domingo, 2 de novembro de 2014

COISAS DE ORATÓRIOS

Meu pai nasceu em Oratórios, mais precisamente em São José dos Oratórios, na época em que esse município ainda era apenas um distrito de Ponte Nova. Saiu de lá na década de 30, creio, mas guardou sempre uma lembrança carinhosa de sua terra. De tal forma, que quando mencionei que o João Bosco, compositor nascido em Ponte Nova, havia gravado uma música com o nome de “Das Dores de Oratórios”, meu pai espantou-se:

 Não é possível! Será que é mesmo a minha querida Oratórios?

Era. Dei a ele o disco que continha essa música. A bem da verdade, não era uma música para se gostar de imediato. Falava de uma noiva que foi abandonada no altar, enlouquecendo a partir daí. Trajando o que restou do vestido de casamento, ficava gemendo e gritando pela cidade.


Quando eu e meu irmão éramos crianças, nosso pai nos contava histórias incríveis enquanto nos colocava para dormir. Começou contando casos de sua infância e acabou com histórias mirabolantes inventadas por ele. Para nós isso não fazia a menor diferença, porque tudo parecia ser a narrativa saída de um livro de aventuras, tal sua dessemelhança com nossa vida de crianças de cidade grande cercadas e controladas por onze adultos.

Minha irmã, onze anos mais nova que eu, também ouviu esses casos. Meu pai era um bom contador de histórias mas, talvez, a explicação do encanto e diversão proporcionados por esses casos antigos esteja nesta frase ouvida recentemente (infelizmente, desconheço o autor): “nada é mais estranho que o passado recente”.

Finalizando essa não tão pequena introdução, preciso dizer que a maioria dos casos ouvidos por nós dissipou-se como fumaça, como a fumaça do tempo que passou. Por isso, relembrar alguns desses casos ingênuos, divertidos e antigos que já tinha esquecido, me deixa feliz. Porque parte do que sou hoje veio lá de São José dos Oratórios, veio da família de meu pai, de seus costumes, de sua esquisitice e de sua forma peculiar de relacionar-se com o “mundo exterior”. Para isso, vou usar e abusar da memória e das descrições encaminhadas por minha irmã, que conviveu muito mais tempo com nosso pai. Vamos lá:


DO TEMPO DA ESCRAVIDÃO
“Papai me contava algumas histórias dos escravos do avô dele (pai da vovó Vita): quando ocorreu a abolição, eles imploraram para continuar na fazenda porque não queriam ir embora de jeito nenhum – e realmente continuaram lá. Segundo relatos de nossa avó, esses escravos eram tratados com consideração, como se fossem empregados e não escravos. Uma das histórias que eu mais gostava de escutar era a de um escravo velho e meio amalucado: no dia em que ele cismava que era feriado não tinha ninguém que o convencesse do contrário. Punha uma garrafa de cachaça debaixo do braço e ia às fazendas da vizinhança provocar ‘os colegas que não estavam de folga’. Isso dava uma confusão danada para o nosso bisavô, que depois tinha de apaziguar a fúria dos demais fazendeiros, porque o tal escravo perturbava o trabalho dos outros. Segundo papai, nossa avó contava esse caso com muita simpatia e muita ternura porque gostava muito do preto.

Quanto à família do vovô Augusto, imagino que talvez tivesse um perfil abolicionista, porque não me lembro de relatos desse tipo de história; ao mesmo tempo, lembro-me vagamente de menção à revolta de nosso avô frente a situações de desumanidade. Papai dizia sempre que seu pai era um homem extremamente correto e justo e não mentia em hipótese alguma, doesse a quem doesse, embora fosse muito amoroso”.


