quarta-feira, 8 de outubro de 2025

O CRIME (DE PLÁGIO) PERFEITO - RUBEM BRAGA

 
Depois do surgimento da IA – das IAs, na verdade – ficou fácil posar de escritor, músico ou desenhista. Só que não! Ter uma ideia e pedir a uma delas para gerar um texto, um desenho ou criar uma melodia não faz de ninguém o autor. Você pode até ter a veleidade e a vaidade de apresentar-se como se fosse o autor da “maravilha”, mas intimamente sabe que não é.
 
Quando trabalhava em construtora, fiquei sabendo de um caso explícito de “mau-caratismo”. Um colega fez um elaborado estudo sobre algum assunto, para a diretoria da empresa. Esse engenheiro era muito inteligente, culto e escrevia bem pra caramba, além de ter ótima caligrafia. Não sei se chegou a apresentar o relatório. O que sei é que outro engenheiro, um picareta ignorante e mesquinho, pegou esse trabalho, reescreveu tudo com a própria letra (não havia computadores) e o apresentou ao diretor.
 
Quando ficamos sabendo disso, um colega sarcástico disse que o texto tinha sido “passado a sujo”, porque estava até com erros de português e a letra do plagiador era muito mais feia que a do autor original – e comentou: “como ele é semianalfabeto, nem passar a limpo direito ele conseguiu”. Nós (aí incluído o diretor) rimos muito desse caso, mas, curiosamente, não houve punição para o mau-caráter.
 
Lembrei-me desse caso ao ler uma divertida crônica do Rubem Braga em que ele confessa ter plagiado descaradamente o Carlos Drummond de Andrade. Espero que gostem. De uma coisa quem acessa este blog desconjuntado pode ter certeza: as tranqueiras que escrevo e publico aqui sairam de minha mente desmiolada, são apenas minhas, não têm plágio nem IA (a baixa qualidade já denuncia). Lêaí.
 
Aconteceu em São Paulo, por volta de 1933, ou 4. Eu fazia crônicas diárias no Diário de São Paulo e além disso era encarregado de reportagens e serviços de redação; ainda tinha uns bicos por fora. Fundou-se naquela ocasião um semanário humorístico. O Interventor, que depois haveria de se chamar O Governador. Seu dono era Laio Martins, excelente homem de cabelos brancos e sorriso claro, boêmio e muito amigo. Pediu-me colaboração; o que podia pagar era muito pouco, mas eu não queria faltar ao amigo. Escrevi algumas crônicas assinadas. Depois comecei a falhar muito, e como Laio reclamasse inventei um pretexto para não escrever. Seu jornal era excessivamente político (perrepista, se bem me lembro) e eu não queria tomar partido, na política paulista, mesmo porque tinha muitos amigos antiperrepistas. Laio não se conformou: “Então ponha um pseudônimo!”
Prometi de pedra e cal, mas não cumpri. Laio reclamou novamente, me deu prazo certo para lhe entregar a crônica. No dia marcado estava atarefadíssimo, e quando veio o contínuo buscar a crônica para O Interventor eu cocei a cabeça – e tive uma ideia. Acabara de ler uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Minas Gerais, órgão oficial de Minas, com um pseudônimo – algo assim como Antônio João ou João Antônio, ou Manuel Antônio, não me lembro mais; ponhamos Antônio João. Botei papel na máquina, copiei a crônica rapidamente e lasquei o mesmo pseudônimo.
Dias depois recebi o dinheiro da colaboração, juntamente com o pedido urgente de outra crônica e um recado entusiasmado de Laio: a primeira estava esplêndida!
Daí para a frente encarreguei um menino da portaria, que estava aprendendo a escrever à máquina, de bater a crônica de Drummond para mim; eu apenas revia, para substituir ou riscar alguma referência a qualquer coisa de Minas. Pregada a mentira e praticado o crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes senti remorso, eu o afogava em chope no bar do alemão ao lado, e o pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale do Antônio João.
O remorso não era, na verdade, muito: Carlos não sabia de nada, e o que eu fazia não era propriamente um plágio, porque nem usava matéria assinada por ele, nem punha o meu nome em trabalho dele. E Laio Martins sorria feliz, comentando com meu colega de redação: “O Rubem não quer assinar, mas que importa? Seu estilo é inconfundível!”
O estilo era inconfundível e o chope era bem tirado; mas você pode ter certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas vezes eu o bebi à sua saúde, ou melhor, à saúde do Antônio João, isto é, à nossa. Dos vinte e cinco mil-réis que Laio me pagava, eu dava cinco para o menino que batia à máquina; era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes graças ao seu trabalho. Laio, o menino, os leitores e eu – e você em Minas não era infeliz. Não creio que possa haver um crime mais perfeito.

6 comentários:

  1. Eu conhecia essa crônica. Ora, Rubem Braga plagiar Drummond não é plágio é tributo simbiótico.

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  2. Jotabê,
    Nesse nossos tempos chamados
    modernos, já nem sei mais o que
    é de verdade essa questão de plágio...
    É sempre ler por aqui.
    Bjins&Abraço
    CatiahôAlc.

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  3. Esses dias fui dar uma voltinha e numa grande livraria onde costumo entrar vi algun livros de Rubem Braga à mostra. Parece que o nome dele vem sendo lembrado. Isso é bom.
    Quanto às IAs, já tem artriz feita por IA obtendo contratos milionários. Em breeve haverá filmes interios feitos por IA, e você ainda tá nessa de fazer campanha contra IA.
    Ninguém tá nem aí se tal coisa for feita por IA ou não. As pessoas querem consumir e sentir e se entreter. Mais vale uma coisa que preste vinda por IA do que um monte de porcaria oriunda de mentes analógicas com cara de bunda.
    O mundo está mudando, Jotabê. E me impressiona que pessoas que poderiam usufruir disso a seu favor estejam tão resistentes, a troco de nada, porque o que muda na sua vida ao ler textos, livros ou assistir um filme de IA? Nada.
    Bem, é o que eu penso sobre isso. Um abraço, meu querido.

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    1. Eu sou totalmente a favor das IAs! Só não concordo que alguém assuma como seus os textos que uma IA escreveu. SEmpre que eu escrevo um texto eu o submeto à análise do ChatGPT, mas fico puto quando ele sugere um texto "melhorado", pois não sou eu que estou ali. É só isso.

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  4. E faço isso só para tentar descobrir um bug oculto, um erro de concordância.

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