sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

MINHA EXPERIÊNCIA NUCLEAR (VERSÃO COMPACTADA)

Este post cumpre a promessa feita anteriormente de reunir em um só os textos que foram "publicados" durante seis semanas consecutivas. Quem leu todos os “capítulos semanais”, pode simplesmente ignorar o de hoje, pois é exatamente apenas "mais do mesmo". Quem não leu, vai encarar um tijolão de memórias. Bon apetit!

Com a recente prisão dos presidentes das construtoras Andrade Gutierrez e Odebrecht (como parte da “Operação Lava Jato”), acusados de envolvimento com o(s) escândalo(s) da Petrobrás, tive vontade de registrar alguns casos muito antigos, relacionados à minha “experiência nuclear”, justamente por seu minúsculo ponto de contato com as empresas citadas.
1982 ou 1983, não me lembro mais, foi o ano em que vivi uma das mais interessantes experiências como engenheiro. A empresa onde trabalhava resolveu participar da concorrência para construção das obras civis da usina nuclear de Angra 3. Quando essa construtora resolveu disputar a obra, já sabia que iria enfrentar algumas das maiores empresas de construção pesada do país. Uma delas era a Andrade Gutierrez.
Deu para notar alguma coisa? Vou repetir: em 1982 ou 1983 aconteceu a licitação para construção das obras civis de Angra 3. Como estamos em 2015, já se passaram mais de trinta(!) anos – e até hoje ela não foi inaugurada.
Segundo informações que obtive na internet depois de ter escrito esses casos, as obras foram paralisadas em 1985 e só retomadas em 2010. Para manter as instalações provisórias utilizadas durante a construção, a empresa vencedora recebeu um "troco" de cinco milhões de reais por ano (durante 25 anos!).
O órgão contratante era a Nucom, uma das empresas da holding Nuclebrás (tudo era "Nuc" alguma coisa - Nuclen, Nuclep, Nuclemon, etc.). A substituta atual da velha Nuclebrás atende pelo nome de Eletronuclear, e só descobri isso depois que seu presidente licenciado também foi preso, acusado de receber propina de 4,5 milhões de empreiteiras de Angra 3. Dentre essas, a Andrade Gutierrez. Quem quiser saber mais (não estou falando da prisão, é lógico), basta procurar, por exemplo, no site da Eletronuclear. Meu negócio é contar casos. Por isso, continuemos.
Na época da licitação, a usina Angra 1 estava quase concluída e Angra 2 estava ainda bem no início. As obras civis das duas usinas eram executadas pela Odebrecht (chamava-se antes Construtora Norberto Odebrecht). Segundo bochichos daquela época, Angra 2 teria sido entregue à Odebrecht como aditivo contratual, sem licitação. A explicação para um aditivo de alguns bilhões de dólares, equivalente a 100% (ou mais) da obra originalmente contratada, seria o fato de ser ela a única empresa brasileira com experiência na construção de usinas nucleares. Se essa explicação é real, a lógica é surreal, concordam? Não existia outra antes de Angra 1! Além do mais, os projetos eram totalmente diferentes, pois a tecnologia de Angra 1 é americana e das demais, alemã!
Creio que uma imagem para essa lógica maluca seria a pressuposição de que um piloto de avião sabe também pilotar helicóptero, pelo simples fato de que ambos são veículos que voam. Nessa época, o Brasil era governado pelos generais presidentes e, talvez seja essa a verdadeira explicação (-“entrega logo Angra 2 para aquele baiano e não se discute mais”).
Como não sei as datas, entrei na internet e descobri que as obras da usina de Angra 1 teriam começado em 1972. Nessa época eu era apenas um estudante de engenharia relapso e sem juízo. Imagino que a licitação pode ter ocorrido um ano antes. Foi inaugurada em 1985.
Tive um colega que, não sei como, possuía uma cópia xerox da proposta apresentada pela Odebrecht para a licitação de Angra 1. Era uma proposta fininha, limitando-se a uma planilha com os preços, uma descrição sumária de alguns aspectos técnicos, uns dois desenhos e um cronograma das etapas a realizar. Fiquei surpreso com aquela “magreza” de proposta, pois já estava acostumado com a “opulência” então em moda das propostas para obras públicas.