SÁ GERMANHA E SÁ GENOVEVA
“Sá Germanha (Germania) e Sá Genoveva eram empregadas da casa deles e, provavelmente, irmãs. Uma delas dizia que quando ia a um ‘baile’, levava um almanaque; assim, quando algum ‘cavaiero’ a convidava pra dançar, ela agradecia e recusava delicadamente explicando – ‘não posso, estou estudando’. E papai acrescentava que o almanaque devia estar de cabeça pra baixo, porque ela não sabia ler.

Uma delas, quando ia à cidade fazer compras, às vezes voltava vitoriosa contando a negociação que tinha realizado. Era alguma coisa como – ‘acha que eu sou boba de comprar isso por cinco réis (ou coisa parecida)? Eu levo se o senhor deixar por dez!’ E o comerciante muito generosamente e em consideração à ‘clientela fiel’, concordava!

Um dia, quando uma delas estava na cozinha com uma conhecida, um dos tios entrou e perguntou se o ‘coffee’ estava pronto e ela respondeu que já estava saindo. Outro tio surgiu e ela informou que o café estava pronto, ao que ele respondeu: – ‘oh! muchas gracias!’. A amiga, boquiaberta, perguntou se ela entendia o que eles diziam e ela muito importante esclareceu: – ‘ah minha filha, pra trabalhar aqui nesta casa, tem que falar muitas línguas’.”


ZÉ MAMÃO
“Sei que morava em Oratórios e papai falava dele com muita simpatia. Ele gostava muito da família do papai e ia com muita frequência na casa ou venda deles. Uma vez ele apareceu com uma mala velha de couro e foi se despedir porque estava indo embora para Ponte Nova ou sei lá onde. Tio Delvaux então com muita conversa e psicologia o convenceu a desistir do intento, usando argumentos ‘fortes’ ao dizer como todos na cidade ficariam muito tristes com a ausência dele e que não achariam ninguém para substituí-lo nas ‘funções imprescindíveis que ele executava tão bem’, funções essas que eu não lembro bem, mas eram umas coisas bem malucas. E Zé Mamão, muito comovido, desistiu de ir embora e abriu a mala para que o Tio Delvaux visse as preciosidades que ele ia levar: uns carretéis de madeira vazios, umas latinhas, uns vidrinhos sem tampa e um pedaço de fumo de rolo. Aí foi a vez do Tio Delvaux ficar comovido com tamanha inocência. Outros tempos, né?”


NADANDO NO RIO
“Segundo papai, algumas vezes, ele, Tio Nhô, seu primo Odilon e outros amigos iam para a beira do rio fumar escondido. Quem sabia nadar, aproveitava a ocasião pra se refrescar; um desses era o Odilon.

Papai dizia (e mamãe também confirmava) que seu primo era moleque demais. Em um desses dias, depois de ter nadado bastante, montando na bicicleta todo molhado e, diga-se de passagem, nu e com o cigarro no canto da boca, começou a fazer demonstrações das habilidades ciclísticas. Só que justo nessa hora, passa a jardineira (ônibus) das moças do colégio interno e com as freiras também, que dão de cara com a cena: Odilon pedalando a bicicleta, pelado e de cigarro na boca.

Papai contava que foi aquele alvoroço, as freiras horrorizadas tentando tapar os olhos das moças e algumas mais assanhadas olhando animadamente com risinhos disfarçados e irônicos.”


O PRIMEIRO AUTOMÓVEL
“Papai contava que em determinado dia chegou o primeiro automóvel em Oratórios e, como era de se esperar, causou imenso rebuliço. Todos os moradores, boquiabertos, querendo ver de perto aquela preciosidade. Era um carro alemão (papai dizia a marca, mas eu não me lembro).

Como ninguém sabia dirigir, resolveram chamar certo indivíduo, muito ‘gabaritado’ por ter morado algum tempo no Rio de Janeiro. O problema é que o sujeito também não sabia dirigir, mas não podia dar o braço a torcer. Como dizia papai, “montou no carro e ligou a ignição” e saiu dando arrancos e mais arrancos e fazendo um barulhão, em meio ao espanto e entusiasmo geral.

