sábado, 4 de julho de 2015

SÉCULO VINTE VÍRGULA UM

Tio Delvô e tio Chiquinho morreram quando eu ainda era criança. Só vim a reconhecê-los através de retrato, pouco tempo antes de meu pai morrer. Curiosamente, a única imagem de infância que tenho de um deles, é a de um homem de cabelos lisos, despenteados e com um olho branco (o que me causava grande medo), que via às vezes na casa de minha avó. Quando comentei isso com meu pai, vi uma grande surpresa em seu rosto, e o comentário de que tio Chiquinho teve catarata em um dos olhos (quando tio Chiquinho morreu, eu era bem novo, talvez com seis, sete anos. Foi a primeira notícia de morte que recebi).

Pelo que dizia papai, tio Chiquinho escrevia bem pra caramba. De acordo com minha irmã, “papai se referia a ele como um verdadeiro poeta, de uma inteligência e sensibilidade nunca vistos e, ao mesmo tempo, de uma modéstia sem par. Papai achava que como tio Nhô, ele, Chiquinho, também teria estudado medicina por influência dos irmãos, mas sua natureza era de literato e historiador”.  Foi professor de História em Ubá.


Tio Chiquinho (1899 – 1955)



É curioso pensar que, para mim, até outro dia, tio Delvô seria o equivalente ao retrato de Itabira para o Drummond – apenas uma lembrança, só que sem nenhuma dor. De repente, com as informações recebidas, ele quase que se “materializou”. Segundo minha irmã, papai sempre se referiu ao tio Delvaux como sendo o "empreendedor" por excelência. Junto com o irmão Lourival fundou um laboratório de produtos farmacêuticos. Creio que o nome era Laboratório Tapaiuna. Dirigia – ou coordenava algumas farmácias de propriedade da família (coisa com que eu realmente nunca sonhei): uma no bairro de Santa Teresa, administrada pela tia Neném, outra em Brumadinho pela tia Zinha, outra em Ouro Preto, dirigida por tio Lourival e pela filha Neusa e, ainda uma no Rio de Janeiro, de responsabilidade do próprio Delvaux. O laboratório ficava na Av. Brasil e quem tomava conta era meu pai, tio Nhô e tio Chiquinho.

Palavras de minha irmã: “Por todas as informações que consegui obter da tia Zinha, (...) e Neusa, deduzo com bastante probabilidade que tio Delvaux, depois da recessão pós-guerra que culminou na falência dos negócios, desenvolveu um depressão severa que na Medicina chamamos Transtorno Depressivo Maior e não se recuperou mais.” Quando eu nasci – ou pouco tempo depois – esses negócios já tinham ido pro brejo.


Tio Delvaux (1894 – 1964)



Tio Lourival sempre me pareceu um sujeito alegre e irônico, pois sempre o via rindo, nas pouquíssimas vezes que estive com ele. Talvez o mais moleque da família. Creio que foi ele, quando criança, que trocou o pedaço de fumo de rolo de uma visita, amigo de meu avô, por excremento seco de porco. O visitante, sem perceber, teria picado o cocô seco, preparado e fumado o cigarro de palha, apenas estranhando de vez em quando o aroma e o sabor deixado na boca pela fumaça. O resto da história não sei. Já adulto, morou muito tempo em Mariana. Era casado com Lígia (não tia Lígia, apenas Lígia) e pai de Neuza, a prima mais misteriosa da minha infância, pois só vim a conhecê-la quando se casou com o Odilon.

A propósito dessa prima, há um fato pitoresco a lembrar. Ela era apaixonada pelos escritores russos (Tolstoi e companhia). Por isso, deu a todos os filhos - e ela os teve com bastante entusiasmo, talvez para compensar o fato de ser filha única -  nomes tirados dessa literatura: Kátia, Alex, Dimitri, Karina, Igor e Yuri. Ah, ainda teve um cachorro, ou melhor, cadela, de nome Natasha. Bacana!



Tia Neném era casada com tio Geraldo, um sujeito que sempre me pareceu um gentleman, com seu cabelo liso e ralo sempre muito bem penteado. Meu pai e ele tinham uma convivência civilizada, mas como Tio Geraldo tinha um bar no Santo André, próximo à pedreira Prado Lopes, isso era causa de um desprezo mal disfarçado por parte de meu pai (afinal, Tio Geraldo não tinha “cultura”!!), um esnobismo equivocado e injustificável, principalmente porque meu pai já estava na merda, naquela época.

