terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

DEUSES, TÚMULOS E SÁBIOS - A REVANCHE

Em 25 de dezembro de 1967 eu e meu irmão demos a nosso pai um livro que ele adorou. Como o próprio título indicava, o assunto era arqueologia. Eu também adorei o livro, ao ponto de lê-lo duas vezes. Uns dois anos antes de meu pai morrer, ganhei dele esse livro, todo assinalado por ele e com anotações nas laterais das páginas. É um livro divertidíssimo, cheio de histórias da “aurora da arqueologia”.

Logo no início do Blogson, transcrevi um trecho que trazia a descrição exata do dilúvio bíblico, só que muito mais antiga que o texto do Gênesis e encontrada em tabuinhas de argila da velhíssima Suméria. Muito bem.

Ontem, estava pentelhando pela internet à procura de alguma poesia para ler e, eventualmente, postar no blog, quando me lembrei de uma estrofe de quatro versos que tinha lido no livro de arqueologia. Resolvi então desencavar essa quadrinha para divulgar no blog, com a convicção de que a Poesia é uma inutilidade absolutamente necessária, essencial até mesmo para um cientista. Há ainda o fato de que provavelmente ninguém a conhece, principalmente por ter sido escrita por um figuraça, arqueólogo alemão do século XIX(!). Como a página onde estão esses versos traz algumas informações divertidas sobre esse sujeito, resolvi escanear tudo. Olhaí.


Robert Koldewey nasceu em Blankenburg, Alemanha, em 1855. Estudou arquitetura, arqueologia e história da arte em Berlim, Munique e Viena. Antes de completar trinta anos fez escavações em Assos e na ilha de Lesbos. Em 1887 escavou em Babilônia, em Surgul e EI-Hibba, mais tarde na Síria, no Sul da Itália e na Sicília, e, em 1894, outra vez na Síria.
Dos quarenta aos quarenta e três anos lecionou numa escola de arquitetura de Görlitz (uma época que ele não gostava de recordar), depois, em 1898, com quarenta e três anos, iniciou escavações em BabeI.
Koldewey era um homem estranho, e, principalmente na opinião dos seus colegas, um cientista estranho: O seu amor à arqueologia, geralmente tratada de maneira absolutamente seca nas publicações especializadas, não lhe turvava a vista para a apreciação da terra e dos povos, para o encanto do ambiente e para as mil e uma alegrias cotidianas, nem esgotou nunca a fonte de seu humor, que trasbordava exuberantemente de tudo o que escrevia.
Existem poesias do arqueólogo Koldewey, rimas nascidas de pura alegria de viver, aforismos que nos dão, com um piscar de olho, uma dúbia sabedoria. Não foi o estudante Koldewey e sim o professor de cinquenta e seis anos, mundialmente famoso, que produziu esta saudação de Ano Bom:

Dúbios são os caminhos do fado,
Ignorada a estrela do porvir.
Antes de deitar para dormir,
Um conhaque bebo de bom grado.

E há inumeráveis cartas suas, cuja nonchalante vivacidade folhetinística os ultra-sérios sábios normais olham não só com desconfiança, mas consideram indigna de um cientista.
            Assim escreve ele a propósito de uma viagem pela Itália: "Afora a escavação nada mais ocorre atualmente em Selinunte, mas noutro tempo o diabo andou à solta por estas bandas, e pode-se imaginar por quê: até onde a vista podia alcançar, a planície ondulante da costa era coberta pelos frutos da terra, pomares e vinhas, e tudo pertencia aos gregos de Selinunte, que desde alguns séculos gozavam dessa prosperidade em pai e harmonia. Isso durou até ao ano de 409, quando, em consequência de uma disputa com os habitantes de Segesta, os cartagineses vieram sobre eles e Aníbal Gisgon assaltou os muros dos aterrados selinuntenses com aríetes - o que foi tanto mais vil quanto ;inda há pouco os selinuntenses tinham sido aliados dos cartagineses. Mas Aníbal derrubou os muros negligenciados e, após nove dias de terríveis combates dentro da cidade, nos quais as mulheres tomaram parte muito ativa, jaziam 16.000 mortos nas ruas. Os bárbaros cartagineses entregaram-se então ao roubo e ao saque, sem respeitarem sagrado nem profano, ornando os cinturões de mãos decepadas e outras coisas horripilantes. Os selinuntenses nunca se refizeram desta derrota. Daí que hoje em dia os coelhos atravessem livremente as ruas de Selinunte com tanta frequência, e daí que, de vez em quando, ao jantar, nós pudéssemos comer um coelho, morto pelo Sr. Gioffré e que já estava assado e pronto quando, à noite, acabávamos de banhar o corpo cansado das escavações nas ondas ruidosas do mar eternamente inquieto"
Escreve sobre "a terra das óperas e dos tenores": "Está subentendido que todo o mundo tem voz, e um homem que mostre a mais leve dificuldade em dar um dó de peito é considerado um aleijado". - Depois,nas próximas linhas, entra muito seriamente na construção do templo,no século V A. C. - até que o espetáculo dos gendarmes italianos o faz pilheriar: “... vendo-os assim de casaca profusamente agaloada e imponente tricorne, dir-se-iam almirantes a cavalo. Assim cavalgam eles pelas estradas desertas, mantendo a ordem".(...)
O templo de Himera induziu-o a escrever a seguinte carta: "Mas que é feito da poderosa Himera!... Embaixo, bem junto à estrada de ferro, erguem-se os restos miseráveis do suntuoso templo, algumas de cujas colunas assentam no interior de um curral de vacas moderno. Um curral de vacas, nada mais nada menos! E as vacas esfregam-se nas caneluras e comportam-se em geral como não é próprio comportar-se num templo antigo. A única coisa que se pode fazer diante de tal procedimento é deplorar o templo e invejar as vacas. Pois quanto não dariam muitos arqueólogos alemães para poderem pernoitar num templo antigo!"




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