As moças estudaram línguas, piano e violino. Os homens tinham queda pela literatura. Lembro-me de um lindo soneto, escrito a lápis em uma folha de caderno, que meu pai um dia me estendeu. Como sabia da fama literária de meus tios mais velhos, perguntei se era de um deles. Deu um sorriso misterioso. Perguntei então se era ele o autor. Sorriu mais misteriosamente ainda e pegou de volta o papel, apesar da minha insistência em copiá-lo. Infelizmente - assim como fizeram os irmãos antes dele - pouco antes de morrer, meu pai destruiu todos seus papeis pessoais.
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
SÉCULO DEZENOVE VÍRGULA NOVE
A família de meu pai, tal como a conheci, sempre me pareceu oriunda de um século próprio, só deles, tal a singularidade de comportamentos e características. Teriam nascido e vivido no século 19,7 ou no século 20,3. Alguma coisa desse tipo. Porque tinham traços de grande modernidade misturados com um imenso conservadorismo. Todos os irmãos que chegaram à idade adulta tinham curso universitário. Isso, na primeira metade do Século XX!
As moças estudaram línguas, piano e violino. Os homens tinham queda pela literatura. Lembro-me de um lindo soneto, escrito a lápis em uma folha de caderno, que meu pai um dia me estendeu. Como sabia da fama literária de meus tios mais velhos, perguntei se era de um deles. Deu um sorriso misterioso. Perguntei então se era ele o autor. Sorriu mais misteriosamente ainda e pegou de volta o papel, apesar da minha insistência em copiá-lo. Infelizmente - assim como fizeram os irmãos antes dele - pouco antes de morrer, meu pai destruiu todos seus papeis pessoais.
As moças estudaram línguas, piano e violino. Os homens tinham queda pela literatura. Lembro-me de um lindo soneto, escrito a lápis em uma folha de caderno, que meu pai um dia me estendeu. Como sabia da fama literária de meus tios mais velhos, perguntei se era de um deles. Deu um sorriso misterioso. Perguntei então se era ele o autor. Sorriu mais misteriosamente ainda e pegou de volta o papel, apesar da minha insistência em copiá-lo. Infelizmente - assim como fizeram os irmãos antes dele - pouco antes de morrer, meu pai destruiu todos seus papeis pessoais.
– Não é possível! Será que é mesmo
a minha querida Oratórios?
Era. Dei a ele o disco que continha essa
música. A bem da verdade, não era uma música para se gostar de imediato (ou algum dia). Falava
de uma noiva que foi abandonada no altar, enlouquecendo a partir daí. Vestida
com os restos da roupa de casamento, ficava gemendo e gritando pela cidade.
De minha avó, tenho apenas uma única
lembrança. Fui uma vez visitá-la e ela estava doente, de cama. Levei para ela
um pente verde, de cabo largo e arredondado (meu irmão deu um, igual, de cor
vermelha, para minha avó materna). Creio que ela me pediu para penteá-la, não sei.
Imagino que tenha morrido pouco tempo depois. O que me causa alguma estranheza é o fato de eu conseguir lembrar - com absoluta nitidez - do tal pente, pois devia ter uns cinco anos ou menos quando isso aconteceu.
Casa da família de meu pai
Meu pai tinha verdadeira adoração por ela e
cursou medicina só para atendê-la. Apesar disso e embora fosse um ótimo médico,
odiava essa profissão e toda a carga de sofrimento a ela relacionada. Para mim
e para meu irmão, ela era a “vovó Vita”, em contraponto à avó materna,
com quem morávamos (Dona Leta), tratada apenas de “vovó”.
Segundo as informações de minha irmã, teria
nascido em 27 de outubro de 1878. Todos os meus tios (e primos!) referiam-se à
minha avó apenas pelo apelido, Vita. Nada de “Mãe”, nada de “Vó”. Só meu pai
referia-se a ela como “Mamãe” ou, tomado de emoção, como “minha
querida mãezinha”. Curiosamente, “Papai” era o tratamento que todos davam a
meu avô.
Augusto era o seu nome. A data provável de
seu nascimento é 19 de julho de 1866 (!). Foi dono de armazém em Oratórios e,
segundo ironizava meu pai, era a terceira pessoa em importância no distrito,
atrás apenas do padre e do delegado. Com essa “importância” toda, tinha muitos
afilhados (provavelmente, muita venda fiado também). De acordo com meu pai, em
uma visita a um dos afilhados nascido há pouco tempo, meu avô deparou-se com a
“comadre” segurando uma mamadeira e o menino, no colo, berrando. Perguntada
sobre o que estava acontecendo, disse que estava dando cachaça para o menino.
Diante da reação escandalizada de meu avô (-“está louca, comadre?”), a mãe
esclareceu: -“se
não acostumar desde pequeno, depois não acostuma mais”. Quando nasci, meu
avô já tinha morrido.
Apesar da criação humanista, meus tios tinham
uma timidez e introversão enormes, percebidas até por uma criança como eu. Já
adulto, comecei a pensar que a família de meu pai tinha uma grande vocação para
a auto-extinção. Afinal, em uma época de famílias com prole numerosa, apenas quatro
dos oito adultos se casaram. Assim mesmo, dentre os que se casaram, meu pai foi
o que teve mais filhos, três, ao todo. Ou seja, minha avó, que teve dez filhos,
talvez ficasse silenciosamente escandalizada por ter apenas oito netos. Mais
introversão que isso é difícil. Curiosamente, essa tendência continuou a se
manifestar nos netos e até nos bisnetos. Há, entretanto, alguns casos obscuros
sobre filhos não reconhecidos. Um deles, se não me engano, aconteceu com tio Delvô.
Consta que um dia, muitos e muitos anos
atrás, bateu à porta do laboratório farmacêutico de propriedade de meu pai e
seus irmãos, uma senhora que trazia uma criança pela mão, filho provável desse
tio. Essa senhora queria falar com tio Delvô. Meu pai, que a atendeu, em vez de
conversar civilizadamente com a mulher, fez o contrário: bem ao seu estilo
explosivo e antissocial, botou a dona pra correr (em estilo figurado, claro).
Curiosamente, existe hoje em Ponte Nova uma família cujo sobrenome é “Delvaux”,
a grafia exata do nome de meu tio. Seriam eles descendentes desse meu primo
desconhecido?
