Com a recente prisão dos presidentes das construtoras Andrade
Gutierrez e Odebrecht (como parte da “Operação
Lava Jato”), acusados de envolvimento com o(s) escândalo(s) da Petrobrás,
tive vontade de registrar alguns casos muito antigos, relacionados à minha “experiência
nuclear”, justamente por seu minúsculo ponto de contato com as empresas citadas.
1982 ou 1983, não me lembro mais, foi o ano em que vivi uma das mais
interessantes experiências como engenheiro. A empresa onde trabalhava
resolveu participar da concorrência para construção das obras civis da usina
nuclear de Angra
3. Quando essa construtora resolveu disputar a obra, já sabia que iria
enfrentar algumas das maiores empresas de construção pesada do país. Uma delas
era a Andrade
Gutierrez.
Deu para notar alguma coisa? Vou repetir: em 1982 ou 1983 aconteceu a
licitação para construção das obras civis de Angra 3. Como estamos
em 2015, já se passaram mais de trinta(!) anos – e até hoje ela não foi
inaugurada.
Segundo informações que obtive na internet depois de ter escrito esses
casos, as obras foram paralisadas em 1985 e só retomadas em 2010. Para manter
as instalações provisórias utilizadas durante a construção, a empresa vencedora
recebeu um "troco" de cinco milhões de reais por ano (durante 25
anos!).
O órgão contratante era a
Nucom, uma das empresas da
holding
Nuclebrás (tudo era "N
uc" alguma
coisa -
Nuclen, Nuclep, Nuclemon, etc.). A substituta atual da
velha Nuclebrás atende pelo nome de Eletronuclear, e só descobri isso depois
que seu presidente licenciado também foi preso, acusado de receber propina de
4,5 milhões de empreiteiras de
Angra 3. Dentre essas, a
Andrade
Gutierrez. Quem quiser saber mais (não estou falando da prisão, é
lógico), basta procurar, por exemplo, no site da
Eletronuclear. Meu
negócio é contar casos. Por isso, continuemos.
Na época da licitação, a usina
Angra 1 estava quase
concluída e
Angra 2 estava ainda bem no início. As obras civis
das
duas usinas eram executadas pela
Odebrecht (chamava-se
antes
Construtora Norberto Odebrecht). Segundo bochichos daquela
época,
Angra 2 teria sido entregue à Odebrecht como
aditivo
contratual, sem licitação. A explicação para um aditivo de alguns bilhões
de dólares, equivalente a 100% (ou mais) da obra originalmente contratada,
seria o fato de ser ela a única empresa brasileira com experiência na
construção de usinas nucleares. Se essa explicação é real, a lógica é surreal,
concordam? Não existia outra antes de
Angra 1! Além do mais, os
projetos eram totalmente diferentes, pois a tecnologia de
Angra 1 é
americana e das demais, alemã!
Creio que uma imagem para essa lógica maluca seria a pressuposição de que
um piloto de avião sabe também pilotar helicóptero, pelo simples fato de que
ambos são veículos que voam. Nessa época, o Brasil era governado pelos generais
presidentes e, talvez seja essa a verdadeira explicação (-“
entrega logo
Angra 2 para aquele baiano e não se discute mais”).
Como não sei as datas, entrei na internet e descobri que as obras da usina
de
Angra 1 teriam começado em 1972. Nessa época eu era apenas
um estudante de engenharia relapso e sem juízo. Imagino que a licitação pode
ter ocorrido um ano antes. Foi inaugurada em 1985.
Tive um colega que, não sei como, possuía uma cópia xerox da proposta
apresentada pela
Odebrecht para a licitação de
Angra 1.
Era uma proposta fininha, limitando-se a uma planilha com os preços, uma
descrição sumária de alguns aspectos técnicos, uns dois desenhos e um
cronograma das etapas a realizar. Fiquei surpreso com aquela “magreza” de
proposta, pois já estava acostumado com a “opulência” então em moda das
propostas para obras públicas.