Quando alguém com um pouco mais de sensatez perguntou ao ‘experiente motorista’ se era daquele jeito mesmo, ele respondeu categoricamente que sim, porque aquele era um carro alemão e os alemães são assim mesmo, ‘muito bruscos’”.


“O SECRETÁRIO MODERNO”
“Outro caso de que me lembrei foi o de um amigo do Tio Lourival que ficou hospedado na casa dos nossos avós alguns dias. Esse amigo estava radiante com um livro que havia adquirido. O título era ‘O Secretário Moderno’ e o livro apresentava modelos de cartas para várias situações. Quando partiu, despediu-se calorosamente de todos, principalmente do amigo Lourival, agradecendo a hospedagem.

Pois bem, pouquíssimos dias depois, Tio Lourival recebeu uma carta desse amigo com os seguintes dizeres (imagino que devia ter um prezado ou caro ou algum outro pronome de tratamento):

‘Lourival,
Qual o motivo do teu silêncio?' 

E papai completava  ‘ele devia estar doido para estrear o livro, mas não conseguiu encaixar o Lourival em nenhum dos modelos de carta. Não encontrando outra opção, não se deu por rogado’.
Fico imaginando a cara do Tio Lourival, que era muito irônico, lendo a carta.”


FALANDO FRANCÊS
“Trata-se do filho de um dos moradores do distrito; o pai era frequentador e freguês do armazém de nosso avô Augusto. Homem muito humilde, trabalhador rural e que tinha muita estima pela família do papai, no final do dia, depois da lida, ia para o armazém conversar fiado, fumando cigarro de fumo de rolo e provavelmente tomando uma pinguinha, como muitos outros. 

Pois bem, esse homem simples tinha um filho que foi mandado para um seminário como auxiliar de serviços e adquiriu algum estudo por lá. Teria sido enviado para esse seminário por intermédio de algum patrão do pai com a intenção de ajudar na educação do rapaz. De tempos em tempos o rapaz voltava à casa paterna, talvez em período de férias e o pai, muito orgulhoso,ao exibir o talento de seu primogênito, aparecia no armazém geralmente em dia e horário de maior movimento, para que mais pessoas pudessem apreciar o espetáculo. E começava ordenando ao filho que pedisse o primeiro item da lista de compras apontando para o saco de arroz. O “crioulinho” (era assim a referência ao elemento) na maior desenvoltura, pedia em alto e bom som (vou escrever do jeito que se pronunciava):

 ‘Done moá an quilô de arrozê’.

(Entenda-se: done moá an quilô = donne-moi un kilo...)
E o pai, orgulhosíssimo, olhava ao redor para ver a impressão causada nos demais, igualmente encantados e boquiabertos. E assim o filho prosseguia com os outros itens. Feijão virava feijô, fubá virava fubê, farinha era farinhê na boca do picareta. E ouvindo o filho falar "francês", o pai, não se contendo de emoção, já engasgado com toda aquela erudição, ordenava o último item e o rapaz, sem pestanejar:

 ‘Done moá ine rapadurê’.

Em vista disso, o pobre homem prorrompia em pranto e, entre lágrimas, exclamava:

 ‘Ele fala um francêis tão ispivitado, que até eu, que sou anarfabeto, entendo!

E papai concluía de forma solene e irônica: ‘Coisas de Oratórios!’ Mamãe sorria e balançava a cabeça como quem diz ‘nunca vi tanta bobagem’”.

* * * * *

Este texto é uma homenagem a meu pai, nascido em 1911, em um dia de Finados. Por ter acompanhado o enterro dos pais e de quase todos os irmãos (era o segundo mais novo), ele odiava essa data, ocasião em que trancava-se em um quarto, imagino que entregue às lembranças da família. E só permitia a entrada dos filhos.

É também um agradecimento público à minha irmã, pela paciência e empenho em lembrar e escrever esses casos para mim.

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