O
Blogson tinha apenas quatro meses de vida quando resolvi postar um texto há
muito abandonado, que era o embrião abortado de um livro que imaginei escrever.
Para meu espanto, fez um sucesso danado (padrão Blogson, que fique bem claro).
Depois dele divulguei a segunda e terceira parte (tinha de aproveitar, não é?).
Pois bem, passado um tempo, resolvi juntar a primeira e terceira parte (a
segunda era só de explicações) e mudei o título original. Como tenho obsessão
por documentar tudo, resolvi guardar também essas explicações, para poder
excluir os três posts originais.
O maior problema desses espicha-encolhes que invento é não saber mais onde está esse ou aquele texto, às vezes já no terceiro título, como é o caso agora. O título original era "Norton Antivirus", mudou para "O Sentido da Vida", "Há Sentido na Vida?" e terminou como "Ponto de Partida" (por ter sido o pontapé inicial para a criação do pretensiosíssimo Blogson Crusoe).
Assim,
para corrigir essa zona, resolvi fazer a "versão do diretor" do conto-crônica já publicado. Na
verdade, será mais uma volta à versão original, um "back to basics", inclusive no
título. Isso significa que ao texto ficcional junta-se agora o "making of" (rapaz, isto está
muito pedante!). Bora lá.
MAKING OF - PARTE I
O texto deste post faz parte de meu
projeto pessoal de registrar minhas lembranças – ou o que resta de
minha memória – por mais ingênuas ou desinteressantes que possam ser.
E o blog revelou-se ideal para isso. Mas, talvez fosse melhor deixar esses
escritos em paz. Não por conterem alguma revelação íntima demais, mas por ser
uma atitude presunçosa de minha parte imaginar que alguém possa ler e gostar do
que leu.
Porque, ao contrário de todos os
textos já divulgados no blog, este não é um comentário sobre uma situação
qualquer nem é mais uma piadinha sem graça; é uma tentativa pretensiosa de
escrever algum tipo de ficção. Mas este blog bem que poderia ter também como
lema a frase "O blog da presunção exacerbada". Isso, porque tenho um
certo carinho pelo texto, mesmo que seu objetivo original tenha resultado no
mais absoluto fracasso. Essa afeição tem razões que só serão entendidas
lendo-se a segunda parte deste “making of” (eita!). Espero que se divirtam (ou
me critiquem) um pouco.
Neste ponto, entrava o texto inicial
do livro (que acabou virando crônica).
PARTE II (“CORTA!!!”)
O tal livro foi interrompido na
segunda página (!). Não tive mais paciência de continuar, principalmente depois
de ter lido em um livro de psicologia que, à medida que as pessoas envelhecem,
passam a querer perpetuar-se através de textos e coisas semelhantes. E eu, que
me achava único, singular, descobri que tenho reações como as demais pessoas.
Um sujeito mediano – assim como a maioria – ou medíocre, segundo meu colega
Pintão.
E escrever muito é um trabalho árduo,
pois você tem que se preocupar com a gramática, com a trama da história, tem
que ficar ligado no “continuísmo” (igual nas novelas) para não se contradizer
e, principalmente, tem de ter imaginação.
Para tentar minimizar essas
dificuldades, o texto digitado naquela época foi imaginado como uma costura ou
colagem de lembranças, não só pessoais como de todos os que convivem ou
conviveram comigo. Não pretendia ser, portanto, um texto autobiográfico – nem
deveria. Melhor seria defini-lo como “multibiográfico”. Acabou saindo um texto
cheio de aspas, parênteses e indecisões. Ou seja, foi só um passatempo
(pretensioso, diga-se) de fôlego muito curto.
Na época, até escrevi uma pequena
introdução ao “livro”, quase uma “mea culpa” pelo potencial (e
bastante provável) desastre literário que se prenunciava. E, antes que
alguém pergunte, já vou explicando o motivo do nome esdrúxulo desse texto. Eu
ainda não estava aposentado quando pensei na linha mestra de um livro que
imaginava conseguir escrever. Comecei então a batucar a introdução no
computador da empresa. Para não chamar atenção, salvei o arquivo com o nome de
“Norton Antivírus”. Assim, se alguém usasse o computador na minha ausência,
talvez não se interessasse em ler um informativo sobre um programa antivírus.
Grande início!