Sempre tive plena convicção de que a
Odebrecht venceu a
licitação de
Angra 1 na maior lisura, sem nenhuma sacanagem,
por dois motivos: naquela época,embora já fosse uma construtora grande, não
tinha maior expressão. Além disso, creio ter ofertado o
menor preço.
Se ninguém notou o itálico, devo dizer que na década de 1980 “menor preço”
deixou de ser o único critério para a contratação e realização de muitas obras
públicas, porque todos os participantes igualavam o lpreço mínimo estabelecido
no edital. Mas isso é assunto para outro dia.
Se comparada às maiorais da construção pesada, a construtora em que eu
trabalhava era uma empresa de porte médio (ou "grandinha"). Mesmo
assim, resolveu encarar a briga. Durante seis meses, mobilizou uma equipe
de engenheiros, projetistas, desenhistas, datilógrafos, secretárias e
xeroqueiros com dedicação exclusiva a essa concorrência. Quem tinha direito a
férias no período foi obrigado a adiar ou cancelar os passeios programados. Boa
parte da execução dos desenhos construtivos foi terceirizada para uma empresa
de desenhistas-projetistas, contratou-se um consultor para a “garantia da
qualidade” (esse é um caso hilário), contratou-se também um engenheiro alemão
que havia trabalhado na Nuclebrás e, crème de la crème, para atender
um dos pré-requisitos eliminatórios do edital, foi contratada a consultoria de
uma empresa alemã que já tinha construído usina nuclear com a mesma tecnologia
das usinas de Angra 2 e Angra 3. Resumindo: uma baba cósmica foi gasta na
elaboração da proposta. Mas, estou me antecipando muito.
Como é praxe em qualquer licitação, logo que o edital foi adquirido,
uma equipe foi designada para visitar o local onde seria construída a usina.
Dependendo da importância da obra, às vezes vai apenas um engenheiro. No caso
de Angra, foi mandado um “exército”: mais de vinte engenheiros, mandados em
grupos de três ou quatro, inspecionaram o local. Dentre eles, esse vosso
criado.
E o que eu vi foi de encher os olhos. Não vou me deter em detalhes sobre o
local das futuras instalações, até porque não havia nada lá, exceto as estacas
de fundação que já estavam sendo cravadas. O grande barato foi conhecer a
infraestrutura existente e a visita à primeira usina nuclear construída no
Brasil.
Ciceroneados por um geólogo da Nucom que já havia trabalhado na Açominas,
eu e mais dois colegas fomos visitar a usina de Angra 1, já em fase de montagem
e testes finais. Todos os funcionários e operadores da usina usavam uma espécie
de caneta sinalizadora de radioatividade pendurada no pescoço. Caso o sujeito
fosse contaminado de alguma forma, a caneta indicava e seria iniciado um
processo de limpeza e “desinfecção”. Todo e qualquer tipo de lixo contaminado
era colocado em barris de ferro que depois eram preenchidos com concreto e
levados para uma área especial.
Para entrar no prédio do reator, tivemos de vestir roupas e sapatos
especiais, usados por todos para preservar a limpeza absoluta do lugar. Creio
que havia algum precipitador eletrostático de poeira ou coisa semelhante na
entrada do prédio. Não tenho dúvida que poderia lamber o chão sem achar nem o
menor sinal de poeira!
Depois de passados tantos anos, não me lembro de nenhum detalhe mais
relevante, exceto o fato de que era uma construção magnífica e muito imponente,
com destaque para o prédio do reator. A “epifania” mesmo aconteceu quando
fomos levados às vilas dos operadores, já prontas. Eram como que "Ilhas da
Fantasia" de tão espetaculares (só que sem o Tatoo e o Ricardo Montalbán).
