compactando emoções e belas imagens em apenas meia dúzia de versos. Como nesses
dois poemas que pincei da internet. Fica só uma dúvida (dúvida real, de ignorante): no poema do
Bandeira a expressão original seria mesmo "tábua rasa"? Ou o certo
seria "tábula rasa"? Olhaí.
VELHA
CHÁCARA
A casa era por
aqui…
Onde? Procuro-a e
não acho.
Ouço uma voz que
esqueci:
É a voz deste
mesmo riacho.
Ah quanto tempo
passou!
(Foram mais de
cinquenta anos.)
Tantos que a morte
levou!
(E a vida… nos
desenganos…)
A usura fez tábua
rasa
Da velha chácara
triste:
Não existe mais a
casa…
- Mas o menino
ainda existe.
(Manuel Bandeira)
ESCÁRNIO
PERFUMADO
Quando no enleio
De receber umas
notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da
mais cruel das ruas,
Vendo tão fartas,
D’uma fartura que
ninguém colige,
As mãos dos
outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas
– isso dói, me aflige…
E em tom de mofa,
Julgo que tudo me
escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,
Pois fico só e
cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me
na cabeça, em roda,
Mais humilhado que
um mendigo, um verme…
(Cruz e Souza)
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018
DEUSES, TÚMULOS E SÁBIOS - A REVANCHE
Em 25
de dezembro de 1967 eu e meu irmão demos a nosso pai um livro que ele adorou. Como
o próprio título indicava, o assunto era arqueologia. Eu também adorei o livro,
ao ponto de lê-lo duas vezes. Uns dois anos antes de meu pai morrer, ganhei
dele esse livro, todo assinalado por ele e com anotações nas laterais das
páginas. É um livro divertidíssimo, cheio de histórias da “aurora da
arqueologia”.
Logo no
início do Blogson, transcrevi um trecho que trazia a descrição exata do dilúvio
bíblico, só que muito mais antiga que o texto do Gênesis e encontrada em
tabuinhas de argila da velhíssima Suméria. Muito bem.
Ontem,
estava pentelhando pela internet à procura de alguma poesia para ler e, eventualmente,
postar no blog, quando me lembrei de uma estrofe de quatro versos que tinha
lido no livro de arqueologia. Resolvi então desencavar essa quadrinha para
divulgar no blog, com a convicção de que a Poesia é uma inutilidade
absolutamente necessária, essencial até mesmo para um cientista. Há ainda o
fato de que provavelmente ninguém a conhece, principalmente por ter sido
escrita por um figuraça, arqueólogo alemão do século XIX(!). Como a página onde
estão esses versos traz algumas informações divertidas sobre esse sujeito,
resolvi escanear tudo. Olhaí.
Robert Koldewey
nasceu em Blankenburg, Alemanha, em 1855. Estudou arquitetura, arqueologia e
história da arte em Berlim, Munique e Viena. Antes de completar trinta anos fez
escavações em Assos e na ilha de Lesbos. Em 1887 escavou em Babilônia, em
Surgul e EI-Hibba, mais tarde na Síria, no Sul da Itália e na Sicília, e, em
1894, outra vez na Síria.
Dos quarenta aos
quarenta e três anos lecionou numa escola de arquitetura de Görlitz (uma época
que ele não gostava de recordar), depois, em 1898, com quarenta e três anos,
iniciou escavações em BabeI.
Koldewey era um homem
estranho, e, principalmente na opinião dos seus colegas, um cientista estranho:
O seu amor à arqueologia, geralmente tratada de maneira absolutamente seca nas
publicações especializadas, não lhe turvava a vista para a apreciação da terra
e dos povos, para o encanto do ambiente e para as mil e uma alegrias
cotidianas, nem esgotou nunca a fonte de seu humor, que trasbordava
exuberantemente de tudo o que escrevia.