E aí vai a tal introdução – ou “mea culpa”:
Não sei quando surgiu o desejo de
escrever um livro, mas existe há um bom tempo. No mínimo, uns dez anos. Também
não está claro o motivo de querer fazer isso. Penso que o ato de
escrever implica em um desejo de aprovação, em uma vontade de ser elogiado,
valorizado ou coisa assim, principalmente quando nos sentimos menosprezados,
ignorados ou, até mesmo, vilipendiados.
Há ainda um componente “genético”,
familiar, pois segundo meu pai (que também gostava de escrever seus textos), um
de seus irmãos escrevia de forma magnífica, mas, até onde sei, nada ficou
guardado pelos parentes, pois queimou tudo antes de morrer.
Finalmente, há aquele impulso criador
que os verdadeiros escritores possuem, resultando em romances, contos,
biografias, crônicas e toda sorte de expressão escrita. No meu caso, isso não
se aplica, pois não tenho inspiração nenhuma. Fazer o quê?
Bom, o livro não saiu, mas não faz mal
contar o que imaginei para ele. É a história de um sujeito de cinquenta a
sessenta anos (“melhor idade” é a puta que pariu!), solitário, que se angustia
com a aproximação da morte ou, pelo menos, com as incertezas que chegam com a
velhice. Esse sentimento do personagem é o mesmo que começou a dominar minha
mente depois de fazer cinquenta anos.
PARTE III
(O terceiro post trazia o final
imaginado para o tal livro).
E aqui vai um “onde está Wally?” da
inspiração, um verdadeiro Who’s Who "literário":
– solidão e afastamento dos
filhos, marcas de cigarro e de copo na mesa e roupas espalhadas: um cunhado (na
época) recém-separado;
– nome do personagem: irmão do
meu avô materno;
– máquina Remington comprada em leilão
e aparas de jornal: meu pai;
– mala de couro e quarto sem
guarda-roupas: meu avô (ele se separou de minha avó, mas continuou morando na
mesma casa, só que em um quarto no fundo do
quintal – exceto quando ia visitar a segunda família que tinha);
– prateleiras feitas com tábuas
sem acabamento e caixas de papelão (na verdade, embrulhos) cheias de papéis
antigos e alguns livros: quarto onde eu e meu irmão dormíamos;
– escrivaninha antiga: nosso
quarto.
Já viu que costurar essa confusão não
seria uma tarefa muito fácil, não é? Curiosamente, há pouco tempo, comecei a
escrever minhas lembranças das famílias de meu pai e minha mãe, citadas em
anotação na parte final do texto. Também escrevi um pouco sobre minha infância
e adolescência. Até parece uma ação instintiva para continuar o tal livro. O
problema é tornar impessoais lembranças tão particulares. Seria necessário
mudar nomes, datas, etc.
A mesma coisa precisaria ser feita com
as conversas porventura existentes. Para dar verossimilhança aos diálogos, eu
pretendia usar e-mails trocados com filhos, colegas e amigos. Imagina o
trabalhão de despersonalizar essas conversas. Além do mais, a maioria desses
diálogos se perdeu depois que me aposentei.
Outra coisa que pesou é a percepção de
que, nesta história, a realidade seria muito mais interessante que a ficção,
uma ficção meio esquizofrênica, meio Frankenstein.
Resumindo, até que a linha
mestra estava nítida. Foda seria o trabalhão dos diabos para “fazer a coisa
acontecer”. Isso sem falar – fato não mencionado até agora – que o final (já
imaginado) seria melancólico e oposto às novelas brasileiras, onde tudo acaba
bem. Não esse final. Até porque o protagonista era um perdedor.
Voltando
aos dias de hoje, depois de mudanças sucessivas de título, de exclusões dos
posts originais, substituídos por outros que já nem sei onde encontrar, a
solução mais sensata era juntar tudo no mesmo balaio e manter o título
original, acrescido a título de piada da expressão “Versão do Diretor" e
republicar. Se alguém leu até aqui, pode acreditar, seu fígado processa até
ácido sulfúrico. E agora, o maravilhoso, magnífico, monumental, legalático
texto (que os 2,3 leitores do blog já conhecem). Fui.