Praia Brava foi a primeira a ser construída. Nela, além das casas
geminadas (se não me falha a memória), encontravam-se uma igreja ecumênica,
supermercado, hospital, cinema, clube, autoescola(!), um pequeno centro
comercial e um hotel destinado a funcionários em trânsito. As ruas eram
asfaltadas e a área do acampamento, toda cercada, contava com portaria e
vigilância 24 horas por dia. Como ficamos dois dias na região, fomos
autorizados a dormir no hotel da vila. Para um sujeito de origem humilde como
eu, aquele hotel poderia tranquilamente receber uma classificação
três
estrelas. Tirando a praia, que vimos apenas à noite e nos pareceu realmente
“brava” (imagino que isso inviabilizava sua utilização por banhistas), o lugar
era um paraíso de conforto, tranquilidade e segurança.
No dia seguinte, depois de um ótimo café da manhã, fomos apanhados pelo
geólogo gente boa, que nos levou à outra vila dos operadores, construída
em
Mambucaba. Nessa vila havia quase tudo que eu tinha visto
em
Praia Brava, exceto o hotel. Além disso, as casas de
Mambucaba eram
de madeira, ao contrário das casas em alvenaria de
Praia Brava. O
grande, imenso diferencial era a praia, magnífica.
Esse geólogo morava em uma casa que ficava à beira da praia (imagino -
porque não me lembro mais - que os funcionários mais graduados da fiscalização
das obras ocupassem outras casas desse acampamento, já que Angra 2 ainda estava
praticamente nas fundações).
Para dar uns mergulhos e pegar um
bronze na areia,
bastava atravessar a “
Avenida Atlântica” do acampamento e o belo
calçadão, ideal para fazer uma caminhada. A casa, grande e confortabilíssima,
só tinha um defeito: toda vez que a onda quebrava, o deslocamento de ar fazia
as janelas de vidro e madeira da frente da casa vibrar um pouco. Muito
sofrimento!
Depois da visita a Angra, arregaçamos as mangas e começamos a trabalhar.
Isso significava ler toda a extensa documentação, estudar projetos, começar o
planejamento, etc.,
cada um no seu quadrado, lógico. Os engenheiros
com experiência em planejamento começaram a destrinchar os projetos para
definir os cronogramas e as redes
Pert, como e quando cada etapa
seria construída, quais equipamentos e equipes a utilizar, etc.
Os engenheiros com habilidade narrativa (havia um que era genial) ficaram
encarregados de escrever as centenas de páginas que foram produzidas, onde eram
descritos detalhadamente os métodos previstos e suas particularidades. Cuidavam
também de descrever as edificações e instalações provisórias que seriam
construídas, tais como acampamentos, refeitórios, vestiários, escritórios de
obra, centrais de concreto, etc.
Uma equipe chefiada por um engenheiro extremamente meticuloso e experiente
nessa área, ficou encarregada de fazer a varredura, o pente fino em toda a
documentação que deveria ser apresentada (certidões negativas, atestados de
capacidade técnica, etc.).
Os engenheiros orçamentistas (eu fazia parte desse “
quadrado”), em
sintonia com o departamento de compras da empresa, encarregaram-se de traduzir
as informações e hipóteses formuladas pelas equipes de planejamento e redação
técnica nos índices e preços que seriam ofertados na proposta comercial.
Havia ainda a seção de projetos, chefiada por um engenheiro
competentíssimo, onde eram detalhados e desenhados os projetos
decorrentes do planejamento realizado (posicionamento de guindastes,
detalhamento de formas especiais, cronogramas e gráficos diversos e coisas do
tipo). É bom deixar claro que essa muvuca era e é normal na elaboração de
propostas para obras de maior porte ou mais complexas. Para nós, a novidade da
proposta de Angra 3 é que “todo mundo” estava envolvido em sua elaboração.
