quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

NORTON ANTIVIRUS - "VERSÃO DO DIRETOR"

O Blogson tinha apenas quatro meses de vida quando resolvi postar um texto há muito abandonado, que era o embrião abortado de um livro que imaginei escrever. Para meu espanto, fez um sucesso danado (padrão Blogson, que fique bem claro). Depois dele divulguei a segunda e terceira parte (tinha de aproveitar, não é?). Pois bem, passado um tempo, resolvi juntar a primeira e terceira parte (a segunda era só de explicações) e mudei o título original. Como tenho obsessão por documentar tudo, resolvi guardar também essas explicações, para poder excluir os três posts originais.

O maior problema desses espicha-encolhes que invento é não saber mais onde está esse ou aquele texto, às vezes já no terceiro título, como é o caso agora. O título original era "Norton Antivirus", mudou para "O Sentido da Vida", "Há Sentido na Vida?" e terminou como "Ponto de Partida" (por ter sido o pontapé inicial para a criação do pretensiosíssimo Blogson Crusoe). 

Assim, para corrigir essa zona, resolvi fazer a "versão do diretor" do conto-crônica já publicado. Na verdade, será mais uma volta à versão original, um "back to basics", inclusive no título. Isso significa que ao texto ficcional junta-se agora o "making of" (rapaz, isto está muito pedante!). Bora lá.


MAKING OF - PARTE I

O texto deste post faz parte de meu projeto pessoal de registrar minhas lembranças – ou o que resta de minha memória – por mais ingênuas ou desinteressantes que possam ser. E o blog revelou-se ideal para isso. Mas, talvez fosse melhor deixar esses escritos em paz. Não por conterem alguma revelação íntima demais, mas por ser uma atitude presunçosa de minha parte imaginar que alguém possa ler e gostar do que leu.

Porque, ao contrário de todos os textos já divulgados no blog, este não é um comentário sobre uma situação qualquer nem é mais uma piadinha sem graça; é uma tentativa pretensiosa de escrever algum tipo de ficção. Mas este blog bem que poderia ter também como lema a frase "O blog da presunção exacerbada". Isso, porque tenho um certo carinho pelo texto, mesmo que seu objetivo original tenha resultado no mais absoluto fracasso. Essa afeição tem razões que só serão entendidas lendo-se a segunda parte deste “making of” (eita!). Espero que se divirtam (ou me critiquem) um pouco.

Neste ponto, entrava o texto inicial do livro (que acabou virando crônica).


PARTE II (“CORTA!!!”)

O tal livro foi interrompido na segunda página (!). Não tive mais paciência de continuar, principalmente depois de ter lido em um livro de psicologia que, à medida que as pessoas envelhecem, passam a querer perpetuar-se através de textos e coisas semelhantes. E eu, que me achava único, singular, descobri que tenho reações como as demais pessoas. Um sujeito mediano – assim como a maioria – ou medíocre, segundo meu colega Pintão.

E escrever muito é um trabalho árduo, pois você tem que se preocupar com a gramática, com a trama da história, tem que ficar ligado no “continuísmo” (igual nas novelas) para não se contradizer e, principalmente, tem de ter imaginação.

Para tentar minimizar essas dificuldades, o texto digitado naquela época foi imaginado como uma costura ou colagem de lembranças, não só pessoais como de todos os que convivem ou conviveram comigo. Não pretendia ser, portanto, um texto autobiográfico – nem deveria. Melhor seria defini-lo como “multibiográfico”. Acabou saindo um texto cheio de aspas, parênteses e indecisões. Ou seja, foi só um passatempo (pretensioso, diga-se) de fôlego muito curto.

Na época, até escrevi uma pequena introdução ao “livro”, quase uma “mea culpa” pelo potencial (e bastante provável) desastre literário que se prenunciava. E, antes que alguém pergunte, já vou explicando o motivo do nome esdrúxulo desse texto. Eu ainda não estava aposentado quando pensei na linha mestra de um livro que imaginava conseguir escrever. Comecei então a batucar a introdução no computador da empresa. Para não chamar atenção, salvei o arquivo com o nome de “Norton Antivírus”. Assim, se alguém usasse o computador na minha ausência, talvez não se interessasse em ler um informativo sobre um programa antivírus. Grande início! 

