quinta-feira, 19 de junho de 2025

SÍNDROME DE CARÊNCIA DE PROTAGONISMO – MARCELO DUARTE LINS

 A pessoa mais culta que conheço pessoalmente foi diretor do colégio onde minha mulher lecionou. Simpaticíssimo e dono de um sorriso cativante, é sempre convidado para reuniões de ex-alunos desse colégio. Sabe o nome e demonstra genuína amizade por cada um deles.
 
Anos atrás, depois de ser apresentado a ele, dizia que ele era meu melhor – ou mais caro – inimigo, porque a saída da meninada acontecia exatamente em frente à minha casa, com todos os previsíveis inconvenientes que isso provocava: ovos explodidos no nosso portão, farinha de trigo espalhada no passeio, correria, gritaria e todo tipo de traquinagem que adolescentes fazem na saída das aulas.
 
Um dia o colégio fechou e deixei de encontrar meu “inimigo” com a frequência anterior. Mas o sentimento de amizade que tenho por ele permaneceu. E um dia nos tornamos “amigos de facebook”.
 
Mesmo que à distância, isso permitiu um estreitamento do contato, pois sempre publica seus poemas e textos de terceiros que fogem à banalidade tão comum nessa rede.
 
Hoje, já com mais de 80 anos, publicou um texto que sintetiza – ou simboliza – sua vida e a de todos que envelheceram e se aposentaram (lembraram de algum blogueiro?). Espero que gostem.


Um dia você é chamado de “doutor”, “comandante” ou seja lá qual for o título de autoridade civil ou militar.
No outro, é só o seu Fulano da caminhada matinal, a dona Cicrana do pilates das nove, a voz que o neto chama para ajeitar o Wi-Fi.
E tudo bem.
Durante anos — décadas, talvez — você construiu, decidiu, liderou.
Resolveu problemas que pareciam montanhas.
Carregou a casa, a empresa, o Estado — o mundo, quem sabe — nas costas.
Teve horário, metas, gente que dependia de você.
Chamavam, você respondia. Ordenava, e o mundo obedecia. Ou quase.
Mas enquanto o mundo obedecia, havia um outro mundo que crescia — e que, muitas vezes, você mal viu crescer.
Filhos que aprenderam a andar, falar, sofrer e se virar sem você.
No fundo, você prometia a si mesmo que um dia compensaria o tempo.
Esse dia chegou. E, para sua surpresa, não é mais com os filhos — é com os netos.
Agora, o crachá foi entregue, o e-mail corporativo desativado, a agenda virou um caderno de aniversários e exames de rotina.
Um clique silencioso no botão “sair”.
E então começa o verdadeiro login: o da vida que existia por trás da função.
No início, é estranho.
Acordar sem pressa.
Almoçar sem o celular à mesa.
Não precisar provar nada a ninguém.
Parece perda.
Mas, com o tempo, a gente descobre que é ganho.
É quando o ego — aquele bicho barulhento e faminto — finalmente vai dormir mais cedo.
As vaidades começam a se despentear.
E o poder, coitado, vira uma piada interna entre lembranças e ironias.
Há uma liberdade secreta — e quase sagrada — em deixar de ser importante.
Depois que os holofotes se apagam e as salas esvaziam, sobra um silêncio que assusta no início, mas logo revela algo raro: a chance de ser inteiro sem precisar ser centro.
É nesse intervalo entre a grandeza e o anonimato que mora uma liberdade que poucos aceitam — a de não precisar provar mais nada.
Ser ex-presidente, ex-artista da moda, ex-chefe temido ou ex-qualquer-coisa relevante exige mais do que currículo.
Exige maturidade para suportar o eco do próprio nome dito cada vez menos.
Há quem aceite essa travessia com dignidade, transformando passado em legado e presente em sossego.
E há quem se agarre a qualquer manchete, a qualquer aplauso residual, como quem se recusa a apagar as luzes do palco mesmo quando a plateia já foi embora.
Que a vida pregressa sirva de boas lembranças, orgulho e referências — não de prisão.
Viver de glórias passadas é confortável, mas perigoso.
Morar no passado é correr o risco de se tornar o próprio fantasma do metrô no filme Ghost — aquela alma inquieta, presa entre estações, que assombra os outros no vagão porque não consegue aceitar que o tempo passou.
Há dignidade em reconhecer a importância que se teve.
Mas há ainda mais liberdade em não precisar provar isso o tempo todo.
Nesse novo tempo, surgem outras rotinas: o café sem pressa, a leitura sem prazo, a escuta sem interrupção.
Aparece uma nova importância — mais discreta, mas muito mais verdadeira.
Porque já não importa o que você faz.
Importa quem você é.
Agora, você é o dono do cachorro Weiss e da gata Menina Chanel.
E as pessoas da praça nem sabem seu nome — quanto mais o que você já foi.
E não faz falta.
As ilusões do “ser alguém na vida” se dissolvem como espuma.
E o que sobra é a essência:
O prazer de uma conversa boa.
A alegria de ensinar sem cobrar.
O tempo de ouvir mais do que falar.
A leveza de não ser mais “necessário” — e descobrir que isso é liberdade, não desprezo.
Talvez o que antes era ausência agora vire presença.
A pressa que te levou embora dos aniversários dos filhos cede lugar à calma de montar quebra-cabeças com os netos.
O conselho que você não deu aos 17, você agora sussurra aos 7 — com voz mais mansa, com menos urgência, com mais amor.
Os netos não são só a continuação da linhagem: são a chance de acertar com mais ternura onde antes só houve esforço e intenção.
A verdadeira grandeza talvez esteja em saber sair de cena. E permanecer inteiro.
Quem já foi importante, se souber deixar de ser, talvez descubra que o anonimato é só outra forma de liberdade — menos barulhenta, mas muito mais leve.
Alguns chamam de aposentadoria.
Outros, de desaceleração.
Mas talvez seja apenas o início da verdadeira vida adulta: aquela em que você vive, enfim, para si mesmo — sem script, sem performance, sem palco.
E é nesse silêncio do “já fui” que se escuta, pela primeira vez, o que você sempre foi.
Sem cargo, sem salário, sem plateia.
Só sabedoria.
E paz.
Porque a verdadeira importância pode estar, agora, em ter o tempo inteiro para fazer coisas simples que levam à felicidade:
Brincar com um neto.
Passear com o cachorro.
Conversar com velhos amigos.
Sentar à mesa com quem sempre esteve por perto — mesmo quando o mundo exigia que você estivesse longe.
É a liberdade de quem já foi importante.
E, enfim, aprendeu a ser presente.

4 comentários:

  1. Jotabê,
    Que texto lindo e que verdades
    claras e simples de serem vividas
    depois que aprende-se aceitar.
    Obrigado de verdade por compartilhar.
    Pode me emprestar esse texto?
    Mas falta o nome do autor.
    Bom feriado prolongado,
    se bem que nós os de
    mais de 60 vivemos em
    maravilhosas e contínuas
    férias.
    Diz la no Espelhando, por favor,
    se me empresta o texto, mas
    preciso do nome do auor,
    mesmo que seja
    só as iniciais ou um nome fictício.
    Bjins
    CatiahôAlc.

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  2. Um texto brilhante que muito gostei de ler. Remete-nos para uma grande reflexão.
    .
    Deixo saudações poéticas
    ..
    “” Caminhas comigo ““
    .

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SÍNDROME DE CARÊNCIA DE PROTAGONISMO – MARCELO DUARTE LINS

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