Existem poesias do
arqueólogo Koldewey, rimas nascidas de pura alegria de viver, aforismos que nos
dão, com um piscar de olho, uma dúbia sabedoria. Não foi o estudante Koldewey e
sim o professor de cinquenta e seis anos, mundialmente famoso, que produziu
esta saudação de Ano Bom:
Dúbios são os caminhos do fado,
Ignorada a estrela do porvir.
Antes de deitar para dormir,
Um conhaque bebo de bom grado.
E há inumeráveis
cartas suas, cuja nonchalante
vivacidade folhetinística os ultra-sérios sábios normais olham não só com
desconfiança, mas consideram indigna de um cientista.
Assim
escreve ele a propósito de uma viagem pela Itália: "Afora a escavação nada mais ocorre atualmente em Selinunte, mas noutro
tempo o diabo andou à solta por estas bandas, e pode-se imaginar por quê: até
onde a vista podia alcançar, a planície ondulante da costa era coberta pelos
frutos da terra, pomares e vinhas, e tudo pertencia aos gregos de Selinunte,
que desde alguns séculos gozavam dessa prosperidade em pai e harmonia. Isso
durou até ao ano de 409, quando, em consequência de uma disputa com os habitantes
de Segesta, os cartagineses vieram sobre eles e Aníbal Gisgon assaltou os muros
dos aterrados selinuntenses com aríetes - o que foi tanto mais vil quanto ;inda
há pouco os selinuntenses tinham sido aliados dos cartagineses. Mas Aníbal
derrubou os muros negligenciados e, após nove dias de terríveis combates dentro
da cidade, nos quais as mulheres tomaram parte muito ativa, jaziam 16.000
mortos nas ruas. Os bárbaros cartagineses entregaram-se então ao roubo e ao
saque, sem respeitarem sagrado nem profano, ornando os cinturões de mãos
decepadas e outras coisas horripilantes. Os selinuntenses nunca se refizeram
desta derrota. Daí que hoje em dia os coelhos atravessem livremente as ruas de
Selinunte com tanta frequência, e daí que, de vez em quando, ao jantar, nós
pudéssemos comer um coelho, morto pelo Sr. Gioffré e que já estava assado e
pronto quando, à noite, acabávamos de banhar o corpo cansado das escavações nas
ondas ruidosas do mar eternamente inquieto"
Escreve sobre "a
terra das óperas e dos tenores": "Está
subentendido que todo o mundo tem voz, e um homem que mostre a mais leve
dificuldade em dar um dó de peito é considerado um aleijado". -
Depois,nas próximas linhas, entra muito seriamente na construção do templo,no
século V A. C. - até que o espetáculo dos gendarmes italianos o faz pilheriar: “... vendo-os assim de casaca profusamente
agaloada e imponente tricorne, dir-se-iam almirantes a cavalo. Assim cavalgam
eles pelas estradas desertas, mantendo a ordem".(...)
O templo de Himera
induziu-o a escrever a seguinte carta: "Mas que é feito da poderosa Himera!... Embaixo, bem junto à estrada de
ferro, erguem-se os restos miseráveis do suntuoso templo, algumas de cujas
colunas assentam no interior de um curral de vacas moderno. Um curral de vacas,
nada mais nada menos! E as vacas esfregam-se nas caneluras e comportam-se em
geral como não é próprio comportar-se num templo antigo. A única coisa que se
pode fazer diante de tal procedimento é deplorar o templo e invejar as vacas.
Pois quanto não dariam muitos arqueólogos alemães para poderem pernoitar num
templo antigo!"
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018
FUTUROS AMANTES - CHICO BUARQUE
Segundo o Nelson Motta, essa é a música mais bonita que o Chico já compôs. Sem me preocupar em classificá-la com tanto rigor, o que sei é que é linda demais. Salve, Chico!
domingo, 18 de fevereiro de 2018
DESFADO - PEDRO DA SILVA MARTINS
Há uma situação curiosa e meio paradoxal que
acontece na interface do blog com seus escassos leitores (“interface”, mesmo
que inapropriado, ficou muito chique!). Percebe-se o paradoxo na leitura dos
comentários já feitos pelas pessoas que se dispuseram a isso. Esses leitores
(raríssimos!) demonstram ser muito mais cultos, bem informados e inteligentes
que o blogueiro que catilografa este
texto introdutório.