E aí vai a tal introdução – ou “mea culpa”:

Não sei quando surgiu o desejo de escrever um livro, mas existe há um bom tempo. No mínimo, uns dez anos. Também não está claro o motivo de querer fazer isso.  Penso que o ato de escrever implica em um desejo de aprovação, em uma vontade de ser elogiado, valorizado ou coisa assim, principalmente quando nos sentimos menosprezados, ignorados ou, até mesmo, vilipendiados.

Há ainda um componente “genético”, familiar, pois segundo meu pai (que também gostava de escrever seus textos), um de seus irmãos escrevia de forma magnífica, mas, até onde sei, nada ficou guardado pelos parentes, pois queimou tudo antes de morrer.

Finalmente, há aquele impulso criador que os verdadeiros escritores possuem, resultando em romances, contos, biografias, crônicas e toda sorte de expressão escrita. No meu caso, isso não se aplica, pois não tenho inspiração nenhuma. Fazer o quê?

Bom, o livro não saiu, mas não faz mal contar o que imaginei para ele. É a história de um sujeito de cinquenta a sessenta anos (“melhor idade” é a puta que pariu!), solitário, que se angustia com a aproximação da morte ou, pelo menos, com as incertezas que chegam com a velhice. Esse sentimento do personagem é o mesmo que começou a dominar minha mente depois de fazer cinquenta anos.


PARTE III

(O terceiro post trazia o final imaginado para o tal livro).
E aqui vai um “onde está Wally?” da inspiração, um verdadeiro Who’s Who "literário":

– solidão e afastamento dos filhos, marcas de cigarro e de copo na mesa e roupas espalhadas: um cunhado (na época) recém-separado;

– nome do personagem: irmão do meu avô materno;

– máquina Remington comprada em leilão e aparas de jornal: meu pai;

– mala de couro e quarto sem guarda-roupas: meu avô (ele se separou de minha avó, mas continuou morando na mesma casa, só que em um quarto no fundo do quintal – exceto quando ia visitar a segunda família que tinha);

– prateleiras feitas com tábuas sem acabamento e caixas de papelão (na verdade, embrulhos) cheias de papéis antigos e alguns livros: quarto onde eu e meu irmão dormíamos;

– escrivaninha antiga: nosso quarto.

Já viu que costurar essa confusão não seria uma tarefa muito fácil, não é? Curiosamente, há pouco tempo, comecei a escrever minhas lembranças das famílias de meu pai e minha mãe, citadas em anotação na parte final do texto. Também escrevi um pouco sobre minha infância e adolescência. Até parece uma ação instintiva para continuar o tal livro. O problema é tornar impessoais lembranças tão particulares. Seria necessário mudar nomes, datas, etc.

A mesma coisa precisaria ser feita com as conversas porventura existentes. Para dar verossimilhança aos diálogos, eu pretendia usar e-mails trocados com filhos, colegas e amigos. Imagina o trabalhão de despersonalizar essas conversas. Além do mais, a maioria desses diálogos se perdeu depois que me aposentei.

Outra coisa que pesou é a percepção de que, nesta história, a realidade seria muito mais interessante que a ficção, uma ficção meio esquizofrênica, meio Frankenstein.

 Resumindo, até que a linha mestra estava nítida. Foda seria o trabalhão dos diabos para “fazer a coisa acontecer”. Isso sem falar – fato não mencionado até agora – que o final (já imaginado) seria melancólico e oposto às novelas brasileiras, onde tudo acaba bem. Não esse final. Até porque o protagonista era um perdedor.

Voltando aos dias de hoje, depois de mudanças sucessivas de título, de exclusões dos posts originais, substituídos por outros que já nem sei onde encontrar, a solução mais sensata era juntar tudo no mesmo balaio e manter o título original, acrescido a título de piada da expressão “Versão do Diretor" e republicar. Se alguém leu até aqui, pode acreditar, seu fígado processa até ácido sulfúrico. E agora, o maravilhoso, magnífico, monumental, legalático texto (que os 2,3 leitores do blog já conhecem). Fui.