Sempre tive plena convicção de que a Odebrecht venceu a licitação de Angra 1 na maior lisura, sem nenhuma sacanagem, por dois motivos: naquela época,embora já fosse uma construtora grande, não tinha maior expressão. Além disso, creio ter ofertado o menor preço. Se ninguém notou o itálico, devo dizer que na década de 1980 “menor preço” deixou de ser o único critério para a contratação e realização de muitas obras públicas, porque todos os participantes igualavam o lpreço mínimo estabelecido no edital. Mas isso é assunto para outro dia.
Se comparada às maiorais da construção pesada, a construtora em que eu trabalhava era uma empresa de porte médio (ou "grandinha"). Mesmo assim, resolveu encarar a briga. Durante seis meses, mobilizou uma equipe de engenheiros, projetistas, desenhistas, datilógrafos, secretárias e xeroqueiros com dedicação exclusiva a essa concorrência. Quem tinha direito a férias no período foi obrigado a adiar ou cancelar os passeios programados. Boa parte da execução dos desenhos construtivos foi terceirizada para uma empresa de desenhistas-projetistas, contratou-se um consultor para a “garantia da qualidade” (esse é um caso hilário), contratou-se também um engenheiro alemão que havia trabalhado na Nuclebrás e, crème de la crème, para atender um dos pré-requisitos eliminatórios do edital, foi contratada a consultoria de uma empresa alemã que já tinha construído usina nuclear com a mesma tecnologia das usinas de Angra 2 e Angra 3. Resumindo: uma baba cósmica foi gasta na elaboração da proposta. Mas, estou me antecipando muito.
Como é praxe em qualquer licitação, logo que o edital foi adquirido, uma equipe foi designada para visitar o local onde seria construída a usina. Dependendo da importância da obra, às vezes vai apenas um engenheiro. No caso de Angra, foi mandado um “exército”: mais de vinte engenheiros, mandados em grupos de três ou quatro, inspecionaram o local. Dentre eles, esse vosso criado.
E o que eu vi foi de encher os olhos. Não vou me deter em detalhes sobre o local das futuras instalações, até porque não havia nada lá, exceto as estacas de fundação que já estavam sendo cravadas. O grande barato foi conhecer a infraestrutura existente e a visita à primeira usina nuclear construída no Brasil.
Ciceroneados por um geólogo da Nucom que já havia trabalhado na Açominas, eu e mais dois colegas fomos visitar a usina de Angra 1, já em fase de montagem e testes finais. Todos os funcionários e operadores da usina usavam uma espécie de caneta sinalizadora de radioatividade pendurada no pescoço. Caso o sujeito fosse contaminado de alguma forma, a caneta indicava e seria iniciado um processo de limpeza e “desinfecção”. Todo e qualquer tipo de lixo contaminado era colocado em barris de ferro que depois eram preenchidos com concreto e levados para uma área especial.
Para entrar no prédio do reator, tivemos de vestir roupas e sapatos especiais, usados por todos para preservar a limpeza absoluta do lugar. Creio que havia algum precipitador eletrostático de poeira ou coisa semelhante na entrada do prédio. Não tenho dúvida que poderia lamber o chão sem achar nem o menor sinal de poeira!
Depois de passados tantos anos, não me lembro de nenhum detalhe mais relevante, exceto o fato de que era uma construção magnífica e muito imponente, com destaque para o prédio do reator. A “epifania” mesmo aconteceu quando fomos levados às vilas dos operadores, já prontas. Eram como que "Ilhas da Fantasia" de tão espetaculares (só que sem o Tatoo e o Ricardo Montalbán).
Praia Brava foi a primeira a ser construída. Nela, além das casas geminadas (se não me falha a memória), encontravam-se uma igreja ecumênica, supermercado, hospital, cinema, clube, autoescola(!), um pequeno centro comercial e um hotel destinado a funcionários em trânsito. As ruas eram asfaltadas e a área do acampamento, toda cercada, contava com portaria e vigilância 24 horas por dia. Como ficamos dois dias na região, fomos autorizados a dormir no hotel da vila. Para um sujeito de origem humilde como eu, aquele hotel poderia tranquilamente receber uma classificação três estrelas. Tirando a praia, que vimos apenas à noite e nos pareceu realmente “brava” (imagino que isso inviabilizava sua utilização por banhistas), o lugar era um paraíso de conforto, tranquilidade e segurança.