E é real a maior cultura e inteligência dos
leitores, pois falam de coisas que desconheço, possuem um vocabulário rico e culto, enquanto eu não passo de um caipira que finge exibir conhecimento, que tem um verniz cultural tão ralo que descasca ao menor contato. Isso faz com que eu
me sinta quase como um bicho de zoológico, um orangotango, um chimpanzé, um
mono, que ao ver os manos em frente à sua jaula, pensa: “que é que esses caras viram em mim?”
E este monólogo monótono, monocórdio, quase monomaníaco, é apenas introdução a um belíssimo poema postado
no blog à guisa de comentário, por um(a) leitor(a) que se identifica apenas por
"J".
Como sou mesmo um ignorante incorrigível,
daquele tipo que só lê os livros que ganha de presente, daquele que só ouve
músicas, bandas e cantores que estão dentro de sua zona de
conforto (não confundir com bordel de luxo), nunca tinha ouvido falar da fadista portuguesa Ana Moura,
intérprete da canção "Desfado",
cuja letra serviu de comentário aqui no Blogson.
Como não curto fado, continuarei na minha
zona de conforto. Por isso, apenas transcreverei a letra, lindíssima. Seu autor
é Pedro da Silva Martins, compositor, letrista e guitarrista português. Em 2013
venceu o Prêmio "Melhor Canção do
Ano" de 2012 com o tema "Desfado",
escrito para o disco homônimo de Ana Moura, atribuído pela Sociedade Portuguesa
de Autores. A mesma canção ganhou em maio de 2013 o Globo de Ouro para "Melhor Canção". "Sente" só a
beleza:
Quer o
destino que eu não creia no destino
E o meu
fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo
bem sem sequer o ter sentido
Senti-lo
como ninguém, mas não ter sentido algum
Ai que
tristeza, esta minha alegria
Ai que
alegria, esta tão grande tristeza
Esperar
que um dia eu não espere mais um dia
Por
aquele que nunca vem e que aqui esteve presente
Ai que
saudade
Que eu
tenho de ter saudade
Saudades
de ter alguém
Que
aqui está e não existe
Sentir-me
triste
Só por
me sentir tão bem
E
alegre sentir-me bem
Só por
eu andar tão triste
Ai se
eu pudesse não cantar "ai se eu pudesse"
E
lamentasse não ter mais nenhum lamento
Talvez
ouvisse no silêncio que fizesse
Uma voz
que fosse minha cantar alguém cá dentro
Ai que
desgraça esta sorte que me assiste
Ai mas
que sorte eu viver tão desgraçada
Na
incerteza que nada mais certo existe
Além da
grande certeza de não estar certa de nada
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018
terça-feira, 13 de fevereiro de 2018
CRIATIVIDADE É ISSO!
As coisas mais legais que acontecem (e acontecem aos montes) durante o festejos momescos são produto da ironia, do bom humor e da criatividade. Fantasias bizarras, distintivos hilariantes, o escambau. Um exemplo disso são os nomes escolhidos para batizar alguns dos blocos de rua que ressuscitaram o Carnaval de BH. Para mim, o mais engraçado e criativo é "Trema na Linguiça", trocadilho genial em cima da reforma ortográfica que aboliu os dois pontinhos na horizontal (antes o nome do bloco era "Não Trema na Linguiça"). Há também o "Volta Belchior", criado depois do sumiço do cantor e por aí vai.
Mas, ontem, eu rolei de rir ao ver no Facebook um post tão bem sacado que "fui obrigado" a copiar para divulgar aqui no Blogson. Nem todo mundo aprovou, pois cinco pessoas odiaram, vinte e oito apenas "curtiram" e vinte uma "riram" ("hahaha").