NORTON ANTIVIRUS

 Quem chega à porta do quarto, pouca coisa tem para olhar. Imediatamente à direita, logo após a ombreira da porta, algumas prateleiras feitas com tábuas sem acabamento vergam-se sob o peso de caixas de papelão cheias de papéis antigos e alguns livros. Encostada na parede à direita, no canto, encontra-se uma cama de solteiro, desarrumada.

Ao fundo, um banco de madeira suporta uma mala de couro cru, decorada com desenhos feitos a ferro quente, onde são guardadas as peças de vestuário, já que o quarto não tem armário embutido nem guarda-roupa.

À esquerda, debaixo da janela, vê-se uma velha escrivaninha e, sobre ela, roupas sujas misturam-se descuidadamente com jornais antigos, algumas frutas, uma sacola com pães e uma máquina de escrever. A máquina é uma Remington cor de ouro-velho e foi comprada anos atrás em um leilão. Uma cadeira com o assento estofado já gasto e desbotado – sempre usada como cabide de calças – completa a mobília do quarto.

Tudo ali é velho ou ordinário. O tampo de madeira da escrivaninha ostenta várias marcas circulares desbotadas, causadas por copos cheios de água que ali coloca antes de deitar-se. As bordas são escuras e queimadas pelos cigarros que acendeu e se esqueceu de pegar, no tempo em que ainda fumava.

O quarto onde passa a maior parte do tempo é alugado e fica nos fundos de uma casa velha, transformada em pensão. O acesso a ele é feito através de um corredor na lateral, o que lhe confere alguma independência e privacidade.

Na carteira de identidade consta o nome de Odorêncio, dado em homenagem a um tio-avô que nunca viu. Tem sessenta anos presumíveis. Os cabelos já escassos estão quase totalmente brancos. A barriga flácida e volumosa teima em derramar-se sobre o cinto.

Como vem acontecendo há tempos, sente-se infeliz e irritado com a vida que leva. Não tem amigos com quem conversar – “não tenho amigos, tenho apenas conhecidos”.

Depois que se separou, praticamente perdeu o contato com os filhos, que não o procuram nunca, exceto para pedir algum dinheiro. Dos parentes próximos – poucos – também não dá notícia.

Como está aposentado, quando não está lendo, escreve coisas que depois joga no lixo, numa rotina tediosa e um pouco angustiante.

Cumprindo uma espécie de ritual diário, Odorêncio aproxima-se da escrivaninha, tira um pé de meia preta de cima da máquina e, com zelo e interesse, usa-o como espanador para limpar os farelos de pão espalhados no tampo da mesa. Concluída a limpeza, senta-se na cadeira, retira de uma das gavetas um pacote de aparas de papel de jornal, cortadas em tamanho “ofício”. Pega uma das folhas e coloca-a cuidadosamente na máquina. Junta as duas extremidades para ver se estão bem alinhadas e se dá por satisfeito.

Existirmos: a que será que se destina?” Quando criança, eu era um menino cheio de inseguranças variadas. Adolescendo, comecei a não ter certeza de nada, verdadeiro espelho do Raul Seixas ("prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo").
À medida que fui envelhecendo, foi aumentando mais e mais minha perplexidade sobre essa coisa incompreensível chamada Vida, de tal forma que hoje eu me sinto totalmente solidário com quem pronunciou essa pérola: "‘só sei que nada sei”.

– “Início mais lixo que esse, impossível”, pensou, enquanto retirava e amassava a folha. Pegou nova folha, repetiu o ritual e começou:

Qual é o sentido da vida? Deve haver um sentido para a vida! Não é possível que os seres vivos tenham surgido por conta de um capricho de moléculas de carbono delinquentes e desocupadas! Não consigo entender que uma pessoa, um animal ou mesmo uma bactéria sejam apenas sistemas fechados, programados para reproduzir-se e movido por impulsos eletroquímicos. Para que? É tão imbecil pensar assim! Por outro lado...

Sentiu-se ridículo escrevendo sobre coisas que sabia não ter condições de explicar ou entender. Invejou as grandes mentes da humanidade (– “eu temo o poder e admiro o conhecimento, mas a única coisa que eu respeito de verdade é a inteligência”, gostava de dizer para os antigos colegas de trabalho).