O chefe dessa seção merece um parêntese com alguns parágrafos. Seu nome
era Herberto e era filho de alemães legítimos. O pai chamava-se Huberto. A
razão para esses nomes idiotas é curiosa. Originalmente, chamavam-se Herbert
e Hubert. Durante a Segunda Guerra, em virtude da hostilidade dos brasileiros
contra italianos e alemães, resolveram abrasileirar os nomes, que viraram essa
bosta.
Outra curiosidade é o fato de seus pais terem vindo para o Brasil ainda
crianças com uns quatro anos, por aí. Provavelmente, conheceram-se na colônia
alemã de BH (se isso existiu). Seus pais eram, portanto, brasileiros
naturalizadíssimos e falavam português sem nenhum sotaque, pois tinham
praticamente nascido aqui. Em casa, entretanto, a língua falada por todos era o
alemão. Segundo meu amigo Herberto, por causa da guerra, além da mudança
de nomes, passaram a conversar só em português, hábito que se manteve mesmo
depois da derrota da Alemanha.
Durante a elaboração da proposta para Angra 3, aconteceu seu encontro com
dois alemães que tinham chegado para dar consultoria no planejamento da obra.
Acredito que timidamente no início (e quando não havia outros colegas por
perto), o Herberto passou a conversar com eles em alemão. Tempos depois, contou-me
que os gringos destacaram o fato de ele falar sem nenhum sotaque. E
surpreenderam-se por usar palavras e um estilo de linguagem antigo, já em
desuso na Alemanha. Suponho que seria o equivalente a alguém chegar no Brasil
falando "
vosmecê" e usando expressões como "
alvíssaras"
ou "
eia, sus!".
Imagino que esse profissional competentíssimo e super gente fina já tenha
morrido, pois eu era o segundo engenheiro mais novo da equipe (e já estou
com 65 anos!), enquanto ele era o segundo ou terceiro mais velho. Se ainda
estiver vivo, deve estar hoje com uns 90 ou 95 anos. Grande Herberto! Parêntese
fechado.
Voltando à proposta, foi nessa época que aconteceu o episódio já narrado
em um dos primeiros posts deste blog, (
http://blogsoncrusoe.blogspot.com.br/2014/08/historias-do-digao-parte-ix.html).
Garantia da Qualidade: essa exigência do edital me fez rir até mandar
parar. Segundo li na época, esse “monstrinho” teria surgido para certificação
das bases de concreto e outras instalações, usadas para testes de empuxo dos
motores de foguete que seriam utilizados nos primeiros voos espaciais. Está na
cara que a construção de uma base de concreto deve ser bem mais barata que um
motor de foguete. Por isso, se uma dessas estruturas falhasse de alguma forma,
poderia provocar danos ao motor em teste, com enormes prejuízos de dinheiro e
tempo (imagino que já estivesse rolando a corrida espacial entre União
Soviética e Estados Unidos).
Foram então listados procedimentos rigorosos a ser cumpridos para a
construção dessas estruturas. Essa lista, originalmente com dezoito exigências
(depois baixados para treze) foi depois utilizada na construção de usinas
nucleares. Na prática, era um check-list sofisticado.
No caso de Angra 3, o caso é o seguinte: o edital previa o cumprimento
integral de treze normas ou procedimentos estabelecidos pela IAEA
(International Atomic Energy Agency) para a construção de usinas nucleares. Não
me lembro mais de que se tratava, mas todos eram relacionados à segurança da
obra. Falavam, entre outros assuntos, de arquivamento de documentação, controle
de qualidade e
garantia da qualidade. Tentei achar essas treze
orientações na internet, mas desisti.
Toda obra de engenharia que se preze tem, obrigatoriamente, controle de
qualidade dos materiais empregados. Dependendo do porte da obra, o laboratório
é até instalado no próprio canteiro. Então, não era nenhuma novidade a
exigência de controle
de qualidade rigoroso. Mas,
garantia
da qualidade, que bicho era esse?