Inconveniente para alguns, politicamente incorreto para outros, mas genial na criação. E não estou falando da fantasia usada na imagem irreverente. O que me matou mesmo de rir foi a frase que um gênio anônimo criou em cima da fotografia. Imbatível no humor e na ironia sacana. Olhaí.
domingo, 11 de fevereiro de 2018
EPITÁCIO
Cheguei à conclusão de que um blog é um parente próximo dos tamagotchi, bichinhos virtuais semi-extintos que precisavam ser alimentados para não "morrer". Assim é o Blogson. Sinto que se não alimentá-lo com com alguma frequência, acabará morrendo de inanição. E como os posts que ele abriga quase não tem sustança, a morte pode acontecer mais rápido. Por isso, resolvi fazer uma sopa de chuchu só para enganar a fome.
Depois de certa idade (frase clichê), a
coisa mais normal é conversar sobre morte, doenças e perdas, especialmente em
velórios, lugar ideal para exibir saúde e pujança - ou decrepitude - para os
amigos e parentes de idade aproximada à sua. Fala-se de tudo: remédios,
tratamentos, sintomas e dores, tanto próprias quanto de conhecidos em comum.
Contam-se piadas, fala-se em voz alta (a perda auditiva é a responsável por isso), uma zona, enfim. Isso aconteceu
agora, há poucos dias, no velório do irmão de minha mulher.
Já se aproximando a hora do sepultamento, um
primo de minha mulher perguntou a idade de meu cunhado. “Setenta e dois”, respondi. Nova pergunta: “E você, quantos anos tem?” Como não tenho o costume ridículo (para mim!)
de pintar os cabelos nem o hábito ou desejo de falsear ou esconder minha idade, respondi: “Sessenta e sete, por quê?”
- “É
engraçado, conheço uns dez casos recentes de pessoas que morreram na faixa dos
setenta”,
respondeu ele.
Esse primo é alguns anos mais moço que
eu, por isso brinquei que ele estava falando aquilo só para me agradar, pois ainda tenho
três anos para me esbaldar. E como ele também já se aposentou, resolvi sacanear:
- “Você
deveria ter se aposentado mais tarde! Segundo uma estatística americana, a
pessoa vive em média só mais doze anos após parar de trabalhar”. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro (segundo
clichê!), pois resolvemos fazer as contas. E ficou assim: aposentei-me em 2009,
prestes a completar cinquenta e nove anos. 2009 mais 12 é igual a 2021, ano em que farei
setenta e um!
Resumindo, mesmo querendo mandar essas
estatísticas à puta que o pariu, não posso deixar de reconhecer que “estou na tábua da beirada” (hoje estou
bom em clichês!). E foi assim que fiquei tentando imaginar um epitáfio legal
para mim. Para não ficar muito dramático, vou chamá-lo amistosamente de epitácio. E creio que o epitácio que mais
combinaria comigo (embora patético) seria este:
- “Seu
sonho era ser amado por todas as pessoas do mundo”.
sábado, 10 de fevereiro de 2018
FALSIDADE IDEOLÓGICA
Em pleno sábado de Carnaval, alguém resolveu
fazer uma denúncia muito séria (nem todo mundo gosta da esbórnia momesca!).
Acabei de ver agora uma faixa esticada entre dois postes com esta frase:
CARNAVAL SEM LULA É FRAUDE!
Estupefato com a gravidade da denúncia,
pensei comigo:
Sacanagem,
nem no Carnaval a Polícia Federal pode descansar... Mais uma investigação!
Entretanto, depois de meditar uns três
segundos sobre isso, cheguei à conclusão que se trata de notícia falsa, fake news. É só (mais uma) falsidade
ideológica.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018
À SOMBRA DA PAINEIRA
Como já disse antes, este ano, para mim, para
a família de minha mulher, para nossa família, a Quarta-Feira de Cinzas aconteceu
antes do Carnaval, pois foi exatamente na semana anterior ao Carnaval que o
Taco, meu cunhado, padrinho, compadre, amigo e irmão foi sepultado.