Arranca a folha, amassa-a e joga no chão. Pega outra folha, coloca na máquina e recomeça:

Sinto-me como se fosse o resultado de um projeto ambicioso que não deu certo, seja por defeito de concepção, seja por erro de dimensionamento, talvez pela má qualidade dos materiais empregados ou por falhas no processo produtivo ou, até mesmo, por vícios de utilização.

Divertiu-se com a ideia e prosseguiu:

Não sei por que algumas pessoas dão-se bem na vida, constituem família, divertem-se e enriquecem, enquanto outras caminham justamente na direção oposta. Não se trata aqui de reinventar a psicologia ou outra ciência do comportamento, apenas de constatar uma realidade estranha e desigual. Qual é o sentido disso, qual a lógica obscura disso tudo? Afinal, qual é o sentido da vida? Não sei o sentido da vida e talvez trocasse a minha própria pela resposta a essa pergunta.

Por alguns instantes ficou imóvel, sem saber como continuar. Irritou-se pela falta de imaginação, pela incapacidade de verbalizar os pensamentos confusos que giravam em sua mente. Ia tirar de novo o papel da máquina, quando lhe ocorreu uma ideia que pareceu interessante:

– Vou escrever sobre minha vida. Talvez, ao resgatar todas as lembranças, isso me ajude a compreender o sentido da vida. Se não da Vida, metafisicamente falando, pelo menos da minha.

Acreditando que finalmente tinha imaginado algo que o faria preencher as longas horas ociosas, deixou-se ficar pensativo. Não tinha ilusões sobre a qualidade literária do que iria produzir, mas intimamente, tinha a convicção de que todo romance, toda obra de ficção tem sempre alguma coisa de autobiográfico.

Os dois indicadores usados para datilografar começam a bater nas teclas:

- Nasci em uma família...

As lembranças, as conversas, as impressões e as mágoas foram pouco a pouco preenchendo aquelas folhas, empilhadas cuidadosamente em uma caixa de camisa social que tinha guardado. Nada escapou de ser registrado, mesmo os casos mais fúteis, mesmo as conversas mais tolas. Ainda no início, olhando a papelada que se avolumava, pensou em voz alta, não sem uma ponta de ironia:

– Minha história e minha vida estão nesta caixa!

Entretanto, à medida que o texto e as lembranças se aproximavam do momento em que se encontrava, Odorêncio ia ficando mais e mais inquieto e irritado. Já tinha até comprado outra resma de papel, já tinha trocado a fita da máquina. E o que seria uma forma de passar o tempo havia se transformado aos poucos em obsessão. E aquela agitação só aumentava. Afinal, mesmo depois de passar em revista toda a sua vida, Odorêncio continuava no mesmo ponto onde tinha começado. Exasperado, exclamou quase gritado:

– Qual é a porra do sentido da minha vida?

Nesse instante, começou a sentir um mal estar, um pouco de enjoo. – "Será que é aquela carne de porco que eu comi? Talvez fosse bom tomar um bicarbonato...", pensou. Sentou-se na cama e passou a mão na testa. Percebeu que estava suando frio. Sem entender o que estava acontecendo, tentou se levantar. Uma dor intensa que começava no peito e que se irradiava para o braço esquerdo – como se uma mão invisível estivesse esmagando seu coração – o impediu. Meio tonto e com dificuldade para respirar, pensou em chamar alguém, em pedir ajuda.

* * *

Duas mulheres de aparência cansada e lenço amarrado na cabeça limpam o quarto. Enquanto a mais nova varre o cômodo e recolhe o lixo espalhado, a outra tira o lençol da cama e faz uma trouxa com a roupa suja.

– O velho era bem porco. Olha essa mesa como tá suja!

– Ah, homem é assim mesmo, tudo igual. Ainda mais se mora sozinho...

– Os filhos estiveram aqui mais cedo e pegaram uns documentos, livros, dinheiro...

– Disseram que é pra dar as roupas e os sapatos pra algum asilo.

– A mala também?

– Sei não.

– Ó, tem uma papelada danada dentro desta caixa. Tá tudo escrito. Que é que vai fazer com isso?

– Eles falaram que é papel à toa, sem importância, que pode jogar tudo fora.



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