No dia seguinte, depois de um ótimo café da manhã, fomos apanhados pelo geólogo gente boa, que nos levou à outra vila dos operadores, construída em Mambucaba. Nessa vila havia quase tudo que eu tinha visto em Praia Brava, exceto o hotel. Além disso, as casas de Mambucaba eram de madeira, ao contrário das casas em alvenaria de Praia Brava. O grande, imenso diferencial era a praia, magnífica.
Esse geólogo morava em uma casa que ficava à beira da praia (imagino - porque não me lembro mais - que os funcionários mais graduados da fiscalização das obras ocupassem outras casas desse acampamento, já que Angra 2 ainda estava praticamente nas fundações).
Para dar uns mergulhos e pegar um bronze na areia, bastava atravessar a “Avenida Atlântica” do acampamento e o belo calçadão, ideal para fazer uma caminhada. A casa, grande e confortabilíssima, só tinha um defeito: toda vez que a onda quebrava, o deslocamento de ar fazia as janelas de vidro e madeira da frente da casa vibrar um pouco. Muito sofrimento!
Depois da visita a Angra, arregaçamos as mangas e começamos a trabalhar. Isso significava ler toda a extensa documentação, estudar projetos, começar o planejamento, etc., cada um no seu quadrado, lógico. Os engenheiros com experiência em planejamento começaram a destrinchar os projetos para definir os cronogramas e as redes Pert, como e quando cada etapa seria construída, quais equipamentos e equipes a utilizar, etc.
Os engenheiros com habilidade narrativa (havia um que era genial) ficaram encarregados de escrever as centenas de páginas que foram produzidas, onde eram descritos detalhadamente os métodos previstos e suas particularidades. Cuidavam também de descrever as edificações e instalações provisórias que seriam construídas, tais como acampamentos, refeitórios, vestiários, escritórios de obra, centrais de concreto, etc.
Uma equipe chefiada por um engenheiro extremamente meticuloso e experiente nessa área, ficou encarregada de fazer a varredura, o pente fino em toda a documentação que deveria ser apresentada (certidões negativas, atestados de capacidade técnica, etc.).
Os engenheiros orçamentistas (eu fazia parte desse “quadrado”), em sintonia com o departamento de compras da empresa, encarregaram-se de traduzir as informações e hipóteses formuladas pelas equipes de planejamento e redação técnica nos índices e preços que seriam ofertados na proposta comercial.
Havia ainda a seção de projetos, chefiada por um engenheiro competentíssimo, onde  eram detalhados e desenhados os projetos decorrentes do planejamento realizado (posicionamento de guindastes, detalhamento de formas especiais, cronogramas e gráficos diversos e coisas do tipo). É bom deixar claro que essa muvuca era e é normal na elaboração de propostas para obras de maior porte ou mais complexas. Para nós, a novidade da proposta de Angra 3 é que “todo mundo” estava envolvido em sua elaboração.
O chefe dessa seção merece um parêntese com alguns parágrafos. Seu nome era Herberto e era filho de alemães legítimos. O pai chamava-se Huberto. A razão para esses nomes idiotas é curiosa. Originalmente, chamavam-se Herbert e Hubert. Durante a Segunda Guerra, em virtude da hostilidade dos brasileiros contra italianos e alemães, resolveram abrasileirar os nomes, que viraram essa bosta.
Outra curiosidade é o fato de seus pais terem vindo para o Brasil ainda crianças com uns quatro anos, por aí. Provavelmente, conheceram-se na colônia alemã de BH (se isso existiu). Seus pais eram, portanto, brasileiros naturalizadíssimos e falavam português sem nenhum sotaque, pois tinham praticamente nascido aqui. Em casa, entretanto, a língua falada por todos era o alemão. Segundo meu amigo Herberto, por causa da guerra, além da mudança de nomes, passaram a conversar só em português, hábito que se manteve mesmo depois da derrota da Alemanha.
Durante a elaboração da proposta para Angra 3, aconteceu seu encontro com dois alemães que tinham chegado para dar consultoria no planejamento da obra. Acredito que timidamente no início (e quando não havia outros colegas por perto), o Herberto passou a conversar com eles em alemão. Tempos depois, contou-me que os gringos destacaram o fato de ele falar sem nenhum sotaque. E surpreenderam-se por usar palavras e um estilo de linguagem antigo, já em desuso na Alemanha. Suponho que seria o equivalente a alguém chegar no Brasil falando "vosmecê" e usando expressões como "alvíssaras" ou "eia, sus!".