NORTON ANTIVIRUS
Quem
chega à porta do quarto, pouca coisa tem para olhar. Imediatamente à direita,
logo após a ombreira da porta, algumas prateleiras feitas com tábuas sem
acabamento vergam-se sob o peso de caixas de papelão cheias de papéis antigos e
alguns livros. Encostada na parede à direita, no canto, encontra-se uma cama de
solteiro, desarrumada.
Ao fundo, um banco de madeira suporta uma
mala de couro cru, decorada com desenhos feitos a ferro quente, onde são
guardadas as peças de vestuário, já que o quarto não tem armário embutido nem
guarda-roupa.
À esquerda, debaixo da janela, vê-se uma
velha escrivaninha e, sobre ela, roupas sujas misturam-se descuidadamente com
jornais antigos, algumas frutas, uma sacola com pães e uma máquina de escrever.
A máquina é uma Remington cor de ouro-velho e foi comprada anos atrás em um
leilão. Uma cadeira com o assento estofado já gasto e desbotado – sempre usada
como cabide de calças – completa a mobília do quarto.
Tudo ali é velho ou ordinário. O tampo de
madeira da escrivaninha ostenta várias marcas circulares desbotadas, causadas
por copos cheios de água que ali coloca antes de deitar-se. As bordas são
escuras e queimadas pelos cigarros que acendeu e se esqueceu de pegar, no tempo
em que ainda fumava.
O quarto onde passa a maior parte do tempo é
alugado e fica nos fundos de uma casa velha, transformada em pensão. O acesso a
ele é feito através de um corredor na lateral, o que lhe confere alguma
independência e privacidade.
Na carteira de identidade consta o nome de
Odorêncio, dado em homenagem a um tio-avô que nunca viu. Tem sessenta anos
presumíveis. Os cabelos já escassos estão quase totalmente brancos. A barriga
flácida e volumosa teima em derramar-se sobre o cinto.
Como vem acontecendo há tempos, sente-se
infeliz e irritado com a vida que leva. Não tem amigos com quem conversar – “não
tenho amigos, tenho apenas conhecidos”.
Depois que se separou, praticamente perdeu o
contato com os filhos, que não o procuram nunca, exceto para pedir algum
dinheiro. Dos parentes próximos – poucos – também não dá notícia.
Como está aposentado, quando não está lendo,
escreve coisas que depois joga no lixo, numa rotina tediosa e um pouco
angustiante.
Cumprindo uma espécie de ritual diário,
Odorêncio aproxima-se da escrivaninha, tira um pé de meia preta de cima da
máquina e, com zelo e interesse, usa-o como espanador para limpar os farelos de
pão espalhados no tampo da mesa. Concluída a limpeza, senta-se na cadeira,
retira de uma das gavetas um pacote de aparas de papel de jornal, cortadas em
tamanho “ofício”. Pega uma das folhas e coloca-a cuidadosamente na máquina. Junta
as duas extremidades para ver se estão bem alinhadas e se dá por satisfeito.
“Existirmos:
a que será que se destina?” Quando criança, eu era um menino cheio de
inseguranças variadas. Adolescendo, comecei a não ter certeza de nada,
verdadeiro espelho do Raul Seixas ("prefiro ser essa metamorfose
ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo").
À medida que fui envelhecendo, foi
aumentando mais e mais minha perplexidade sobre essa coisa incompreensível
chamada Vida, de tal forma que hoje eu me sinto totalmente solidário com quem
pronunciou essa pérola: "‘só sei que nada sei”.
– “Início
mais lixo que esse, impossível”, pensou, enquanto retirava e amassava a
folha. Pegou nova folha, repetiu o ritual e começou:
Qual é o sentido da vida? Deve haver
um sentido para a vida! Não é possível que os seres vivos tenham surgido por
conta de um capricho de moléculas de carbono delinquentes e desocupadas! Não
consigo entender que uma pessoa, um animal ou mesmo uma bactéria sejam apenas
sistemas fechados, programados para reproduzir-se e movido por impulsos
eletroquímicos. Para que? É tão imbecil pensar assim! Por outro lado...
Sentiu-se ridículo escrevendo sobre coisas
que sabia não ter condições de explicar ou entender. Invejou as grandes mentes
da humanidade (– “eu
temo o poder e admiro o conhecimento, mas a única coisa que eu respeito de
verdade é a inteligência”, gostava de dizer para os antigos colegas de
trabalho).
Arranca a folha, amassa-a e joga no chão.