Tio Geraldo e tia Neném formavam um casal super simpático, pais de duas gêmeas incrivelmente idênticas para mim, que nunca sabia distinguir quem era uma ou outra. Lembro-me de vê-las com vestidos absolutamente iguais. Uma delas tinha um sinal entre os olhos, fruto de uma catapora, creio. Para mim, essa era a única diferença entre elas. Chamavam-se Teresinha Maria (falecida) e Maria Teresinha (idem). Ou Teresinha e Jumbinha, respectivamente.

Essas primas tinham uma pronúncia singular, fruto talvez de terem falado muito tarde (quatro anos?): colocavam erre no final de algumas palavras, criando um efeito inimaginável. Ao referir-se à minha mãe, conhecida por Lia, diziam “porque a Liarrr...”. Além disso, sibilavam fortemente o “s”, como se cochichassem permanentemente, só que em voz alta. Quando falavam de mim e de meu irmão diziam “Cecinhô” e “Eduarrrrrdô”. Eu achava isso o máximo.

Perto da data de nosso casamento, quando estávamos entregando os convites, perguntei a meu pai como faria para entregar um convite para Tia Neném. Papai se surpreendeu e perguntou se eu queria mesmo convidar sua irmã para nosso casamento. Diante do meu “sim” categórico, deu o endereço do apartamento e uma explicação quase extraterrestre:
– “São dois apartamentos por andar. Você bata na porta que estiver escura”.

Quando cheguei ao prédio, descobri de imediato a moradia de uma legítima representante da família de meu pai.. As portas de entrada dos apartamentos, como era comum na época, tinham uma janelinha ou abertura fechada com grade e vidro, que permitia a identificação de quem batesse, sem precisar abrir a porta. Pois bem, a janelinha do apartamento de Tia Neném estava escura, sinal de que a sala estava com as janelas fechadas e em total penumbra.

Depois que toquei a campainha, uma das primas abriu a janelinha e foi aquele alvoroço:
– É o “Cecinhô”!!

Minutos depois a porta foi aberta e pude entregar o convite para minha tia e para uma das primas. Nessa época, elas já não se deixavam ver juntas. Quando uma estava na sala, a outra ficava no quarto. Saía a da sala e logo chegava a do quarto. Isso se repetiu quando Tio Geraldo morreu. Só uma delas foi ao enterro. Depois do sepultamento, Tia Neném e a filha deram o braço para minha mulher e foram conversando como se nada tivesse acontecido. Afinal, como orientava meu pai, o choro em público era uma coisa que devia ser evitada, mesmo diante da maior perda. Muito louco.

Um dia, para grande consternação de tia Neném e de seus irmãos, a Teresinha engravidou. O que seria para mim motivo de grande alegria, sinal de que, afinal, ela não era tão lesada como a irmã, virou motivo de vergonha e mortificação. Versões sem nexo foram divulgadas, tais como um casamento (de que ninguém nunca ouviu falar) e imediata separação, coisas assim. O fato é que essa criança, uma menina pouco mais velha que nosso primeiro filho, provavelmente nem registrada foi, o que, aparentemente, também a impediu de cursar o ensino fundamental. Não me lembro do nome dela. Até alguns anos atrás, morava com a Jumbinha, pois Teresinha, sua mãe, morreu de câncer quando ela ainda era criança.


Tia Neném (1913? – 1989)

4 comentários:

  1. Zé, eu sigo seu blog e leio seus posts - acho incrível a sua capacidade de conectar suas histórias com as suas memórias e adoro a forma como você as embala com a sua narrativa - você prende a atenção com uma mistura de realidade e ficção de um mestre - parabéns - Ma.Lu.Co:)

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    1. Um comentário desse, vindo de um cara que eu admiro profundamente, é uma ótima forma de começar o dia. Obrigado, Mauro. Obrigado mesmo.

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  2. Olha, eu creio que você encontrou sua verdadeira veia literária, as memórias. Seus textos que versam sobre isso estão cada vez melhores. O Marreta do Azarao.

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    1. Obrigado, Marreta! Elogio feito por quem escreve bem é muito potencializado.

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