Em 25
de dezembro de 1967 eu e meu irmão demos a nosso pai um livro que ele adorou. Como
o próprio título indicava, o assunto era arqueologia. Eu também adorei o livro,
ao ponto de lê-lo duas vezes. Uns dois anos antes de meu pai morrer, ganhei
dele esse livro, todo assinalado por ele e com anotações nas laterais das
páginas. É um livro divertidíssimo, cheio de histórias da “aurora da
arqueologia”.
Logo no
início do Blogson, transcrevi um trecho que trazia a descrição exata do dilúvio
bíblico, só que muito mais antiga que o texto do Gênesis e encontrada em
tabuinhas de argila da velhíssima Suméria. Muito bem.
Ontem,
estava pentelhando pela internet à procura de alguma poesia para ler e, eventualmente,
postar no blog, quando me lembrei de uma estrofe de quatro versos que tinha
lido no livro de arqueologia. Resolvi então desencavar essa quadrinha para
divulgar no blog, com a convicção de que a Poesia é uma inutilidade
absolutamente necessária, essencial até mesmo para um cientista. Há ainda o
fato de que provavelmente ninguém a conhece, principalmente por ter sido
escrita por um figuraça, arqueólogo alemão do século XIX(!). Como a página onde
estão esses versos traz algumas informações divertidas sobre esse sujeito,
resolvi escanear tudo. Olhaí.
Robert Koldewey
nasceu em Blankenburg, Alemanha, em 1855. Estudou arquitetura, arqueologia e
história da arte em Berlim, Munique e Viena. Antes de completar trinta anos fez
escavações em Assos e na ilha de Lesbos. Em 1887 escavou em Babilônia, em
Surgul e EI-Hibba, mais tarde na Síria, no Sul da Itália e na Sicília, e, em
1894, outra vez na Síria.
Dos quarenta aos
quarenta e três anos lecionou numa escola de arquitetura de Görlitz (uma época
que ele não gostava de recordar), depois, em 1898, com quarenta e três anos,
iniciou escavações em BabeI.
Koldewey era um homem
estranho, e, principalmente na opinião dos seus colegas, um cientista estranho:
O seu amor à arqueologia, geralmente tratada de maneira absolutamente seca nas
publicações especializadas, não lhe turvava a vista para a apreciação da terra
e dos povos, para o encanto do ambiente e para as mil e uma alegrias
cotidianas, nem esgotou nunca a fonte de seu humor, que trasbordava
exuberantemente de tudo o que escrevia.
Existem poesias do
arqueólogo Koldewey, rimas nascidas de pura alegria de viver, aforismos que nos
dão, com um piscar de olho, uma dúbia sabedoria. Não foi o estudante Koldewey e
sim o professor de cinquenta e seis anos, mundialmente famoso, que produziu
esta saudação de Ano Bom:
Dúbios são os caminhos do fado,
Ignorada a estrela do porvir.
Antes de deitar para dormir,
Um conhaque bebo de bom grado.
E há inumeráveis
cartas suas, cuja nonchalante
vivacidade folhetinística os ultra-sérios sábios normais olham não só com
desconfiança, mas consideram indigna de um cientista.
Assim
escreve ele a propósito de uma viagem pela Itália: "Afora a escavação nada mais ocorre atualmente em Selinunte, mas noutro
tempo o diabo andou à solta por estas bandas, e pode-se imaginar por quê: até
onde a vista podia alcançar, a planície ondulante da costa era coberta pelos
frutos da terra, pomares e vinhas, e tudo pertencia aos gregos de Selinunte,
que desde alguns séculos gozavam dessa prosperidade em pai e harmonia. Isso
durou até ao ano de 409, quando, em consequência de uma disputa com os habitantes
de Segesta, os cartagineses vieram sobre eles e Aníbal Gisgon assaltou os muros
dos aterrados selinuntenses com aríetes - o que foi tanto mais vil quanto ;inda
há pouco os selinuntenses tinham sido aliados dos cartagineses. Mas Aníbal
derrubou os muros negligenciados e, após nove dias de terríveis combates dentro
da cidade, nos quais as mulheres tomaram parte muito ativa, jaziam 16.000
mortos nas ruas. Os bárbaros cartagineses entregaram-se então ao roubo e ao
saque, sem respeitarem sagrado nem profano, ornando os cinturões de mãos
decepadas e outras coisas horripilantes. Os selinuntenses nunca se refizeram
desta derrota. Daí que hoje em dia os coelhos atravessem livremente as ruas de
Selinunte com tanta frequência, e daí que, de vez em quando, ao jantar, nós
pudéssemos comer um coelho, morto pelo Sr. Gioffré e que já estava assado e
pronto quando, à noite, acabávamos de banhar o corpo cansado das escavações nas
ondas ruidosas do mar eternamente inquieto"
Escreve sobre "a
terra das óperas e dos tenores": "Está
subentendido que todo o mundo tem voz, e um homem que mostre a mais leve
dificuldade em dar um dó de peito é considerado um aleijado". -
Depois,nas próximas linhas, entra muito seriamente na construção do templo,no
século V A. C. - até que o espetáculo dos gendarmes italianos o faz pilheriar: “... vendo-os assim de casaca profusamente
agaloada e imponente tricorne, dir-se-iam almirantes a cavalo. Assim cavalgam
eles pelas estradas desertas, mantendo a ordem".(...)
O templo de Himera
induziu-o a escrever a seguinte carta: "Mas que é feito da poderosa Himera!... Embaixo, bem junto à estrada de
ferro, erguem-se os restos miseráveis do suntuoso templo, algumas de cujas
colunas assentam no interior de um curral de vacas moderno. Um curral de vacas,
nada mais nada menos! E as vacas esfregam-se nas caneluras e comportam-se em
geral como não é próprio comportar-se num templo antigo. A única coisa que se
pode fazer diante de tal procedimento é deplorar o templo e invejar as vacas.
Pois quanto não dariam muitos arqueólogos alemães para poderem pernoitar num
templo antigo!"
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