Imagino que esse profissional competentíssimo e super gente fina já tenha morrido, pois eu era o segundo engenheiro mais novo da equipe (e já estou com 65 anos!), enquanto ele era o segundo ou terceiro mais velho. Se ainda estiver vivo, deve estar hoje com uns 90 ou 95 anos. Grande Herberto! Parêntese fechado.
Voltando à proposta, foi nessa época que aconteceu o episódio já narrado em um dos primeiros posts deste blog, (http://blogsoncrusoe.blogspot.com.br/2014/08/historias-do-digao-parte-ix.html).
Garantia da Qualidade: essa exigência do edital me fez rir até mandar parar. Segundo li na época, esse “monstrinho” teria surgido para certificação das bases de concreto e outras instalações, usadas para testes de empuxo dos motores de foguete que seriam utilizados nos primeiros voos espaciais. Está na cara que a construção de uma base de concreto deve ser bem mais barata que um motor de foguete. Por isso, se uma dessas estruturas falhasse de alguma forma, poderia provocar danos ao motor em teste, com enormes prejuízos de dinheiro e tempo (imagino que já estivesse rolando a corrida espacial entre União Soviética e Estados Unidos).
Foram então listados procedimentos rigorosos a ser cumpridos para a construção dessas estruturas. Essa lista, originalmente com dezoito exigências (depois baixados para treze) foi depois utilizada na construção de usinas nucleares. Na prática, era um check-list sofisticado.
No caso de Angra 3, o caso é o seguinte: o edital previa o cumprimento integral de treze normas ou procedimentos estabelecidos pela IAEA (International Atomic Energy Agency) para a construção de usinas nucleares. Não me lembro mais de que se tratava, mas todos eram relacionados à segurança da obra. Falavam, entre outros assuntos, de arquivamento de documentação, controle de qualidade e garantia da qualidade. Tentei achar essas treze orientações na internet, mas desisti.
Toda obra de engenharia que se preze tem, obrigatoriamente, controle de qualidade dos materiais empregados. Dependendo do porte da obra, o laboratório é até instalado no próprio canteiro. Então, não era nenhuma novidade a exigência de controle de qualidade rigoroso. Mas, garantia da qualidade, que bicho era esse?
A primeira providência foi contratar um especialista em controle de qualidade para assessorar e dar consultoria sobre essa exigência. A segunda foi designar um engenheiro ultra metódico, mega sério e sistemático para a recém criada “Gerência de Garantia da Qualidade”. Embora fosse realmente uma gerência, seria subordinada diretamente ao presidente da empresa (caso ganhássemos a obra, lógico). E tome reuniões, treinamentos, palestras e muito dinheiro gasto com essa consultoria.
O chefe do nosso departamento era um sujeito sarcástico, extremamente excêntrico e muito engraçado. Os apelidos que ele colocava eram como chiclete em calçada pública, grudavam de forma definitiva. Com a equipe de consultores e terceirizados para essa proposta foi a mesma coisa. Já falei no “Grafite” e “Canetão”, mas o melhor mesmo foi o apelido que deu ao consultor de garantia da qualidade.
Pela divisão de tarefas adotada, eu trabalhava direto com ele. Foi a época que eu mais me diverti no trabalho, pois ríamos o tempo todo. E o serviço saía! Um dia, meio irritado, perguntou se eu tinha visto o “Ventania”. Perguntei quem era, já esperando a próxima maluquice.
- Você não sabe quem é o Ventania? É o consultor da garantia.
- Porque Ventania?
- Esse cara só está vendendo vento, e vendendo caro! E o Zé (...) (o gerente) está em órbita, pois ele acha que esta empresa fará tudo o que estão dizendo. Pior é que não é uma órbita perfeita, porque o vento soprado é muito forte. Comecei a rir e ele continuou:
- Você que é bom em desenho podia desenhar essa situação. Olha só, o planeta é a empresa. O satélite em órbita é o Zé (...). Aí você faz uma órbita ondulada para ele, porque o Ventania está atuando.
Ele realmente achava que o consultor, por não ter experiência anterior com esse tema, estava nos fazendo de trouxas. Talvez sim, talvez não. O que sei é que, depois de um tempo, até o diretor técnico perguntava ao Zé (...) como estava indo o trabalho com o Ventania.