Quando ia com minha mãe e meu irmão à casa de
meus tios, tinha a sensação que eles se escondiam de nós, pois surgiam,
cumprimentavam, riam e depois sumiam de novo para dentro de seus quartos.
Tinham o risinho nervoso das pessoas tímidas e inseguras, olhavam como se
estivessem medindo nossa aprovação. Mas eram de trato doce e muito carinhosos,
exceção feita apenas para meu pai, de gênio tempestuoso e irascível. Quando
queria, suas palavras cortavam silenciosa e profundamente, como se fossem
lâminas de bisturi. Não sei se foi sempre assim, mas era o bicho-papão da
família. E, não tenho dúvida, foi quem mais perdeu com isso.
Chamava-se Amynthas.
Assim mesmo, com y e th, pois não concordava em alterar o nome que seus pais
haviam dado a ele só por conta de uma reforma ortográfica ocorrida após seu
nascimento. Curiosamente, embora considerasse “sagrada” a grafia original,
achava muito feio o próprio nome, referindo-se ironicamente a ele na terceira
pessoa: “porque
o Amynthasssssss...”, sibilando fortemente o “s”, de pura sacanagem.
Tendo muitos irmãos, sempre que contava algum
caso sobre eles, o fazia com indisfarçado amor. Para mim, que os via só de vez
em quando, tinham uma magia e um encanto incríveis, tal o carinho e admiração
com que meu pai se referia a cada um deles.
Aliás, papai nunca escondeu seus sentimentos
positivos. Como tinha perdido tudo e estava sempre às voltas com agiotas,
dizia-nos que não tendo nada material para nos deixar, só poderia nos deixar
educação e instrução formal. Mas hoje sei que ele nos deixou muito mais do que
isso: sua capacidade de demonstrar, sem nenhuma reserva, o amor incondicional
que sentia pelos filhos.
Em uma época em que a maioria dos pais que
conheci era distante e autoritária, ele contava histórias para nos fazer dormir
(histórias absolutamente sensacionais sobre sua própria infância), beijava
nossas testas e murmurava orações e bênçãos inaudíveis (quase como se fossem
mantras) quando íamos sair.
Mesmo depois de casado, quando nos encontrávamos,
em qualquer lugar que estivéssemos, eu me curvava para que ele me beijasse
novamente a testa e me abençoasse, em retribuição a todo o carinho e amor que
tinha recebido dele (hoje, eu ajo da mesma forma com meus filhos). Mas, vamos
voltar à trilha original.
terça-feira, 21 de outubro de 2025
SÉCULO DEZENOVE VÍRGULA SETE
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo (...)
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
(extraído do belíssimo poema
Profundamente, de Manoel Bandeira)
O texto a seguir foi revisado e ampliado em 2013. O tema são as (poucas) lembranças que eu tenho de uma família extremamente singular (a de meu pai). Sinceramente, eu gostaria que os leitores deste blog tirassem alguma diversão deste post, tal como eu, enquanto o escrevia. Mas não tenho tanta esperança assim. Afinal, são lembranças de gente comum, com alguns casos curiosos. Os livros de memória escritos pelo Pedro Nava servem de desculpa para tornar públicas estas lembranças. É claro que a comparação não procede, pois ele abriu uma larga e bem cuidada estrada, enquanto eu consigo, no máximo, uma picada, uma trilha irregular e cheia de raízes e galhos. E como o texto é maior do que duas páginas – padrão que eu procuro obedecer no Blogson – será dividido em partes e postado sequencialmente.
A FAMÍLIA DE MEU PAI
Preciso fazer um pequeno
comentário antes de apresentar esse assunto: o embrião, a versão inicial deste texto foi
escrita quando minha mãe ainda estava viva (ela morreu em 2009) e foi enviada apenas para nosso
filho mais velho e para meu irmão. Meu objetivo, já naquela época, era deixar
para os meninos um registro de minhas lembranças e impressões sobre a família
de meu Pai. Só que eu perdi esse arquivo. Recentemente, entretanto, fuçando uns
backups antigos, reencontrei o texto “perdido”.
Eu sempre curti muito esse
negócio de memória, de preservação da memória, fato que foi muito aumentado
depois que fiz cinqüenta anos. Então, depois de reler o que escrevi lá atrás,
achei que estava legal, “leve” (como disse meu filho), mas incompleto. Faltavam
datas, nomes, etc. Foi aí que eu recorri à minha irmã. De posse dos dados que
ela forneceu, dei uma corrigida e ampliei alguma coisa. Talvez o texto tenha
perdido um pouco da “leveza”, mas ganhou em “densidade”. A Física explica...
Deixo claro que mesmo não
querendo magoar ou ofender ninguém, o texto pode ter algum deboche e sarcasmo
(ironia, não, porque segundo o ator Paulo Cesar Pereio, “ironia
é coisa de viado”). Por quê? Porque essa é a minha maneira de ser.
Antes de entrar nas
lembranças propriamente ditas, é importante transcrever a relação que minha
irmã forneceu. Dois são os motivos para isso: o mais simples (e meio delirante)
é que a leitura das datas de nascimento dos tios mais velhos, todas anteriores
a 1900, dá até alguma vertigem, ou, se preferirem, é como olhar as ondas de
calor que sobem do asfalto em um dia muito quente, criando uma distorção das
imagens. O “calor”, nesse caso, seria a passagem do tempo.
O outro motivo, mais
reflexivo, tem a ver com uma ideia que me ocorreu recentemente: as pessoas que
não estão citadas em livros de história, as pessoas que não tiveram algum
destaque maior em vida, as pessoas que, enfim, são a quase totalidade da raça
humana permanecem “vivas” enquanto alguém conseguir lembrar-se delas, enquanto
puderem ser identificadas por fotos ou documentos.
E lembrar-me dos membros da
família de meu Pai é mais do que importante para mim. Porque parte do que sou
hoje veio lá de São José dos Oratórios, veio dessa família, de seus costumes,
de sua esquisitice, de sua forma peculiar de relacionar-se com o “mundo
exterior”.
