Em dezembro de 2014 eu
divulguei no blog um post reverencial sobre o Ferreira Gullar, que trazia além
de um poema belíssimo, trechos de uma entrevista ao jornalista Pedro Dias Leite,
da revista Veja. Dois anos depois dessa entrevista, morre o poeta. Aí resolvi
transcrever alguns trechos como homenagem a um sujeito muito bom, muito
sofrido, muito poético, muito poeta.
UMA VISÃO CRÍTICA DAS COISAS
Um dos maiores poetas
brasileiros de todos os tempos, Ferreira Gullar, 84 anos, foi militante do
Partido Comunista Brasileiro e, exilado pela ditadura militar, viveu na União
Soviética, no Chile e na Argentina.
Desiludiu-se do socialismo
em todas as suas formas e hoje acha o capitalismo “invencível”.
É autor de versos
clássicos — “À vida falta uma parte / — seria o lado de fora — / para
que se visse passar / ao mesmo tempo que passa / e no final fosse apenas / um
tempo de que se acorda / não um sono sem resposta. / À vida falta uma porta”.
Gullar teve dois filhos
afligidos pela esquizofrenia. Um deles morreu. O poeta narra o drama familiar e
faz a defesa da internação em hospitais psiquiátricos dos doentes em fase
aguda. Sobre seu ofício, diz: “Tem
de haver espanto, não se faz poesia a frio”.
— O senhor já disse que
“se bacharelou em subversão” em Moscou e escreveu um poema em que a moça era
“quase tão bonita quanto a revolução cubana”. Como se deu sua desilusão com a
utopia comunista?
— Não houve nenhum fato
determinado. Nenhuma decepção específica. Foi uma questão de reflexão, de
experiência de vida, de as coisas irem acontecendo, não só comigo, mas no
contexto internacional. É fato que as coisas mudaram. O socialismo fracassou.
Quando o Muro de Berlim caiu, minha visão já era bastante crítica.
A derrocada do socialismo
não se deu ao cabo de alguma grande guerra. O fracasso do sistema foi interno.
Voltei a Moscou há alguns anos. O túmulo do Lenin está ali na Praça Vermelha,
mas pelo resto da cidade só se veem anúncios da Coca-Cola. Não tenho dúvida
nenhuma de que o socialismo acabou, só alguns malucos insistem no contrário. Se
o socialismo entrou em colapso quando ainda tinha a União Soviética como
segunda força econômica e militar do mundo, não vai ser agora que esse sistema
vai vencer.
— Por que o capitalismo
venceu?
— O capitalismo do século
XIX era realmente uma coisa abominável, com um nível de exploração inaceitável.
As pessoas com espírito de solidariedade e com sentimento de justiça se
revoltaram contra aquilo. O Manifesto Comunista, de Marx, em 1848, e o
movimento que se seguiu tiveram um papel importante para mudar a sociedade.
A luta dos trabalhadores,
o movimento sindical, a tomada de consciência dos direitos, tudo isso fez
melhorar a relação capital-trabalho. O que está errado é achar, como Marx diz,
que quem produza riqueza é o trabalhador e o capitalista só o explora. É
bobagem. Sem a empresa, não existe riqueza. Um depende do outro. O empresário é
um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É um criador,
um indivíduo que faz coisas novas.
A visão de que só um lado
produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária. A partir
dessa miopia, tudo o mais deu errado para o campo socialista. Mas é um equívoco
concluir que a derrocada do socialismo seja a prova de que o capitalismo é
inteiramente bom. O capitalismo é a expressão do egoísmo, da voracidade humana,
da ganância. O ser humano é isso, com raras exceções.
O capitalismo é forte
porque é instintivo. O socialismo foi um sonho maravilhoso, uma realidade
inventada que tinha como objetivo criar uma sociedade melhor. O capitalismo não
é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos instintos do
ser humano. Por isso ele é invencível.
A força que torna o
capitalismo invencível vem dessa origem natural indiscutível. Agora mesmo,
enquanto falamos, há milhões de pessoas inventando maneiras novas de ganhar
dinheiro. É óbvio que um governo central com seis burocratas dirigindo um país
não vai ter a capacidade de ditar rumos a esses milhões de pessoas. Não tem
cabimento.
— O senhor se considera um
direitista?
— Eu, de direita? Era só o
que faltava. A questão é muito clara. Quando ser de esquerda dava cadeia,
ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é. Pensar isso a meu respeito não
é honesto. Porque o que estou dizendo é que o socialismo acabou, estabeleceu
ditaduras, não criou democracia em lugar algum e matou gente em quantidade.
Isso tudo é verdade. Não estou inventando.
— E Cuba?
— Não posso defender um
regime sob o qual eu não gostaria de viver. Não posso admirar um país do qual
eu não possa sair na hora que quiser. Não dá para defender um regime em que não
se possa publicar um livro sem pedir permissão ao governo. Apesar disso, há uma
porção de intelectuais brasileiros que defendem Cuba, mas, obviamente, não
querem viver lá de jeito nenhum. É difícil para as pessoas reconhecer que
estavam erradas, que passaram a vida toda pregando uma coisa que nunca deu
certo.
— Como o senhor define sua
visão política?
— Não acho que o
capitalismo seja justo. O capitalismo é uma fatalidade, não tem saída. Ele
produz desigualdade e exploração. A natureza é injusta. A justiça é uma
invenção humana. Um nasce inteligente e o outro burro. Um nasce inteligente, o
outro aleijado. Quem quer corrigir essa injustiça somos nós. A capacidade
criativa do capitalismo é fundamental para a sociedade se desenvolver, para a
solução da desigualdade, porque é só a produção da riqueza que resolve isso. A
função do estado é impedir que o capitalismo leve a exploração ao nível que ele
quer levar.
(...)
— O senhor condena quem
pegou em armas para lutar contra o regime militar?
— Quem aderiu à luta
armada foram pessoas generosas, íntegras, tanto que algumas sacrificaram sua
vida. Mas por um equívoco. Você tem de ter uma visão critica das coisas, não
pode ficar eternamente se deixando levar por revolta, por ressentimentos. A melhor
coisa para o inimigo é o outro perder a cabeça. Lutar contra quem está lúcido é
mais difícil do que lutar contra um desvairado.
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