Naquele tempo, eu nunca tinha ouvido falar de ISO-9000. Hoje, eu vejo que a Garantia da Qualidade era exatamente isso (ou quase isso). Na prática, era uma ratificação formal e documentada de que os procedimentos previamente estabelecidos estavam sendo cumpridos e executados sempre da mesma forma (a maluquice é essa: a norma ISO não estabelece que o serviço deve ser realizado da melhor forma possível. A certificação apenas garante que o serviço está sempre sendo realizado da mesma maneira. Se for ruim, será "eternamente" ruim).
Como era uma exigência do edital, o Manual de Procedimentos para a Garantia da Qualidade começou a ser gestado. Dá para adivinhar qual era o primeiro procedimento? Ninguém se habilita? Era “Como elaborar um Procedimento”. Era o suprassumo da burocracia atuando na área de qualidade. E meu chefe, dono de uma visão extremamente fria e desencantada do que nos esperava, caía de pau.
Na visita que fez a Angra 1 ficou observando uma movimentação de pedra britada. Sem motivo aparente, um equipamento retirava a brita de um pátio e transportava para outro, bem ao lado. Perguntou a quem o acompanhava o que essa movimentação significava. A resposta foi de que no primeiro monte a brita ainda não tinha a garantia da qualidade assegurada, enquanto que o segundo depósito já estava OK. Meu chefe emendou de primeira:
- Então, apesar da garantia, a brita do segundo monte é pior, porque na movimentação de um lado para o outro, o equipamento raspa um pouco o chão e leva terra junto com a brita! O fiscal ficou sorrindo sem graça, diante da observação na mosca.
Esse sujeito costumava dizer que a empresa crescia à noite, quando não tinha ninguém para atrapalhar. Como "ninguém", entenda-se: diretores e gerentes. Um dia, a propósito de mais uma maluquice ligada à proposta em elaboração, comentou que o "Hélice" devia estar girando muito. Já imaginando alguma sacanagem, perguntei de quem estava falando.
- Você não sabe quem é o Hélice? É o "Sô Arcindo"! Toda vez que alguém faz uma burrada na empresa ele dá um giro dentro da sepultura. Ultimamente, deve estar sendo usado como ventilador pelos "morto". Caguei de rir, pois o "Sô Arcindo", como falou fazendo sotaque caipira, era o fundador da empresa, falecido uns trinta anos antes.
Se eu fosse registrar todos as observações espirituosas e amalucadas e os casos dessa excelente pessoa, este texto aumentaria substancialmente de tamanho. E ainda tem muita coisa para lembrar. Por isso, só para completar este tópico, lembro a discussão semântica sobre o uso das preposições "de" "do" na área da qualidade. O gerente Zé (...) era enfático e professoral ao “exigir” seu uso correto.
- Ô Zé, não se pode dizer “garantia de qualidade?
- É claro que não! O correto é dizer “Controle de Qualidade” e “Garantia da Qualidade”!
Eu compartilhava a visão desencantada do meu chefe e achava tudo isso um porre, uma viadagem só. Mas me divertia pra caramba.
E o serviço foi saindo. Um papel timbrado foi especialmente encomendado para uso nessa proposta. Além do nome da construtora, trazia impresso o nome do órgão contratante e a identificação da obra. Fico tentado a dizer que tinha até marca d’água, mas não tenho mais certeza disso. Os desenhos de métodos construtivos, plantas dos acampamentos e coisas do gênero foram feitos em formato A3. Capas duras e lombadas de várias espessuras, unidas por parafusos metálicos, foram encomendadas, sendo individualizadas por etapa de julgamento e análise: Documentação, Proposta Técnica, Manual de Garantia da Qualidade, Caderno de Desenhos e Proposta Comercial.
Os procedimentos descritos acima não traziam nenhuma novidade, pois já faziam parte da rotina da construtora para elaboração de propostas para grandes obras. Na década de 1980 todas as grandes construtoras adotavam essa prática. A singularidade aconteceu na forma de apresentação e no acabamento gráfico escolhido. Pela primeira vez, os desenhos foram impressos a cores, em papel couché casca de ovo. O papel timbrado tinha a gramatura e textura de papel utilizado na impressão de livros.