O irmão mais velho de meu pai chamava-se José, e nasceu em 1892. Morreu com cinco anos de idade, vítima de meningite. Meu pai reproduzia dois casos tristíssimos sobre ele, certamente narrados por um de meus avós. Já doente, no colo de meu avô, pedia algo como -“papai, tira essa dor da minha cabeça!” Um dia (provavelmente dias depois), foi chamado para ver uma procissão que passava em frente à casa onde moravam. Não aparecendo, foram procurá-lo e o encontraram de joelhos atrás de uma porta. Perguntado por que estava ali, teria respondido que estava pedindo à Nossa Senhora para que ela o levasse. Teria morrido nesse mesmo dia. Dá para imaginar os sentimentos destroçados de meus avós?
Em 30 de dezembro de 1894
nasceu tio Delvaux (Delvô). O terceiro filho, tio Lourival (Lurinho, para seus
irmãos), nasceu em 25 de setembro de 1895.
Talvez tragédias familiares
não fossem tão incomuns na transição do século XIX para o século XX, não sei. O
fato é que mais uma aconteceu na família. Em 1897 (provavelmente), nasceu
Joaquim, o quarto filho de meus avós. Com dois anos de idade, morreu de sarampo.
Meu pai, visivelmente emocionado, contava que enquanto vovô levava o filho para
ser enterrado, vovó Vita dava à luz o tio Chiquinho. Minha irmã também percebeu
essa mesma emoção, o que significa que, para papai a dor não passava fácil,
mesmo que ele nem tivesse nascido quando essas mortes aconteceram.
Em 12 de fevereiro de 1899
nasceu Francisco Augusto, o tio Chiquinho citado. Tia Sinhá (Maria) nasceu em
17 de novembro de 1901. Tio Nhô (Josefino), companheiro de maluquices na
infância e irmão predileto de meu pai, nasceu em 27 de novembro. O ano pode ser
1907 a 1909, não há certeza.
“Sô Amintas”, como eu o
chamava de brincadeira, nasceu em 2 de novembro de 1911, em pleno dia de
Finados. Não tenho dúvida que essa data certamente ajudou muito a moldar a sua
personalidade e seu comportamento.
Tia Neném (Augusta Natalina)
nasceu em 25 de dezembro, provavelmente em 1913 ou 1914 (será que nosso filho
gostaria de ter no nome o complemento “Natalino” ou Natalício”?). E, por
último, tia Zinha (Vitalina), nascida em 8 de maio de 1916.
(No próximo post encontra-se a explicação para o título deste texto).
(No próximo post encontra-se a explicação para o título deste texto).
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
DE VOLTA PARA CASA
Depois de alguns dias preso em um hospital por conta de uma baixa de sódio no sangue, que fez minha mulher ficar com imensa confusão mental e até risco de entrar em coma, estamos de volta.
Para celebrar este momento, começarei a republicar as postagens que mais sucesso fizeram na história do blog, mesmo que nunca tenha pensado em reuni-las em e-books. São muitas. Espero que as leitoras e leitores mais recentes gostem. Eu gostei muito de tê-las escrito (quando ainda tinha memória).
domingo, 19 de outubro de 2025
UM HOMEM DE CONSCIÊNCIA – MONTEIRO LOBATO
Alguns dos melhores momentos da minha
infância e pré-adolescência eu passei lendo os livros infantis de Monteiro
Lobato. Hoje, quando ouço falar de críticas a esses livros por seu conteúdo
"racista", eu tenho vontade de vomitar.
Só falta alguém propor que sejam reescritos
ou que sejam retirados os trechos que "ofenderam" algum leitor mais
sensível (e ignorante). É claro que se isso vingar, a cada década, qualquer
livro de qualquer autor poderá ser submetido à revisão e nova censura, nova
crítica, até que nada mais reste da obra original. Espero já estar morto se
isso um dia acontecer. Mas, voltemos ao inofensivo Lobato.
Os assuntos eram os mais variados e, podem
acreditar, muito instrutivos, sem ser cansativos. Exemplos: Viagem ao céu;
História do mundo para as crianças; Emília no país da gramática; Aritmética da
Emília; Geografia de Dona Benta; História das invenções e
muitos outros.
Para mim, o mais interessante de todos os
infantis é “A Chave do Tamanho”. O tema é o seguinte: a Emília decide ir
a algum lugar onde estão as “chaves” que controlam tudo, para desligar a
"chave da guerra" (esse livro foi escrito durante a Segunda Guerra
Mundial). Como ela era muito pequena e os "disjuntores" ficavam lá no
alto, ela erra a mão e, em vez da chave da guerra, desliga
quase totalmente a chave
do tamanho, fazendo com que toda a humanidade fique reduzida a uma
altura menor que a de um passarinho, se não me engano. Creio que as pessoas são
confundidas com "baratas descascadas". Esse livro é uma viagem!
Como a ideia da reverência não é colocar
textos muito longos, eu tive de apelar para um conto bem pequeno, extraído do
livro “Cidades Mortas”, que é literatura para adultos. Mas o sujeito "chutava
bem com os dois pés", era um craque. Olhaí.
Chamava-se João Teodoro, só. O mais
pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas:
não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos
importância no mundo era João Teodoro.
Nunca fora nada na vida, nem admitia a
hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que
todos queriam: mudar-se para terra melhor.
Mas João Teodoro acompanhava com
aperto de coração o desaparecimento visível de sua Itaoca.
– Isto já foi muito melhor, dizia
consigo. Já teve três médicos bem bons – agora só um, e bem ruinzote. Já teve
seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório.
Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho.
Decididamente, a minha Itaoca está se acabando…
João Teodoro entrou a incubar a ideia
de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o
convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou
arranjo possível.
– É isso, deliberou lá por dentro.
Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de
nada de nada, então eu arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.
Um dia aconteceu a grande novidade: a
nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se
fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora
nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada…
Ser delegado numa cidadezinha daquelas
é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os
outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo.
Uma coisa colossal ser delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de
Itaoca!
João Teodoro caiu em meditação
profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela
madrugada, botou-as num burro, montou no seu cavalinho magro e partiu.
Antes de deixar a cidade, foi visto
por um amigo madrugador.
– Que é isso, João? Para onde se atira
tão cedo, assim de armas e bagagens?
– Vou-me embora, respondeu o
retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.
– Mas como? Agora que você está
delegado?
– Justamente por isso. Terra em que
João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.
E sumiu.