A primeira providência foi contratar um especialista em controle de
qualidade para assessorar e dar consultoria sobre essa exigência. A segunda foi
designar um engenheiro ultra metódico, mega sério e sistemático para a recém
criada “
Gerência de Garantia da Qualidade”. Embora fosse realmente uma
gerência, seria subordinada diretamente ao presidente da empresa (caso
ganhássemos a obra, lógico). E tome reuniões, treinamentos, palestras e muito
dinheiro gasto com essa consultoria.
O chefe do nosso departamento era um sujeito sarcástico, extremamente
excêntrico e muito engraçado. Os apelidos que ele colocava eram como chiclete
em calçada pública, grudavam de forma definitiva. Com a equipe de consultores e
terceirizados para essa proposta foi a mesma coisa. Já falei no “Grafite” e
“Canetão”, mas o melhor mesmo foi o apelido que deu ao consultor de garantia da
qualidade.
Pela divisão de tarefas adotada, eu trabalhava direto com ele. Foi a época
que eu mais me diverti no trabalho, pois ríamos o tempo todo. E o serviço saía!
Um dia, meio irritado, perguntou se eu tinha visto o “Ventania”. Perguntei quem
era, já esperando a próxima maluquice.
- Você não sabe quem é o Ventania? É o consultor da garantia.
- Porque Ventania?
- Esse cara só está vendendo vento, e vendendo caro! E o Zé (...) (o
gerente) está em órbita, pois ele acha que esta empresa fará tudo o que estão
dizendo. Pior é que não é uma órbita perfeita, porque o vento soprado é muito
forte. Comecei a rir e ele continuou:
-
Você que é bom em desenho podia desenhar essa situação. Olha só,
o planeta é a empresa. O satélite em órbita é o Zé (...). Aí você faz uma
órbita ondulada para ele, porque o Ventania está atuando.
Ele realmente achava que o consultor, por não ter experiência anterior com
esse tema, estava nos fazendo de trouxas. Talvez sim, talvez não. O que sei é
que, depois de um tempo, até o diretor técnico perguntava ao Zé (...) como
estava indo o trabalho com o
Ventania.
Naquele tempo, eu nunca tinha ouvido falar de ISO-9000. Hoje, eu vejo que
a Garantia da Qualidade era exatamente isso (ou quase isso). Na prática, era
uma ratificação formal e documentada de que os procedimentos previamente
estabelecidos estavam sendo cumpridos e executados sempre da mesma forma (a
maluquice é essa: a norma ISO não estabelece que o serviço deve ser realizado
da melhor forma possível. A certificação apenas garante que o serviço está
sempre sendo realizado da mesma maneira. Se for ruim, será
"eternamente" ruim).
Como era uma exigência do edital, o
Manual de Procedimentos para a
Garantia da Qualidade começou a ser gestado. Dá para adivinhar qual
era o primeiro procedimento? Ninguém se habilita? Era “
Como elaborar um
Procedimento”. Era o suprassumo da burocracia atuando na área de qualidade.
E meu chefe, dono de uma visão extremamente fria e desencantada do que nos
esperava, caía de pau.
Na visita que fez a Angra 1 ficou observando uma movimentação de pedra
britada. Sem motivo aparente, um equipamento retirava a brita de um pátio e
transportava para outro, bem ao lado. Perguntou a quem o acompanhava o que essa
movimentação significava. A resposta foi de que no primeiro monte a brita ainda
não tinha a garantia da qualidade assegurada, enquanto que o segundo depósito
já estava OK. Meu chefe emendou de primeira:
- Então, apesar da garantia, a brita do segundo monte é pior, porque na
movimentação de um lado para o outro, o equipamento raspa um pouco o chão e
leva terra junto com a brita! O fiscal ficou sorrindo sem graça,
diante da observação na mosca.