Para enfeitar as capas das três vias que deveriam ser apresentadas, foram confeccionadas e coladas (do lado inferior direito) placas metálicas com dimensões que eu diria equivalentes a dois smartphones alongados, colocados lado a lado. Creio que eram de aço escovado. Além dos mesmos dizeres do papel timbrado, traziam ainda gravada a indicação da parte da proposta a qual o volume pertencia (Documentação, Proposta Técnica, etc.). Com um resultado estético bastante discutível (para mim, lógico), as placas traziam também a representação gráfica do átomo de Rutherford.
A outra novidade que essa proposta apresentou foi o volume de papel produzido. Não sei o número final de folhas laboriosamente datilografadas (seria maluco se lembrasse), mas tenho uma memória visual bem boa. Por isso, estimo a seguinte distribuição:
- Documentação, apresentada em formato A4: um ou dois volumes, totalizando uns 3 centímetros de espessura;
- Manual de Procedimentos de Garantia da Qualidade: um volume em formato A4, com uns 2 centímetros de espessura;
- Proposta Técnica: três volumes em formato A4, cada volume com uma espessura aproximadamente igual a um pacote de “Chamex” com 500 folhas. Como o papel da proposta era mais encorpado, estimo que cada volume deveria ter umas 300 folhas;
- Cadernos de desenho: dois volumes em formato A3, cada um com uns cem desenhos;
Proposta Comercial: um (ou dois) volume(s) em formato A4, ligeiramente inferior(es) aos volumes da proposta técnica.
Até aí tudo bem? Agora, imagine que esse monstrengo correspondia a apenas uma via da proposta. Creio que o edital exigia a apresentação da proposta em três vias. Dá para imaginar o volume disso?
A empresa contava em seu quadro de funcionários com um militar reformado do exército brasileiro, a quem todos chamavam de "major". A ele coube a tarefa de montar a logística do transporte. De cara, descartou-se a possibilidade de mandar o elefante em voo comercial. Como a construtora não tinha nenhum avião, imagino que fretar um sairia muito caro. Por isso, foi escolhido o transporte rodoviário. Não me lembro mais dos detalhes, apenas de algumas "pérolas".
Segundo ele, era preciso estabelecer uma "tática diversionista" para confundir eventuais sabotadores a mando de alguma empresa concorrente (a paranoia era grande). Assim, foram designados três veículos que viajariam em comboio até o Rio. Só um deles, sem nenhuma identificação (talvez uma kombi), levaria todos os volumes e ficaria posicionado entre os outros dois. Não sei se algum dos outros tinha o logotipo e outras identificações da empresa. Lembro-me apenas da recomendação de, nas paradas para uma mijadinha ou um rápido café, manter sempre o carro com alguém ao volante e o motor sempre ligado. Fala sério, essa história daria ou não um filme bacana? Mesmo que fosse mais para "Corra que a polícia vem aí" ou um filme dos Trapalhões.
Deixei para falar das propostas técnica e comercial por último, por serem literalmente a chave e o fecho destas lembranças. Mas, vamos devagar.
A proposta comercial não tinha nada de especial que a diferenciasse de outras propostas apresentadas para outras obras, de outros órgãos. Era composta de planilhas detalhadas para cada um dos prédios da usina, cada planilha contendo a quantidade prevista de concreto, ferragem, movimentação de terra, etc. Essa quantidade era fornecida pela própria Nucom, pois os projetos executivos não estavam ainda disponíveis. Além das planilhas, havia resumos de preços, cronogramas físico-financeiros, demonstrativo dos encargos sociais incidentes no preço da mão de obra, e as chamadas "composições de preços unitários" para cada um dos preços ofertados.
Essas composições são demonstrativos super detalhados de cada um dos preços cobrados. Assim, só para dar exemplo, para assentar um metro quadrado de azulejo, a composição trazia o azulejo considerado já com a previsão de quebra, a quantidade de argamassa necessária, as horas de azulejista gastas para assentar aquele metro quadrado, etc. E, claro, o custo unitário de cada um desses componentes, de tal forma que, ao final do demonstrativo, obtinha-se o valor unitário do serviço. Após a aplicação das taxas de administração, impostos e lucro, tinha-se finalmente o preço unitário que seria aplicado às quantidades fornecidas pela Nucom. Resumindo: nada de anormal ou suspeito havia na proposta comercial. O "tchã" da história estava na proposta técnica.