13/08/2014
sábado, 18 de outubro de 2025
VALOR AGREGADO
Algum tempo atrás, a revista Veja trouxe esta
informação: quando o papa João Paulo II veio ao Brasil em 1980, a porcentagem
de católicos declarados era de 89% da população; em 2013, essa porcentagem caiu
para 64%. Segundo essa revista, a previsão é que em 2030 os evangélicos (bem
entendido, todos os fiéis das várias denominações) ultrapassem os católicos.
Fiquei pensando nessas coisas e cheguei a uma
simples conclusão. Não é a fé que está em jogo, o problema é de estratégia mercadológica.
Se víssemos as vertentes católica e evangélica como duas redes varejistas
concorrentes, tipo Casas Bahia e Magazine Luisa, teríamos a seguinte
situação:
As duas redes oferecem o mesmo “produto” – no
caso, Deus (embora uma delas goste de alardear que seu produto é melhor, com
frases como “o meu Deus...”). Ora,
se o produto é igual, é preciso avaliar as condições comerciais de cada “loja”.
Por exemplo, as condições de pagamento: as
lojas católicas aceitam qualquer merreca ou até nada mesmo. Já na concorrência,
até onde sei, o pagamento mínimo é de 10% da renda do “freguês” (o trocadilho
não foi intencional. Escapou-se-me.). Ponto para a rede católica.
Os vendedores da concorrência poderiam dizer
que as lojas católicas trabalham com um tipo de venda casada que eles não
fazem. Imagino até o argumento:
- Vê se
pode, lá neles, para levar o pacote completo da Santíssima Trindade nesse
preço, só se levar também Nossa Senhora e um montão de santos.
- Ah,
não! Aí fica muito caro!
Mas não creio que seja esse o motivo do
crescimento das vendas dos evangélicos.
Bom, o que sobra então é a publicidade e o valor
agregado (odeio esta expressão) que cada rede consegue impor ao seu
produto.
Se compararmos as campanhas publicitárias das
duas redes, a diferença é gritante (muitas vezes, no sentido literal). A rede
católica praticamente não tem publicidade; a concorrência, no entanto, utiliza
a mídia de forma maciça em suas várias opções (até ônibus). E enquanto a rede
católica fazia “opção preferencial pelos
pobres”, a rede evangélica prometia mundos e fundos (de investimento,
talvez) aos consumidores, ciente do sentimento expresso pelo “filósofo” e
carnavalesco Joãozinho Trinta quando disse que "Pobre gosta de luxo! Quem gosta de pobreza é intelectual"!
O único valor agregado plausível são os
milagres. Aí é que está o grande diferencial. Pode parecer que as duas redes
agregam o mesmo valor a seu produto, mas há diferenças de qualidade e
quantidade.
A rede católica oferece milagres sofisticados
e raros, qualitativamente bem acabados, mas quase inatingíveis. Para o sujeito
conseguir um milagre, tem que ter excelente cadastro. E contar ainda com a
intervenção de algum santo. E são exigidos muitos formulários, há muita
burocracia.
Já na rede evangélica (pelo menos em algumas
denominações) rola a maior esculhambação. Quantidade é o que não falta (mesmo
que a qualidade seja até risível). É “milagre” a rodo, todo dia. Tem pastor
(perdão, eu queria dizer vendedor) que até deveria se chamar Apracur (“Apracur é pra curar...”), de tão fodão
que o cara é, pois cura até AIDS!
Há ainda um aspecto que sempre chamou minha
atenção: se você ouvir os clientes e vendedores (na verdade, “vendilhões do
templo”) de algumas denominações evangélicas, vai notar que falam sempre em
progresso e cura materiais, nunca em cura e progresso espiritual. Talvez por
isso é que a rede evangélica cresceu tanto: parece que o sujeito muda de igreja
para se dar bem na vida, só isso.
Ou ainda: é como se os "migrantes" tivessem se cansado do modelo antigo e estivessem à procura de um modelo novo, mais bonito, com novas funcionalidades. Por isso, fica a pergunta final:
Para esse pessoal que trocou o catolicismo por uma dessas novas versões de igreja evangélica, Deus lembra ou não lembra um novo modelo de eletrodoméstico?
(29-06-2014)
sexta-feira, 17 de outubro de 2025
O MUNDO JÁ ACABOU
Por estar muito agitado e depois de uma noite mal dormida, resolvi tentar criar um texto de ficção, uma ficção doentia, pervertida, um pesadelo de inspiração quase pornográfica. Não sei se conseguirei, mas vamos imaginar o seguinte:
- o pai dessa modelo resolve também explorar seus dotes “artísticos” ao fazer filmes de sexo explícito, nem sempre com mulheres. Como é que é?
- o filho da modelo se encarrega de filmar (!!!) as cenas de sexo explícito da própria mãe e, depois, do avô. Não, isso é delírio, nunca acontecerá tanta perversão!
- Após gravar pornô gay e ir parar no proctologista, o pai da modelo quebra o silêncio em pronunciamento enigmático: ‘Conexões…’
Estas três notícias coletadas na internet dão a pista de que Deus e a Pátria provavelmente ficariam muito constrangidos ao ser associados a essa família na expressão “Deus, Pátria e Família”.
SE LIGA, MANÉ!
O post de hoje foi escrito como carta endereçada
a um jovem. Acabei desistindo de entregá-la, pois o destinatário não é meu filho.
Mas guardei. Hoje, relendo o texto que escrevi, percebi que ele é meio papo-cabeça,
tem algumas lembranças de infância, misturado com papo sério. Ou seja, é bem a cara
do Blogson. Por isso, como este blog é meu e eu faço dele o que bem entender, resolvi
postá-lo na seção Falando Sério. E criei um título, coisa que não tinha antes.
Se algum jovem quiser vestir a carapuça, tudo bem. Se nem conseguir entender direito o que leu, tudo bem também. Como disse uma vez o Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF, não estou nem aí. Mas, pela pertinência do assunto e para dar alguma elegância ao texto, acrescentei um trecho da letra da música “Samba da Benção”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, que não existia na carta original.
Se algum jovem quiser vestir a carapuça, tudo bem. Se nem conseguir entender direito o que leu, tudo bem também. Como disse uma vez o Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF, não estou nem aí. Mas, pela pertinência do assunto e para dar alguma elegância ao texto, acrescentei um trecho da letra da música “Samba da Benção”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, que não existia na carta original.
Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida
Cuidado, companheiro! A vida é pra valer. E não se engane não, é uma só
Duas mesmo que é bom ninguém vai me dizer que tem sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu e assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo”
Vou começar essa “conversa” lembrando uma música
que diz assim: “nada sei desta vida,
nunca saberei”. Você pode perguntar por que estou escrevendo isso, mas a resposta
é muito simples: porque eu me preocupo com as pessoas de quem gosto.
Eu já disse algumas vezes aos meus filhos que não sou exemplo de vida para ninguém, pois, sempre vivi frivolamente, de forma amadorística, displicente, irresponsável. E tem um papo aí que diz que se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia. Então, não vou tentar dar conselhos, vou contar um pouco da minha história, para ver se você encontra alguma sintonia.
Eu morava na casa de minha avó materna, em um bairro de classe média baixa, perto de dois campos de futebol de várzea. Quando fui autorizado a sair sozinho de casa, era para lá que me dirigia. A meninada da redondeza também ia para lá, que era o lugar ideal para se jogar “finca” e bolinha de gude, soltar papagaio e, naturalmente, jogar futebol.
Sendo muito tímido e inseguro, era às vezes alvo de gozações e ameaças dos meus “amigos”. Afinal, a partir dos seis, sete anos, eles já vagabundeavam por ali sozinhos, livres, o dia todo. Ou seja, eles tinham quatro anos a mais de malandragem que eu e não tinham hora para voltar pra casa. E isso fazia enorme diferença, pois eram craques nas peladas disputadas com bolas de plástico ou borracha (bola de couro era muito difícil de encontrar naquele lugar de gente muito pobre).
Um dia meu irmão ganhou de presente uma bola de couro, pequena, fodidinha, mas de couro. A partir daí sempre éramos convidados a jogar futebol. Para equilibrar, meu irmão ficava em um time e eu no outro (éramos pernas de pau). Normalmente, me empurravam para o gol, para não atrapalhar. Mas bastava algum menino de fora chegar com outra bola de couro, que os times eram imediatamente refeitos e a bola devolvida ao meu irmão. Como ele não iria mais jogar (pois teria que tomar conta de sua bola), eu era tirado do time, coisa que me deixava puto. A partir de algum tempo, passei a não ligar para futebol.
A médio prazo isso foi até bom, pois fez com que eu progressivamente me afastasse dessa molecada. Como morávamos na parte mais pobre do bairro, meus companheiros eram igualmente pobres, filhos de gente humilde, pobre e sem estudo. Muitos desses “amigos” eram repetentes, outros pararam de estudar ainda no ensino básico ou logo após sua conclusão.
Como morei lá até me casar, pude ver em que se transformaram: um virou fotógrafo de batizados e casamentos, outro enlouqueceu, um foi morto no início da adolescência, vários se tornaram apenas desocupados, encostados nas portas dos bares. Nenhum continuou os estudos, nenhum fez faculdade.
Que eu quero dizer com isso? Que eu dei sorte de ter me afastado dos meus antigos companheiros de infância. Senão, a chance de ficar igual a eles seria muito grande. Tem um ditado aí que diz “diga-me com quem você anda que eu te direi quem você é”. Talvez seja verdade. Mas eu prefiro pensar na frase de um antigo treinador, que dizia “junte-se aos bons que em breve poderá ser um deles”.
Acho que é por aí. E sabe por quê? Porque eu era muito tímido, inseguro e mané. Mas eu queria passar a imagem de descolado, de fodão, de esperto. Então, eu ficava tentando ser parecido com os caras que eu admirava. E eu admirava os “ricos”, pois eu era pobre pra caralho. Mas tinha uns “ricos” de quem devia ter ficado longe, pois quase virei maconheiro ou alcoólatra.
Lembrando-me dessas coisas, eu vejo o quanto fui vacilão e quantas cagadas eu dei. Ao ponto de, um dia, meu irmão ter que arrombar a porta do banheiro lá de casa para me tirar, desacordado, quase em coma alcoólica. Já viu a merda que foi, né?
Hoje eu vejo (e pra mim já é tarde) que fiz muitas escolhas merda sem pensar muito, sem pensar o que eu REALMENTE queria ser e fazer. Eu fui sendo levado e o termo é esse mesmo, EU FUI SENDO LEVADO pela vida afora. Só não me dei mal totalmente porque meu irmão mais velho me colava o saco e perguntava se eu queria ser só um merda na vida. Depois, conheci minha Amada, que me ajudou a entrar mais um pouco nos eixos. Mas poderia estar bem melhor se só tivesse feito escolhas boas, poderia dar a ela muito mais conforto do que eu consegui dar.
Que conclusão eu posso tirar de tudo isso? Que todo mundo faz escolhas o tempo todo, cada um escolhe o que quer para a sua vida. O problema é quando você não consegue enxergar um pouco mais à frente, o problema é quando seus amigos são babacas ou fracassados ou radicais ou sem noção ou piores que você - ou tudo isso junto (a repetição do "ou” foi proposital, para dar ênfase). Aí, se você não tiver um rumo SEU, você corre o risco de jogar fora, de desperdiçar as suas qualidades e sua inteligência. E adotar o rumo deles.
Jorge Paulo Lemann, o sujeito mais rico do Brasil atualmente, disse o seguinte: “pense alto, queira o melhor, pois o trabalho para conseguir isso é quase o mesmo de você pensar pequeno”.
E eu acrescentaria: Mas tem que ralar, estudar e se preparar, pois, a menos que o cara seja um gênio, inteligentíssimo (e a maioria das pessoas não é), as oportunidades de progresso e riqueza neste século XXI são canalizadas para aqueles que metem a cara nos estudos, até se formar na universidade.
Isso não é uma verdade absoluta, lógico, mas, hoje, as chances de ganhar excelentes salários surgem majoritariamente para quem se dedicou a estudar – e estudar muito. E quanto menos educação formal as pessoas têm, mais terão que se contentar com trabalhos pouco qualificados (que sempre foram pouco remunerados – e continuarão sendo). É isso.
Eu já disse algumas vezes aos meus filhos que não sou exemplo de vida para ninguém, pois, sempre vivi frivolamente, de forma amadorística, displicente, irresponsável. E tem um papo aí que diz que se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia. Então, não vou tentar dar conselhos, vou contar um pouco da minha história, para ver se você encontra alguma sintonia.