Pega outra folha, coloca na máquina e recomeça:
Sinto-me como se fosse o resultado de
um projeto ambicioso que não deu certo, seja por defeito de concepção, seja por
erro de dimensionamento, talvez pela má qualidade dos materiais empregados ou
por falhas no processo produtivo ou, até mesmo, por vícios de utilização.
Divertiu-se com a ideia e prosseguiu:
Não sei por que algumas pessoas dão-se
bem na vida, constituem família, divertem-se e enriquecem, enquanto outras
caminham justamente na direção oposta. Não se trata aqui de reinventar a
psicologia ou outra ciência do comportamento, apenas de constatar uma realidade
estranha e desigual. Qual
é o sentido disso, qual a lógica obscura disso tudo? Afinal, qual é o sentido
da vida? Não sei o sentido da vida e talvez trocasse a minha própria pela
resposta a essa pergunta.
Por alguns instantes ficou imóvel, sem saber
como continuar. Irritou-se pela falta de imaginação, pela incapacidade de
verbalizar os pensamentos confusos que giravam em sua mente. Ia tirar de novo o
papel da máquina, quando lhe ocorreu uma ideia que pareceu interessante:
– Vou
escrever sobre minha vida. Talvez, ao resgatar todas as lembranças, isso me
ajude a compreender o sentido da vida. Se não da Vida, metafisicamente falando,
pelo menos da minha.
Acreditando que finalmente tinha imaginado
algo que o faria preencher as longas horas ociosas, deixou-se ficar pensativo.
Não tinha ilusões sobre a qualidade literária do que iria produzir, mas
intimamente, tinha a convicção de que todo romance, toda obra de ficção tem
sempre alguma coisa de autobiográfico.
Os dois indicadores usados para datilografar
começam a bater nas teclas:
- Nasci em uma família...
As lembranças, as conversas,
as impressões e as mágoas foram pouco a pouco preenchendo aquelas folhas,
empilhadas cuidadosamente em uma caixa de camisa social que tinha guardado.
Nada escapou de ser registrado, mesmo os casos mais fúteis, mesmo as conversas
mais tolas. Ainda no início, olhando a papelada que se avolumava, pensou em voz
alta, não sem uma ponta de ironia:
– Minha história e
minha vida estão nesta caixa!
Entretanto, à medida que o
texto e as lembranças se aproximavam do momento em que se encontrava, Odorêncio
ia ficando mais e mais inquieto e irritado. Já tinha até comprado outra resma
de papel, já tinha trocado a fita da máquina. E o que seria uma forma de passar
o tempo havia se transformado aos poucos em obsessão. E aquela agitação só
aumentava. Afinal,
mesmo depois de passar em revista toda a sua vida, Odorêncio continuava no
mesmo ponto onde tinha começado. Exasperado, exclamou quase gritado:
– Qual é a porra do
sentido da minha vida?
Nesse instante, começou a
sentir um mal estar, um pouco de enjoo. – "Será que é aquela
carne de porco que eu comi? Talvez fosse bom tomar um bicarbonato...",
pensou. Sentou-se na cama e passou a mão na testa. Percebeu que estava suando
frio. Sem entender o que estava acontecendo, tentou se levantar. Uma dor
intensa que começava no peito e que se irradiava para o braço esquerdo – como
se uma mão invisível estivesse esmagando seu coração – o impediu. Meio tonto e
com dificuldade para respirar, pensou em chamar alguém, em pedir ajuda.
* *
*
Duas mulheres de aparência
cansada e lenço amarrado na cabeça limpam o quarto. Enquanto a mais nova varre
o cômodo e recolhe o lixo espalhado, a outra tira o lençol da cama e faz uma
trouxa com a roupa suja.
– O velho era bem
porco. Olha essa mesa como tá suja!
– Ah, homem é assim
mesmo, tudo igual. Ainda mais se mora sozinho...
– Os filhos estiveram
aqui mais cedo e pegaram uns documentos, livros, dinheiro...
– Disseram que é pra
dar as roupas e os sapatos pra algum asilo.
– A mala também?
– Sei não.
– Ó, tem uma papelada
danada dentro desta caixa. Tá tudo escrito. Que é que vai fazer com isso?
– Eles falaram que é
papel à toa, sem importância, que pode jogar tudo fora.
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