Se alguém quis saber a razão da papelada já descrita, a razão é simples. Na década de 1980 (não sei como é hoje) as propostas técnicas atingiram um padrão de qualidade e de apresentação tão grande que poderiam tranquilamente ser chamadas de "propostas estilo ostentação", tal a quantidade, detalhamento e riqueza das informações nelas contidas.
Começava-se por descrever as implicações logísticas decorrentes da localização da obra. Descrevia-se como os materiais mais importantes seriam obtidos, qual a forma de estocagem, quais as alternativas, etc. O mesmo se fazia com a mão de obra: quantos operários seriam alojados, quantos recrutados na região, qual a estimativa de casados e solteiros, qual o máximo previsto para cada categoria, como seria feito o fornecimento de alimentação para todos, quantos refeitórios precisariam ser construídos, qual o equipamento de cozinha seria utilizado, em quantos turnos previa-se o trabalho, etc. etc.
Os equipamentos previstos tinham o mesmo tratamento: além da descrição detalhada das unidades industriais (britagem, centrais de concreto, centrais de formas e de armação), ainda era abordado o plano de manutenção, como seria a planta das oficinas, qual a equipe prevista, qual a quantidade de ... e bla bla bla.
A descrição de como seriam executadas as várias etapas construtivas da obra era exaustivamente detalhada, e qualquer servicinho era esmiuçado quase ao nível molecular. Essas informações transpostas para o papel transformavam as propostas técnicas em verdadeiras aulas, em cursos rápidos de engenharia.
Mas o edital de Angra 3 continha uma coisa a mais, uma exigência que, mal utilizada, poderia converter-se em um verdadeiro Cavalo de Tróia: as composições de preços unitários já mencionadas deveriam obrigatoriamente fazer parte da proposta técnica, mas sem nenhuma indicação de preço. Essa novidade talvez tenha sido pensada em virtude da natureza estratégica da obra, como uma forma de "garantia da qualidade" para o contratante. Pode ser...
O fato é que, de posse do esqueleto de cada um dos preços antes da proposta comercial ser aberta, a empresa contratante poderia tranquilamente fazer uma auditoria prévia do preço final ofertado de cada concorrente, sem precisar tirar o lacre da proposta comercial. Para essa auditoria, bastaria acrescentar os preços unitários dos materiais e dos demais componentes. Traduzindo: se eu sei que a empresa XPTO prevê gastar 6 sacos de cimento para fazer um metro cúbico de concreto, basta multiplicar os seis sacos pelo preço unitário do cimento. Depois, é só multiplicar o valor assim obtido pela quantidade prevista de concreto para a obra toda.
Mesmo em uma época onde não havia computadores de mesa, fazendo isso com todos os serviços, não seria difícil descobrir o preço final apresentado por cada concorrente, com pequena margem de erro. Esse era o Cavalo de Tróia. Se houve ou se houvesse naquela época um jogo de cartas marcadas tal como aconteceu no Petrolão, seria muito fácil arranjar algum defeito subjetivo em uma proposta com pinta de ganhadora, para desclassificá-la sem sequer abrir a proposta comercial.
Jamais saberei o que aconteceu naquela época. De nada adiantou a consultoria de uma empresa alemã que já construíra usina similar a Angra 3, nenhum efeito deve ter causado aquela inacreditável massa de textos e desenhos produzida. Nem a dedicação integral de alguns dos mais brilhantes profissionais que tive a honra de conhecer, pertencentes ao quadro de engenheiros e técnicos da empresa. Nenhum peso teve a verdadeira fortuna gasta na proposta mais sofisticada apresentada até então pela construtora.
Talvez nem fosse necessária a "tática diversionista" montada pelo "major". Fico matutando que a proposta da empresa onde trabalhei pode ter corrido mais risco depois de ter sido entregue do que no seu transporte de BH para o Rio. Naqueles dias em que os generais presidentes governavam, nossa proposta foi desclassificada, não sei se devido a problemas na documentação (o que eu duvido) ou, o que é quase certeza para mim, na proposta técnica, onde estava amarrado o cavalinho de tróia.
Com a desclassificação, a proposta comercial, tal como previsto no edital, não foi sequer aberta (talvez nem fosse preciso, não é mesmo?). Dentre as empresas grandonas classificadas, a Andrade Gutierrez deve ter apresentado o menor preço. E foi declarada vencedora da licitação.

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