Eu morava na casa de minha avó materna, em um bairro de classe média baixa, perto de dois campos de futebol de várzea. Quando fui autorizado a sair sozinho de casa, era para lá que me dirigia. A meninada da redondeza também ia para lá, que era o lugar ideal para se jogar “finca” e bolinha de gude, soltar papagaio e, naturalmente, jogar futebol.
Sendo muito tímido e inseguro, era às vezes alvo de gozações e ameaças dos meus “amigos”. Afinal, a partir dos seis, sete anos, eles já vagabundeavam por ali sozinhos, livres, o dia todo. Ou seja, eles tinham quatro anos a mais de malandragem que eu e não tinham hora para voltar pra casa. E isso fazia enorme diferença, pois eram craques nas peladas disputadas com bolas de plástico ou borracha (bola de couro era muito difícil de encontrar naquele lugar de gente muito pobre).
Um dia meu irmão ganhou de presente uma bola de couro, pequena, fodidinha, mas de couro. A partir daí sempre éramos convidados a jogar futebol. Para equilibrar, meu irmão ficava em um time e eu no outro (éramos pernas de pau). Normalmente, me empurravam para o gol, para não atrapalhar. Mas bastava algum menino de fora chegar com outra bola de couro, que os times eram imediatamente refeitos e a bola devolvida ao meu irmão. Como ele não iria mais jogar (pois teria que tomar conta de sua bola), eu era tirado do time, coisa que me deixava puto. A partir de algum tempo, passei a não ligar para futebol.
A médio prazo isso foi até bom, pois fez com que eu progressivamente me afastasse dessa molecada. Como morávamos na parte mais pobre do bairro, meus companheiros eram igualmente pobres, filhos de gente humilde, pobre e sem estudo. Muitos desses “amigos” eram repetentes, outros pararam de estudar ainda no ensino básico ou logo após sua conclusão.
Como morei lá até me casar, pude ver em que se transformaram: um virou fotógrafo de batizados e casamentos, outro enlouqueceu, um foi morto no início da adolescência, vários se tornaram apenas desocupados, encostados nas portas dos bares. Nenhum continuou os estudos, nenhum fez faculdade.
Que eu quero dizer com isso? Que eu dei sorte de ter me afastado dos meus antigos companheiros de infância. Senão, a chance de ficar igual a eles seria muito grande. Tem um ditado aí que diz “diga-me com quem você anda que eu te direi quem você é”. Talvez seja verdade. Mas eu prefiro pensar na frase de um antigo treinador, que dizia “junte-se aos bons que em breve poderá ser um deles”.
Acho que é por aí. E sabe por quê? Porque eu era muito tímido, inseguro e mané. Mas eu queria passar a imagem de descolado, de fodão, de esperto. Então, eu ficava tentando ser parecido com os caras que eu admirava. E eu admirava os “ricos”, pois eu era pobre pra caralho. Mas tinha uns “ricos” de quem devia ter ficado longe, pois quase virei maconheiro ou alcoólatra.
Lembrando-me dessas coisas, eu vejo o quanto fui vacilão e quantas cagadas eu dei. Ao ponto de, um dia, meu irmão ter que arrombar a porta do banheiro lá de casa para me tirar, desacordado, quase em coma alcoólica. Já viu a merda que foi, né?
Hoje eu vejo (e pra mim já é tarde) que fiz muitas escolhas merda sem pensar muito, sem pensar o que eu REALMENTE queria ser e fazer. Eu fui sendo levado e o termo é esse mesmo, EU FUI SENDO LEVADO pela vida afora. Só não me dei mal totalmente porque meu irmão mais velho me colava o saco e perguntava se eu queria ser só um merda na vida. Depois, conheci minha Amada, que me ajudou a entrar mais um pouco nos eixos. Mas poderia estar bem melhor se só tivesse feito escolhas boas, poderia dar a ela muito mais conforto do que eu consegui dar.
Que conclusão eu posso tirar de tudo isso? Que todo mundo faz escolhas o tempo todo, cada um escolhe o que quer para a sua vida. O problema é quando você não consegue enxergar um pouco mais à frente, o problema é quando seus amigos são babacas ou fracassados ou radicais ou sem noção ou piores que você - ou tudo isso junto (a repetição do "ou” foi proposital, para dar ênfase). Aí, se você não tiver um rumo SEU, você corre o risco de jogar fora, de desperdiçar as suas qualidades e sua inteligência. E adotar o rumo deles.
Jorge Paulo Lemann, o sujeito mais rico do Brasil atualmente, disse o seguinte: “pense alto, queira o melhor, pois o trabalho para conseguir isso é quase o mesmo de você pensar pequeno”.
E eu acrescentaria: Mas tem que ralar, estudar e se preparar, pois, a menos que o cara seja um gênio, inteligentíssimo (e a maioria das pessoas não é), as oportunidades de progresso e riqueza neste século XXI são canalizadas para aqueles que metem a cara nos estudos, até se formar na universidade.
Isso não é uma verdade absoluta, lógico, mas, hoje, as chances de ganhar excelentes salários surgem majoritariamente para quem se dedicou a estudar – e estudar muito. E quanto menos educação formal as pessoas têm, mais terão que se contentar com trabalhos pouco qualificados (que sempre foram pouco remunerados – e continuarão sendo). É isso.
17/07/2014
quarta-feira, 15 de outubro de 2025
CEGUEIRA AFETIVA – AUTOR DESCONHECIDO
Esse fenômeno não se restringe às relações pessoais. Ele aparece com igual intensidade na política, campo em que paixões substituem ideias e identidades se sobrepõem a argumentos. É impressionante a facilidade com que se ama ou odeia um líder, sem espaço para matizes. Para alguns, ele é um visionário injustiçado; para outros, um oportunista perigoso. Nada do que faça — de bom ou de mau — muda o julgamento prévio.
Trata-se de um mecanismo mental bem conhecido. O chamado viés de confirmação nos leva a aceitar sem esforço tudo o que corrobora nossas crenças e a rejeitar, com igual vigor, o que as contraria. A razão, nesse contexto, atua como serva da emoção: não pesa os fatos, apenas os justifica. Quando uma informação ameaça abalar nossas certezas, entra em cena a dissonância cognitiva, conceito proposto por Leon Festinger. Diante do desconforto de admitir que podemos estar errados, o cérebro prefere reinterpretar a realidade. Se o líder em quem confiamos falha, é culpa dos assessores, da imprensa, do sistema. Se o adversário acerta, foi por sorte ou conveniência. Assim, preservamos nossa coerência interna, mesmo à custa da verdade.