Talvez por ter escrito um texto sob o impacto da tragédia acontecida com seu irmão "Canário", morto em acidente na "Rodovia da Morte", estava pensando em escrever alguma coisa sobre o Taco, mas fiquei relutante, sem saber o que falar, o que dizer sobre o abalo que senti com sua morte. Ontem (quarta-feira), quando ainda conversávamos perto da sepultura onde meu cunhado acabara de ser enterrado, bem ao lado de uma paineira ali plantada, um primo de minha mulher fez o seguinte comentário:
Talvez por ter escrito um texto sob o impacto da tragédia acontecida com seu irmão "Canário", morto em acidente na "Rodovia da Morte", estava pensando em escrever alguma coisa sobre o Taco, mas fiquei relutante, sem saber o que falar, o que dizer sobre o abalo que senti com sua morte. Ontem (quarta-feira), quando ainda conversávamos perto da sepultura onde meu cunhado acabara de ser enterrado, bem ao lado de uma paineira ali plantada, um primo de minha mulher fez o seguinte comentário:
- Por
que você não escreve um texto sobre o Taco com o título “À sombra da paineira”?
Desconversei, pois ainda estava inseguro sobre se iria ou não escrever alguma coisa sobre essa perda. Mas fiquei com aquele título na cabeça. E
me lembrei de que exatamente no Carnaval do ano passado bateu a vontade de
registrar um caso divertido que aconteceu na casa desse cunhado, em uma das muitas festas,
encontros ou reuniões que fazia com e para os parentes e os amigos de seus
filhos. Como bem disse um dos meninos, os amigos dos filhos acabavam tornando-se
seus amigos também, pois gostava de beber cerveja e comer tira-gostos em casa,
cercado de pessoas amigas a quem recebia alegremente.
E o caso que registrei e agora reproduzo é o
seguinte: um dia, não sei a propósito de que, fomos a uma festa em sua casa, Nessa
época eu ainda bebia cerveja (super moderadamente). Papo vai, papo vem, o
assunto “cachaça” surgiu na roda. O Taco, vaidoso como quem deseja exibir o
filhinho prodígio para as visitas, comentou que tinha (tem) um armário só com
marcas famosas, que tinha ganhado durante suas muitas viagens pelo interior do
estado.
Comentei ter lido uma matéria sobre o
fabricante da mais famosa e mais cara cachaça do país, a “Havana”, que, depois de um processo ligado ao registro da marca por
outra pessoa, mudou o rótulo para “Anísio
Santiago”, justamente o nome do fabricante. Ainda tive oportunidade de
exibir meus “vastos” conhecimentos, contando o preço cobrado por garrafa, uns
R$200,00, na época (hoje, parece que custa mais de quatrocentas pratas), mas
fui interrompido por ele:
- Eu
tenho! Quatro “Havana” e duas “Anísio Santiago”!
Puxa-saco profissional que sou, louvei seu
“tesouro”, comentando que gostaria de, um dia, provar um pouquinho de uma
delas.
- “Vou
trazer para você experimentar”. E
saiu da mesa, voltando com um copinho pouco maior que um dedal de costura, que
me entregou, dizendo:
- “Prova
esta maravilha”!
Enquanto me observava com um sorriso de ansiedade
no rosto, levei o copinho ao nariz, comentando que precisava antes sentir o
perfume da “bebida dos deuses”. Depois de cheirar, fazendo toda dramatização
possível, emiti o veredito:
- Tem
cheiro de cachaça...
- “Não
enche o saco, prova logo”!
Mesmo que tenha tomado alguma cachaça na
juventude, fazia séculos que não passava nem perto da “marvada”.
Tomei um golinho, esperando uma epifania gustativa, mas aquela coisa desceu
rasgando e queimando minha garganta, exatamente como sentia na juventude.
- Não
me leve a mal, mas essa Havana tem gosto de cachaça!