Esse sujeito costumava dizer que a empresa crescia à noite, quando não
tinha ninguém para atrapalhar. Como "ninguém", entenda-se: diretores
e gerentes. Um dia, a propósito de mais uma maluquice ligada à proposta em
elaboração, comentou que o "Hélice" devia estar girando muito. Já
imaginando alguma sacanagem, perguntei de quem estava falando.
- Você não sabe quem é o Hélice? É o "Sô Arcindo"! Toda vez que
alguém faz uma burrada na empresa ele dá um giro dentro da sepultura.
Ultimamente, deve estar sendo usado como ventilador pelos "morto". Caguei
de rir, pois o "Sô Arcindo", como falou fazendo sotaque caipira,
era o fundador da empresa, falecido uns trinta anos antes.
Se eu fosse registrar todos as observações espirituosas e amalucadas e os
casos dessa excelente pessoa, este texto aumentaria substancialmente de
tamanho. E ainda tem muita coisa para lembrar. Por isso, só para completar este
tópico, lembro a discussão semântica sobre o uso das preposições
"de" e
"do" na
área da qualidade. O gerente Zé (...) era enfático e professoral ao “exigir”
seu uso correto.
- Ô Zé, não se pode dizer “garantia de qualidade?
- É claro que não! O correto é dizer “Controle de Qualidade”
e “Garantia da Qualidade”!
Eu compartilhava a visão desencantada do meu chefe e achava tudo isso um
porre, uma viadagem só. Mas me divertia pra caramba.
E o serviço foi saindo. Um papel timbrado foi especialmente encomendado
para uso nessa proposta. Além do nome da construtora, trazia impresso o nome do
órgão contratante e a identificação da obra. Fico tentado a dizer que tinha até
marca d’água, mas não tenho mais certeza disso. Os desenhos de métodos
construtivos, plantas dos acampamentos e coisas do gênero foram feitos em
formato A3. Capas duras e lombadas de várias espessuras, unidas por parafusos
metálicos, foram encomendadas, sendo individualizadas por etapa de julgamento e
análise: Documentação, Proposta Técnica, Manual de Garantia da Qualidade,
Caderno de Desenhos e Proposta Comercial.
Os procedimentos descritos acima não traziam nenhuma novidade, pois já
faziam parte da rotina da construtora para elaboração de propostas para grandes
obras. Na década de 1980 todas as grandes construtoras adotavam essa prática. A
singularidade aconteceu na forma de apresentação e no acabamento gráfico
escolhido. Pela primeira vez, os desenhos foram impressos a cores, em papel
couché casca de ovo. O papel timbrado tinha a gramatura e textura de papel
utilizado na impressão de livros.
Para enfeitar as capas das três vias que deveriam ser apresentadas, foram
confeccionadas e coladas (do lado inferior direito) placas metálicas com
dimensões que eu diria equivalentes a dois smartphones alongados, colocados
lado a lado. Creio que eram de aço escovado. Além dos mesmos dizeres do papel
timbrado, traziam ainda gravada a indicação da parte da proposta a qual o
volume pertencia (Documentação, Proposta Técnica, etc.). Com um resultado
estético bastante discutível (para mim, lógico), as placas traziam também a
representação gráfica do átomo de Rutherford.
A outra novidade que essa proposta apresentou foi o volume de papel
produzido. Não sei o número final de folhas laboriosamente datilografadas
(seria maluco se lembrasse), mas tenho uma memória visual bem boa. Por isso,
estimo a seguinte distribuição:
- Documentação, apresentada em formato A4: um ou dois volumes, totalizando
uns 3 centímetros de espessura;
- Manual de Procedimentos de Garantia da Qualidade: um volume em formato
A4, com uns 2 centímetros de espessura;
- Proposta Técnica: três volumes em formato A4, cada volume com uma
espessura aproximadamente igual a um pacote de “Chamex” com 500 folhas. Como o
papel da proposta era mais encorpado, estimo que cada volume deveria ter umas
300 folhas;
- Cadernos de desenho: dois volumes em formato A3, cada um com uns cem
desenhos;
Proposta Comercial: um (ou dois) volume(s) em formato A4, ligeiramente
inferior(es) aos volumes da proposta técnica.