Mas há uma camada ainda mais profunda: a herança de nosso tribalismo ancestral. Durante milhares de anos, viver em pequenos grupos exigia lealdade cega e desconfiança do “outro”. Questionar o chefe ou simpatizar com o inimigo podia significar exclusão — e, portanto, risco de morte. Nosso cérebro, forjado nesse ambiente, ainda reage emocionalmente como se cada discordância fosse uma ameaça existencial. Continuamos defendendo nossa tribo — familiar, ideológica ou partidária — como se a sobrevivência dependesse disso.
As redes sociais apenas ampliaram esse instinto. Elas nos cercam de opiniões semelhantes às nossas e nos protegem de qualquer pensamento dissonante. Os algoritmos oferecem conforto ideológico e reforçam a convicção de que “nós” estamos certos e “eles” estão errados. O resultado é a polarização afetiva: deixamos de discutir ideias e passamos a odiar pessoas. O debate se transforma em guerra moral, onde o adversário deixa de ser um cidadão que pensa diferente para se tornar um inimigo que precisa ser derrotado.
Talvez a única forma de escapar dessa cegueira afetiva seja praticar um tipo de humildade intelectual — a disposição de reconhecer que podemos estar errados, de que nossos afetos e preconceitos distorcem a realidade mais do que gostaríamos de admitir. A razão, afinal, é uma conquista frágil, sempre sob o risco de ser derrubada por uma emoção disfarçada de convicção.
E, enquanto continuarmos julgando os líderes — ou quem quer que seja — pelo que sentimos em relação a eles, e não pelo que fazem, continuaremos a viver como nossos ancestrais das cavernas: cada um com a sua tribo, o seu totem e a sua verdade inabalável.
terça-feira, 14 de outubro de 2025
MANJA O UNIVERSO?
Em outras palavras, as palavras pátria e
patriotismo pouco ou nada significam para mim, nunca significaram. Aliás, nem para mim
nem para os moradores de rua, aquele pessoal que dorme ao relento tendo apenas
um papelão para servir de colchão.
Pois é, toda esta gororoba
serviu como introdução para uma entrevista concedida pelo filósofo Clóvis de
Barros ao Alt Tabet, do Canal UOL. Seus comentários iluminaram tanto minha
ignorância que eu não resisti ao desejo de publicar trechos do texto que encontrei na
internet. Olhaí.
“A
ideia de 'pátria acima de tudo', frequentemente exaltada em discursos
políticos, carrega um vazio conceitual e serve para manter privilégios e
desigualdades”, afirmou Clóvis de Barros no Alt Tabet, do Canal UOL.
"Estando
a pátria acima de tudo, nós começamos a nos perguntar o que será que essa
história de pátria quer dizer? Será que a pátria é o Estado? Será que a pátria
é a nação? E aí você começa a perceber que a ideia de pátria, ela tem uma
presença poética muito grande, mas ela tem um certo vazio conceitual. E aí é
preocupante, por quê? Porque você coloca nisso o que você quiser", explicou
o filósofo.
Para
ele, ao se evocar a noção de pátria, uma palavra de significado fluido, o que
se preserva, na prática, são desigualdades históricas.
“Dado
que a pátria Brasil existe, pelo menos desde a sua independência, você poderia
imaginar que o patriotismo faz uma defesa de valores, de crenças, de convicções
que existam há bastante tempo. Portanto, é uma espécie de homenagem ao que
sempre existiu, homenagem ao passado, homenagem às coisas como elas sempre
foram. Pois então, seria interessante observar o que é que sempre foi. E o que
a sociedade brasileira sempre foi? Desigual. Elitista. Cheia de privilégios.
Discriminatória”.
Segundo
Clóvis, preservar essa visão beneficia quem sempre esteve em posição de
vantagem.
"Para
os que têm e sempre tiveram, ou digamos, para o grupo que sempre contou com os
famosos 90% de toda riqueza, os 5% que sempre tiveram os 90% da riqueza, nada
mais adequado do que conservar as coisas como elas sempre foram", pontuou.
O
filósofo acrescenta ainda que a mentalidade individualista contribui para a
manutenção desse cenário.
"Não
há uma consciência de transformação em grupo. O que há é uma consciência de
obtenção de privilégios pessoal".
“Brasil
é 10ª economia, mas não tem 10ª educação; por quê?”
O
desenvolvimento econômico do Brasil não se reflete em avanços proporcionais na
educação, avalia o filósofo Clóvis de Barros Filho.
Embora o Brasil ocupe atualmente a 10ª posição econômica global, o país ainda enfrenta desigualdades profundas no acesso à educação de qualidade e à produção de conhecimento.
“A
décima economia do mundo não tem a décima educação do mundo, não tem a décima
universidade do mundo, não tem a décima produção de conhecimento do mundo, não
tem a décima produção de ciência do mundo, aqui é só soja, certo? Grana tem,
então acaba ficando com uma aparência de estábulo de ouro”.
Embora o Brasil ocupe atualmente a 10ª posição econômica global, o país ainda enfrenta desigualdades profundas no acesso à educação de qualidade e à produção de conhecimento.
O texto de minha autoria foi escrito no início de setembro (provavelmente depois do dia sete) e motivado pela forma que os partidários do ex-presidente têm de se expressar.
domingo, 12 de outubro de 2025
FELIZ DIA DAS CRIANÇAS!
Feliz Dia das Crianças!
Dia das crianças tímidas, superprotegidas, invejosas, inseguras, neuróticas, depressivas, cruéis, vítimas de bullying, analfabetas, pobres, famintas, deficientes, amputadas, com doença terminal, abandonadas, espancadas, ladras, viciadas, abusadas sexualmente e suicidas. E a todas as outras.
Que a vida lhe seja leve. E que se não tiverem muitos motivos para se alegrar, que pelo menos tenham poucos para se entristecer. Como a criança da foto.