Entre ofendido e irritado, Tacão tomou de
minhas mãos o “dedal”,
exclamando:
- “Ah,
dá aqui, você não entende nada de cachaça”!
Assim era o Taco. Ou Tacão, ou Taquinho, ou “Véio”. Estopim super curto, turrão, temperamental,
mas com um coração gigantesco. E solidário. Todos os pepinos mais sérios que
surgiam, olha ele lá disponível. Aliás, não só ele, pois tinha sempre ao lado
a Neymar (ou Ney ou Neyzinha), formando uma dupla imbatível
nos quesitos disponibilidade e solidariedade.
Passional e emotivo, às vezes ficava bravo e exaltado
no trânsito (creio que não só no trânsito), mas era um chorão da melhor
qualidade. Lembro-me de muitas vezes ganhar seu abraço por algum motivo
qualquer e ouvir dele um “Gosto demais
d’ocês”, bem mineiro, com os olhos úmidos.
Graças às inúmeras viagens profissionais que
fez por todo o estado, tinha muitos casos saborosos e divertidos para contar, provavelmente um pouco mais temperados que a realidade. Como
esquecer a vez em que contou ter chegado à noite, varado de fome, em um
lugarejo tão ermo, tão isolado, que só possuía um botequim ainda aberto, onde
não havia nada para comprar, exceto uma esquecida lata de salsicha começando a
estufar? Que foi o que ele e o motorista comeram! Algumas vezes sugeri que
registrasse essas histórias amalucadas e bizarras, e lamento que não tenha
feito isso.
Mesmo sabendo terem gasto mais de trinta
minutos para reanimá-lo, mesmo depois de vê-lo na cama do CTI todo plugado em
mil aparelhos, tive a esperança de que se recuperasse, que usasse a parte não
atingida de seu cérebro privilegiado - por menor que fosse essa parte intacta -,
para recuperar a consciência, pois parecia estar ali apenas dormindo. Em vão.
Depois, já no velório, tinha uma expressão tranquila no rosto e o que me
pareceu um discreto sorriso, como se estivesse sonhando um sonho bom com os netinhos. Sinceramente, tive vontade de dizer para ele: “Acorda, filhadaputa, levanta daí!” (e agora me pego chorando ao
escrever esta bobagem).
Uma coisa me consola: desde o instante em que
se sentiu mal, generosamente nos concedeu três dias para que fossemos aos
poucos nos acostumando com sua ausência, uma falta tão gigantesca que quase dá
para pegar nas mãos. Pois, apesar de aparentar ser cascudo e espinhento como
tronco de paineira, por dentro lembrava mais a paina que recheava os
travesseiros de antigamente: acolhedor, amistoso e solidário. Como quando,
na juventude, ao descobrir que as irmãs estavam fumando, em vez de
recriminá-las como outros fariam, disse que gostaria que elas fumassem perto
dele, sem medo. Um gentleman, sem dúvida.
Não sei mais o que dizer. Minha garganta está queimando um pouco. Tentei lembrar mais
alguns casos para homenagear um excelente filho, irmão, esposo, pai, avô, colega,
amigo, mas não consegui, pois nesse garimpo de lembranças só encontrei tristeza
e saudade na bateia da memória. Agora, toda vez que eu olhar para uma paineira,
já sei que irei me lembrar de um homem bom e digno a quem tive a honra e a
sorte de conhecer e de ter como cunhado, padrinho, compadre e amigo, meu
caríssimo irmão Taco - que repousa agora à sombra de uma paineira.
Assinar:
Postagens (Atom)
-
Este post serve para divulgar as três obras primas publicadas por este blogueiro na Amazon.com.br . E são primas só pelo parentesco, pois...
-
O tema de hoje é meio esquisito pois vou falar de cerveja, logo eu que nem gosto de cerveja! Mas meu papel é só de documentarista. Por iss...
-
Esperando que ninguém tenha "fugido para as montanhas", apresento mais uma música fruto da parceria Suno-Jotabê (o compositor se...