Até aí tudo bem? Agora, imagine que esse monstrengo correspondia a apenas
uma via da proposta. Creio que o edital exigia a apresentação da proposta em
três vias. Dá para imaginar o volume disso?
A empresa contava em seu quadro de funcionários com um militar reformado
do exército brasileiro, a quem todos chamavam de "major". A ele coube
a tarefa de montar a logística do transporte. De cara, descartou-se a
possibilidade de mandar o
elefante em voo comercial. Como a
construtora não tinha nenhum avião, imagino que fretar um sairia muito caro.
Por isso, foi escolhido o transporte rodoviário. Não me lembro mais dos
detalhes, apenas de algumas "pérolas".
Segundo ele, era preciso estabelecer uma "tática diversionista"
para confundir eventuais sabotadores a mando de alguma empresa concorrente (a
paranoia era grande). Assim, foram designados três veículos que viajariam em
comboio até o Rio. Só um deles, sem nenhuma identificação (talvez uma kombi),
levaria todos os volumes e ficaria posicionado entre os outros dois. Não sei se
algum dos outros tinha o logotipo e outras identificações da empresa. Lembro-me
apenas da recomendação de, nas paradas para uma mijadinha ou um rápido café,
manter sempre o carro com alguém ao volante e o motor sempre ligado. Fala
sério, essa história daria ou não um filme bacana? Mesmo que fosse mais para
"
Corra que a polícia vem aí" ou um filme dos
Trapalhões.
Deixei para falar das propostas técnica e comercial por último, por serem
literalmente a chave e o fecho destas lembranças. Mas, vamos devagar.
A proposta comercial não tinha nada de especial que a diferenciasse de
outras propostas apresentadas para outras obras, de outros órgãos. Era composta
de planilhas detalhadas para cada um dos prédios da usina, cada planilha
contendo a quantidade prevista de concreto, ferragem, movimentação de terra,
etc. Essa quantidade era fornecida pela própria Nucom, pois os projetos
executivos não estavam ainda disponíveis. Além das planilhas, havia resumos de
preços, cronogramas físico-financeiros, demonstrativo dos encargos sociais
incidentes no preço da mão de obra, e as chamadas "
composições de
preços unitários" para cada um dos preços ofertados.
Essas composições são demonstrativos super detalhados de cada um dos
preços cobrados. Assim, só para dar exemplo, para assentar um metro quadrado de
azulejo, a composição trazia o azulejo considerado já com a previsão de quebra,
a quantidade de argamassa necessária, as horas de azulejista gastas para
assentar aquele metro quadrado, etc. E, claro, o custo unitário de cada um
desses componentes, de tal forma que, ao final do demonstrativo, obtinha-se o
valor unitário do serviço. Após a aplicação das taxas de administração,
impostos e lucro, tinha-se finalmente o preço unitário que seria aplicado às
quantidades fornecidas pela Nucom. Resumindo: nada de anormal ou suspeito havia
na proposta comercial. O "
tchã" da história estava na proposta
técnica.
Se alguém quis saber a razão da papelada já descrita, a razão é simples.
Na década de 1980 (não sei como é hoje) as propostas técnicas atingiram um
padrão de qualidade e de apresentação tão grande que poderiam tranquilamente ser
chamadas de "
propostas estilo ostentação", tal a
quantidade, detalhamento e riqueza das informações nelas contidas.