Dia das crianças tímidas, superprotegidas, invejosas, inseguras, neuróticas, depressivas, cruéis, vítimas de bullying, analfabetas, pobres, famintas, deficientes, amputadas, com doença terminal, abandonadas, espancadas, ladras, viciadas, abusadas sexualmente e suicidas. E a todas as outras.
Que a vida lhe seja leve. E que se não tiverem muitos motivos para se alegrar, que pelo menos tenham poucos para se entristecer. Como a criança da foto.
sábado, 11 de outubro de 2025
PARLENDA (PROMESSA É DÍVIDA)
Eu tinha dito aqui que tentaria encontrar e publicar no blog uns versos infantis que acreditava terem sido escritos por um psicopata ou por um candidato a serial killer. Por estar sem saco (metaforicamente falando) e sem joelho para subir escada (situação real) só para tentar achar aqui em casa o livro infantil da década de 1950 onde li esses versos, acabei pesquisando “Tangolomango” na internet. Descobri umas cinco versões diferentes (algumas bem ridículas) e escolhi a que mais identifiquei com o livrinho infantil que meu irmão ganhou há quase setenta anos.
Eram nove irmãs numa casa, foram todas fazer biscoito.
Deu tangolomango numa delas e das nove ficaram oito.
Essas oito, meu bem, que ficaram, foram
juntas jogar confete.
Deu tangolomango numa delas e das oito ficaram sete.
Deu tangolomango numa delas e das oito ficaram sete.
Essas sete, meu bem, que ficaram, foram
juntas aprender francês.
Deu tangolomango numa delas e das sete ficaram seis.
Deu tangolomango numa delas e das sete ficaram seis.
Essas seis, meu bem, que ficaram, foram
juntas comprar um brinco.
Deu tangolomango numa delas e das seis ficaram cinco.
Deu tangolomango numa delas e das seis ficaram cinco.
Essas cinco, meu bem, que ficaram, foram todas fazer teatro.
Deu tangolomango numa delas e das cinco ficaram quatro.
Deu tangolomango numa delas e das cinco ficaram quatro.
Essas quatro, meu bem, que ficaram, foram
juntas jogar xadrez.
Deu tangolomango numa delas e das quatro ficaram três.
Deu tangolomango numa delas e das quatro ficaram três.
Essas três, meu bem, que ficaram, foram
juntas passear nas ruas,
Deu tangolomango numa delas e das três ficaram duas.
Deu tangolomango numa delas e das três ficaram duas.
Essas duas, meu bem, que ficaram, viajaram
para Inhaúma.
Deu tangolomango numa delas e das duas ficou só uma.
Deu tangolomango numa delas e das duas ficou só uma.
Essa uma, meu bem, que ficou, resolveu fazer
coisa alguma.
Deu o tangolomango nela, e não sobrou nenhuma.
Deu o tangolomango nela, e não sobrou nenhuma.
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
E AGORA, JOSÉ?
Eu tive um chefe que caminhava no limite da
normalidade. Era quase um doido manso, de tão excêntrico. Mas era brilhante, genial e
engraçadíssimo. Via os problemas com uma clareza absoluta, mas emitia suas opiniões do jeito mais caricato ou destemperado possível. Eu ria até mandar parar com seu estilo ensandecido e anárquico.
Um dia comentei que ele deveria expor suas críticas e análises certeiras de forma menos enlouquecida, pois mesmo que tivesse uma espécie de visão de raio X que lhe permitia ver com clareza o que todos demoravam a enxergar, as pessoas riam de seu comportamento aloprado em vez de prestar atenção ao que dizia. Para reforçar o conselho, disse-lhe que agindo assim ele estaria lembrando São João Batista, "a voz que clama no deserto".
-"João Batista, é?", foi a reação que teve. Mas deve ter gostado da comparação, pois um dia à porta de minha sala disse que estava "joãobatistando" alguma coisa. Essa era uma de suas excentricidades, tinha a mania de transformar substantivos e nomes próprios em verbos.
Não faz muito tempo, lembrando-me desse caso, comecei a
achar que, sim, que alguns nomes (nem todos) têm realmente jeitão de verbo. E aí comecei a
viajar.
Por exemplo, Orfeu dá uma frase do tipo “ele
orfeu a casa toda” (pretérito perfeito do indicativo, 3ª pessoa do
singular). Romeu poderia dar uma
frase assim: “ele romeu toda a comida que
estava na geladeira” (mesmo tempo de verbo de “Orfeu”).
E aí a gente continua: Osmar – “só se ele osmar o
forno” (Infinitivo da melhor qualidade). Ludmila dá duas possibilidades: “ela ludmila isso muito bem” (presente do indicativo, 3ª pessoa do
singular) ou “ludmila aquelas cartas para
mim” (imperativo, 2ª pessoa do singular).
E a viagem é longa: Maria – futuro do pretérito do indicativo (ela maria...); Silmara – pretérito
mais-que-perfeito do indicativo; Caio
– presente do indicativo, 1ª pessoa do singular.
Mas é com os nomes terminados em “ando” que a coisa fica legal: Armando e Rolando são autênticos gerúndios dos verbos Armar e Rolar. Mas há
também alguns bem mais engraçados, justamente pelo non sense: “Fernando”, por exemplo. Dá vontade de
perguntar “o que você está fernando aí”?
Gerúndio do verbo “Fernar”,
lógico.
Deve ser por esse tipo de associações alopradas que eu e meu ex-chefe descompensado combinávamos tão bem.
Resumindo: tem gente que gosta muito de um
“papo cabeça”. Às vezes, eu até “tropeço” em um também. Mas, pelos exemplos
acima, nota-se que eu sou chegado mesmo é em assuntos sem pé nem cabeça.
08/07/2014
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
MANUAL DO PROPRIETÁRIO
Repetindo o que disse (escrevi) recentemente, ninguém nunca me alertou que viver exigiria resiliência, resignação e estoicismo, que a vida seria como uma senoide, uma montanha russa que alterna alegria e tristeza, felicidade e sofrimento de forma tão dramática. Eu não me preparei para suportar isso! E, podem acreditar, este desabafo não é força de expressão. Talvez seja consequência de uma educação muito protetora que me fez crescer desfibrado, frágil, inseguro. Como poderia ter evitado isso? Já vai saber.
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
UM DIA ISSO ACONTECERÁ
SONETO DE SEPARAÇÃO
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
(Vinicius de Moraes – 1938)
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