No final da década de 1960 e início da década
de 1970 eles formavam uma gangue de adolescentes na faixa dos doze a quinze
anos, Os apelidos eram sonoros e, em alguns casos, indicadores das qualidades
ou defeitos do “portador”. Paulinho
Grande (ou Elza Soares), Guelcha, Du, Élcio, Diogo, Trombada (ou Bum),
Quarenta, Bamba, Quinho, Murilo, Ita (Itamar), os irmãos Ari, Geraldo e Bifão, Cadinho, Paulinho
Preto (ou Paulinho Pequeno), Glauco, Dôque e Gerinho. Acredito que o Glauco
e os irmãos Dôque e Gerinho chegaram mais tarde, já na década de 1980, mas
incorporaram bem o espírito daquele bando de malucos.
Havia ainda o “time reserva”, formado pelos
irmãos mais novos de alguns: Alaor, Lelé,
Fernando, Iberê, Léo, Betinho, Joãozinho, Reinaldo, Serjão, Mário Lúcio e Cesar.
Praticamente todos moravam na mesma rua.
Paulinho Grande (ou simplesmente Paulinho),
Guelcha, Du, Élcio, Glauco, Diogo e os irmãos Ari, Geraldo e Bifão formavam o
“núcleo duro” da turma, justamente por serem os mais criativos, engraçados,
sacanas ou bons de briga.
Uma
vez resolveram "decorar" o fusquinha do namorado de uma das minhas
cunhadas com guirlandas de papel higiênico e vasos de flores. Até que ficou
bacana. Mas, como reagir a isso? Em outra ocasião colaram o portão da garagem
do sujeito mais rico da rua, a quem sempre provocavam. Sua esposa começou um
dia a usar uma espécie de turbante. Bastou isso para o marido passar a ser
saudado de joelhos, aos gritos de "Oh
Marajá!" E depois riam cinicamente.
Todos eram politicamente incorretos, todos
passavam o tempo livre conversando fiado, soltando papagaio, jogando futebol,
arranjando briga com as turmas de outros bairros nas festinhas que organizavam
ou fazendo sacanagens divertidíssimas com outras pessoas, às vezes com eles
próprios.
O Trombada, por exemplo, tinha esse apelido
pois seria fruto da colisão de uma locomotiva com uma carroça, pois era de uma
feiura desconcertante. Aproveitando ainda a piada cruel, era chamado por alguns
de “Bum”, que seria o barulho
provocado pela trombada. Embora utilizado só uma ou duas vezes, o mais criativo
foi “Mapa do Inferno”, graças às
calosidades ósseas que possuía na testa, que teriam sugerido a um dos sacanas a
sensação de relevo, com “montes e vales”.
Esse coitadinho era vítima frequente de bullying dos “amigos”, que, à falta do
que fazer, ficavam marchando à noite, enquanto cantavam “eu fui à tourada de Madri, pararatiBUM bum bum”. Ou, saiam em "procissão", entoando a "Marcha Fúnebre" de Chopin: "tan tan taran, tan taran taran tan tan BUM!!!!" Coisa de puro filho
da puta, puríssimo, sem diluição.
Às vezes, também à noite, colocavam nos muros
mais altos latas com água suja, amarradas a uma linha que era puxada quando
passava algum infeliz aleatoriamente escolhido. E riam descaradamente quando
alguém reclamava.
Outra idiotice, essa mais inofensiva, era
colocar uma cobra de pano escondida na saída da água de chuva dos muros, também
puxada quando passava alguma mulher. Ou soltar bombas de festa junina dentro de
latas de lixo e por aí vai.
Um dia, um dos “criativos” da turma teve a
ideia mais genial de que me lembro: ficaram acordados até depois da meia-noite
e começaram a roubar os vasos de plantas de todas as casas. Os muros eram
baixos e os portões não tinham tranca nem cadeado, o que facilitou a execução
do plano, que era simplesmente a troca dos vasos. De todos os tamanhos e pesos.
Pegavam de uma casa e colocavam na outra. Na época em que todos os moradores da
rua se conheciam, a maluquice ganhou ainda um toque sutil: trocaram os vasos
das vizinhas que por esse ou aquele motivo não mais se falavam.
Disse minha mulher (que era ainda minha
namorada) que logo de manhã entrou uma senhora em sua casa, toda chorosa,
dizendo que “tinham roubado suas
samambaias”. Minha sogra, com toda a calma, comentou que alguns vasos
desconhecidos haviam aparecido na varanda da casa. Mas não eram samambaias.
O que sei é que os delinquentes, apesar do
cansaço e do pouco tempo de sono, acordaram bem cedo e, sentados na calçada,
ficaram só observando o trança-trança dos moradores para desfazer as trocas,
tarefa que durou boa parte da manhã. O efeito colateral dessa brincadeira foi o
reatamento de antigas amizades.
O Cadinho morreu de aids, o Trombada, de
infarto, o Élcio, debaixo de um caminhão. Alguns mudaram-se para outros
estados, outros sumiram definitivamente e dois moram hoje nos Estados Unidos
(provavelmente ilegais). A maioria desses inofensivos e divertidos
delinquentes, entretanto, foi ao velório de meu cunhado, para despedir-se de
seu antigo companheiro de gangue.
Acho tão bonitas essas memórias, talvez por inveja da velhice alheia eu tenha começado a escrever as minhas antes até delas acontecerem, um pinote no tempo. Fico pensando quando alguém for falar de mim o que vai dizer, nem me interessa que seja em tom elogioso ou não, mas a curta sinopse: morreu afogada no próprio vômito, um infarte fulminante que mordeu o lábio até parti-lo, algo com algum detalhe assim. Quando era criança esse tipo de morte que me impressionava, os relatos de crianças que se enroscavam em balanços, um vizinho morto a tijoladas ou um conhecido que se enforcara com o laço da rede na varanda. Tá, eu sei que é meio mórbido, mas me diz que a vida não é um livro do Nelson Rodrigues.
ResponderExcluir"J"
A vida é sempre um livro do Nelson Rodrigues. Algumas pessoas (a maioria, talvez), preferem contar e lembrar só as "histórias da carochinha" ou "as viagens de Gulliver" (mesmo que não tenham lido o livro). Gostam de lembrar o "sunny side of the street", fingindo que toda rua tem também seu "wild side" (isso ficou meio musical). Eu gosto de contar casos, mas faço questão de não arrumar nem pintar a casa antes. Quanto à memórias precoces, acho legal também, pois as lembranças estão mais vívidas, as cores são mais intensas, não foram queimadas pela passagem do tempo (hoje estou meio "pictórico"). Podem servir também para recriar a realidade, mas aí vira ficção. O que não é mau.
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