sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

À SOMBRA DA PAINEIRA

Como já disse antes, este ano, para mim, para a família de minha mulher, para nossa família, a Quarta-Feira de Cinzas aconteceu antes do Carnaval, pois foi exatamente na semana anterior ao Carnaval que o Taco, meu cunhado, padrinho, compadre, amigo e irmão foi sepultado.

Talvez por ter escrito um texto sob o impacto da tragédia acontecida com seu irmão "Canário", morto em acidente na "Rodovia da Morte", estava pensando em escrever alguma coisa sobre o Taco, mas fiquei relutante, sem saber o que falar, o que dizer sobre o abalo que senti com sua morte. Ontem (quarta-feira), quando ainda conversávamos perto da sepultura onde meu cunhado acabara de ser enterrado, bem ao lado de uma paineira ali plantada, um primo de minha mulher fez o seguinte comentário:
- Por que você não escreve um texto sobre o Taco com o título “À sombra da paineira”?

Desconversei, pois ainda estava inseguro sobre se iria ou não escrever alguma coisa sobre essa perda. Mas fiquei com aquele título na cabeça. E me lembrei de que exatamente no Carnaval do ano passado bateu a vontade de registrar um caso divertido que aconteceu na casa desse cunhado, em uma das muitas festas, encontros ou reuniões que fazia com e para os parentes e os amigos de seus filhos. Como bem disse um dos meninos, os amigos dos filhos acabavam tornando-se seus amigos também, pois gostava de beber cerveja e comer tira-gostos em casa, cercado de pessoas amigas a quem recebia alegremente.

E o caso que registrei e agora reproduzo é o seguinte: um dia, não sei a propósito de que, fomos a uma festa em sua casa, Nessa época eu ainda bebia cerveja (super moderadamente). Papo vai, papo vem, o assunto “cachaça” surgiu na roda. O Taco, vaidoso como quem deseja exibir o filhinho prodígio para as visitas, comentou que tinha (tem) um armário só com marcas famosas, que tinha ganhado durante suas muitas viagens pelo interior do estado.

Comentei ter lido uma matéria sobre o fabricante da mais famosa e mais cara cachaça do país, a “Havana”, que, depois de um processo ligado ao registro da marca por outra pessoa, mudou o rótulo para “Anísio Santiago”, justamente o nome do fabricante. Ainda tive oportunidade de exibir meus “vastos” conhecimentos, contando o preço cobrado por garrafa, uns R$200,00, na época (hoje, parece que custa mais de quatrocentas pratas), mas fui interrompido por ele:
- Eu tenho! Quatro “Havana” e duas “Anísio Santiago”!

Puxa-saco profissional que sou, louvei seu “tesouro”, comentando que gostaria de, um dia, provar um pouquinho de uma delas.
- “Vou trazer para você experimentar”. E saiu da mesa, voltando com um copinho pouco maior que um dedal de costura, que me entregou, dizendo:
- “Prova esta maravilha”!

Enquanto me observava com um sorriso de ansiedade no rosto, levei o copinho ao nariz, comentando que precisava antes sentir o perfume da “bebida dos deuses”. Depois de cheirar, fazendo toda dramatização possível, emiti o veredito:
- Tem cheiro de cachaça...
- “Não enche o saco, prova logo”!

Mesmo que tenha tomado alguma cachaça na juventude, fazia séculos que não passava nem perto da marvada”. Tomei um golinho, esperando uma epifania gustativa, mas aquela coisa desceu rasgando e queimando minha garganta, exatamente como sentia na juventude.
- Não me leve a mal, mas essa Havana tem gosto de cachaça!

Entre ofendido e irritado, Tacão tomou de minhas mãos o “dedal”, exclamando:
- “Ah, dá aqui, você não entende nada de cachaça”!

Assim era o Taco. Ou Tacão, ou Taquinho, ou “Véio”. Estopim super curto, turrão, temperamental, mas com um coração gigantesco. E solidário. Todos os pepinos mais sérios que surgiam, olha ele lá disponível. Aliás, não só ele, pois tinha sempre ao lado a Neymar (ou Ney ou Neyzinha), formando uma dupla imbatível nos quesitos disponibilidade e solidariedade.

Passional e emotivo, às vezes ficava bravo e exaltado no trânsito (creio que não só no trânsito), mas era um chorão da melhor qualidade. Lembro-me de muitas vezes ganhar seu abraço por algum motivo qualquer e ouvir dele um “Gosto demais d’ocês”, bem mineiro, com os olhos úmidos.


Graças às inúmeras viagens profissionais que fez por todo o estado, tinha muitos casos saborosos e divertidos para contar, provavelmente um pouco mais temperados que a realidade. Como esquecer a vez em que contou ter chegado à noite, varado de fome, em um lugarejo tão ermo, tão isolado, que só possuía um botequim ainda aberto, onde não havia nada para comprar, exceto uma esquecida lata de salsicha começando a estufar? Que foi o que ele e o motorista comeram! Algumas vezes sugeri que registrasse essas histórias amalucadas e bizarras, e lamento que não tenha feito isso.


Mesmo sabendo terem gasto mais de trinta minutos para reanimá-lo, mesmo depois de vê-lo na cama do CTI todo plugado em mil aparelhos, tive a esperança de que se recuperasse, que usasse a parte não atingida de seu cérebro privilegiado - por menor que fosse essa parte intacta -, para recuperar a consciência, pois parecia estar ali apenas dormindo. Em vão. Depois, já no velório, tinha uma expressão tranquila no rosto e o que me pareceu um discreto sorriso, como se estivesse sonhando um sonho bom com os netinhos. Sinceramente, tive vontade de dizer para ele: “Acorda, filhadaputa, levanta daí!” (e agora me pego chorando ao escrever esta bobagem).

Uma coisa me consola: desde o instante em que se sentiu mal, generosamente nos concedeu três dias para que fossemos aos poucos nos acostumando com sua ausência, uma falta tão gigantesca que quase dá para pegar nas mãos. Pois, apesar de aparentar ser cascudo e espinhento como tronco de paineira, por dentro lembrava mais a paina que recheava os travesseiros de antigamente: acolhedor, amistoso e solidário. Como quando, na juventude, ao descobrir que as irmãs estavam fumando, em vez de recriminá-las como outros fariam, disse que gostaria que elas fumassem perto dele, sem medo. Um gentleman, sem dúvida.


Não sei mais o que dizer. Minha garganta está queimando um pouco. Tentei lembrar mais alguns casos para homenagear um excelente filho, irmão, esposo, pai, avô, colega, amigo, mas não consegui, pois nesse garimpo de lembranças só encontrei tristeza e saudade na bateia da memória. Agora, toda vez que eu olhar para uma paineira, já sei que irei me lembrar de um homem bom e digno a quem tive a honra e a sorte de conhecer e de ter como cunhado, padrinho, compadre e amigo, meu caríssimo irmão Taco - que repousa agora à sombra de uma paineira.


2 comentários:

  1. "Pois, apesar de aparentar ser cascudo e espinhento como tronco de paineira, por dentro lembrava mais a paina que recheava os travesseiros de antigamente: acolhedor, amistoso e solidário."
    Se houver wi-fi no além (se houver um além),o Taco vai acessar o Blogson e derramar umas lágrimas, também por lá.

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