Começava-se por descrever as implicações logísticas decorrentes da
localização da obra. Descrevia-se como os materiais mais importantes seriam
obtidos, qual a forma de estocagem, quais as alternativas, etc. O mesmo se
fazia com a mão de obra: quantos operários seriam alojados, quantos recrutados
na região, qual a estimativa de casados e solteiros, qual o máximo previsto
para cada categoria, como seria feito o fornecimento de alimentação para todos,
quantos refeitórios precisariam ser construídos, qual o equipamento de cozinha
seria utilizado, em quantos turnos previa-se o trabalho, etc. etc.
Os equipamentos previstos tinham o mesmo tratamento: além da descrição detalhada
das unidades industriais (britagem, centrais de concreto, centrais de formas e
de armação), ainda era abordado o plano de manutenção, como seria a planta das
oficinas, qual a equipe prevista, qual a quantidade de ... e bla bla bla.
A descrição de como seriam executadas as várias etapas construtivas da
obra era exaustivamente detalhada, e qualquer servicinho era esmiuçado quase ao
nível molecular. Essas informações transpostas para o papel transformavam as
propostas técnicas em verdadeiras aulas, em cursos rápidos de engenharia.
Mas o edital de Angra 3 continha uma coisa a mais, uma exigência que, mal
utilizada, poderia converter-se em um verdadeiro
Cavalo de Tróia:
as composições de preços unitários já mencionadas deveriam
obrigatoriamente fazer
parte da proposta técnica, mas sem nenhuma indicação de preço. Essa novidade
talvez tenha sido pensada em virtude da natureza estratégica da obra, como uma
forma de "garantia da qualidade" para o contratante. Pode ser...
O fato é que, de posse do esqueleto de cada um dos preços antes da
proposta comercial ser aberta, a empresa contratante poderia tranquilamente
fazer uma auditoria prévia do preço final ofertado de cada concorrente, sem
precisar tirar o lacre da proposta comercial. Para essa auditoria, bastaria acrescentar
os preços unitários dos materiais e dos demais componentes. Traduzindo: se eu
sei que a empresa
XPTO prevê gastar 6 sacos de cimento para
fazer um metro cúbico de concreto, basta multiplicar os seis sacos pelo preço
unitário do cimento. Depois, é só multiplicar o valor assim obtido pela
quantidade prevista de concreto para a obra toda.
Mesmo em uma época onde não havia computadores de mesa, fazendo isso com
todos os serviços, não seria difícil descobrir o preço final apresentado por
cada concorrente, com pequena margem de erro. Esse era o
Cavalo de
Tróia. Se houve ou se houvesse naquela época um jogo de cartas marcadas tal
como aconteceu no Petrolão, seria muito fácil arranjar algum defeito subjetivo
em uma proposta com pinta de ganhadora, para desclassificá-la sem sequer
abrir a proposta comercial.
Jamais saberei o que aconteceu naquela época. De nada adiantou a
consultoria de uma empresa alemã que já construíra usina similar a Angra 3,
nenhum efeito deve ter causado aquela inacreditável massa de textos e desenhos
produzida. Nem a dedicação integral de alguns dos mais brilhantes profissionais
que tive a honra de conhecer, pertencentes ao quadro de engenheiros e técnicos
da empresa. Nenhum peso teve a verdadeira fortuna gasta na proposta mais sofisticada
apresentada até então pela construtora.
Talvez nem fosse necessária a "
tática diversionista"
montada pelo "major". Fico matutando que a proposta da empresa onde
trabalhei pode ter corrido mais risco depois de ter sido entregue do que no seu
transporte de BH para o Rio. Naqueles dias em que os generais presidentes
governavam, nossa proposta foi
desclassificada, não sei se devido a
problemas na documentação (o que eu duvido) ou, o que é quase certeza para mim,
na proposta técnica, onde estava amarrado o c
avalinho de tróia.
Com a desclassificação, a proposta comercial, tal como previsto no edital,
não foi sequer aberta (talvez nem fosse preciso, não é mesmo?). Dentre as
empresas grandonas classificadas, a Andrade Gutierrez deve ter apresentado o
menor preço. E foi declarada vencedora da licitação.