segunda-feira, 20 de outubro de 2025

DE VOLTA PARA CASA

 

Depois de alguns dias preso em um hospital por conta de uma baixa de sódio no sangue, que fez minha mulher ficar com imensa confusão mental e até risco de entrar em coma, estamos de volta.

Para celebrar este momento, começarei a republicar as postagens que mais sucesso fizeram na história do blog, mesmo que nunca tenha pensado em reuni-las em e-books. São muitas. Espero que as leitoras e leitores mais recentes gostem. Eu gostei muito de tê-las escrito (quando ainda tinha memória).

domingo, 19 de outubro de 2025

AVISO

 MINHA MULHER ES5TÁ HOSPITALIZADA. RESPONDEI AOS COMENTÁRIOS TÃO LOGO POSSA.

UM HOMEM DE CONSCIÊNCIA – MONTEIRO LOBATO

Alguns dos melhores momentos da minha infância e pré-adolescência eu passei lendo os livros infantis de Monteiro Lobato. Hoje, quando ouço falar de críticas a esses livros por seu conteúdo "racista", eu tenho vontade de vomitar.

Só falta alguém propor que sejam reescritos ou que sejam retirados os trechos que "ofenderam" algum leitor mais sensível (e ignorante). É claro que se isso vingar, a cada década, qualquer livro de qualquer autor poderá ser submetido à revisão e nova censura, nova crítica, até que nada mais reste da obra original. Espero já estar morto se isso um dia acontecer. Mas, voltemos ao inofensivo Lobato.

Os assuntos eram os mais variados e, podem acreditar, muito instrutivos, sem ser cansativos. Exemplos: Viagem ao céu; História do mundo para as crianças; Emília no país da gramática; Aritmética da Emília; Geografia de Dona Benta; História das invenções e muitos outros.

Para mim, o mais interessante de todos os infantis é “A Chave do Tamanho”. O tema é o seguinte: a Emília decide ir a algum lugar onde estão as “chaves” que controlam tudo, para desligar a "chave da guerra" (esse livro foi escrito durante a Segunda Guerra Mundial). Como ela era muito pequena e os "disjuntores" ficavam lá no alto, ela erra a mão e, em vez da chave da guerra, desliga quase totalmente a chave do tamanho, fazendo com que toda a humanidade fique reduzida a uma altura menor que a de um passarinho, se não me engano. Creio que as pessoas são confundidas com "baratas descascadas". Esse livro é uma viagem!

Como a ideia da reverência não é colocar textos muito longos, eu tive de apelar para um conto bem pequeno, extraído do livro “Cidades Mortas”, que é literatura para adultos. Mas o sujeito "chutava bem com os dois pés", era um craque. Olhaí.


Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos queriam: mudar-se para terra melhor.

Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o desaparecimento visível de sua Itaoca.

– Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons – agora só um, e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando…

João Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

– É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então eu arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada…

Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada, botou-as num burro, montou no seu cavalinho magro e partiu.

Antes de deixar a cidade, foi visto por um amigo madrugador.

– Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

– Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.

– Mas como? Agora que você está delegado?

– Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.


E sumiu.

13/08/2014

sábado, 18 de outubro de 2025

VALOR AGREGADO

Algum tempo atrás, a revista Veja trouxe esta informação: quando o papa João Paulo II veio ao Brasil em 1980, a porcentagem de católicos declarados era de 89% da população; em 2013, essa porcentagem caiu para 64%. Segundo essa revista, a previsão é que em 2030 os evangélicos (bem entendido, todos os fiéis das várias denominações) ultrapassem os católicos.

Fiquei pensando nessas coisas e cheguei a uma simples conclusão. Não é a fé que está em jogo, o problema é de estratégia mercadológica. Se víssemos as vertentes católica e evangélica como duas redes varejistas concorrentes, tipo Casas Bahia e Magazine Luisa, teríamos a seguinte situação:

As duas redes oferecem o mesmo “produto” – no caso, Deus (embora uma delas goste de alardear que seu produto é melhor, com frases como “o meu Deus...”). Ora, se o produto é igual, é preciso avaliar as condições comerciais de cada “loja”.

Por exemplo, as condições de pagamento: as lojas católicas aceitam qualquer merreca ou até nada mesmo. Já na concorrência, até onde sei, o pagamento mínimo é de 10% da renda do “freguês” (o trocadilho não foi intencional. Escapou-se-me.). Ponto para a rede católica.

Os vendedores da concorrência poderiam dizer que as lojas católicas trabalham com um tipo de venda casada que eles não fazem. Imagino até o argumento:
- Vê se pode, lá neles, para levar o pacote completo da Santíssima Trindade nesse preço, só se levar também Nossa Senhora e um montão de santos.
- Ah, não! Aí fica muito caro!
Mas não creio que seja esse o motivo do crescimento das vendas dos evangélicos.

Bom, o que sobra então é a publicidade e o valor agregado (odeio esta expressão) que cada rede consegue impor ao seu produto.

Se compararmos as campanhas publicitárias das duas redes, a diferença é gritante (muitas vezes, no sentido literal). A rede católica praticamente não tem publicidade; a concorrência, no entanto, utiliza a mídia de forma maciça em suas várias opções (até ônibus). E enquanto a rede católica fazia “opção preferencial pelos pobres”, a rede evangélica prometia mundos e fundos (de investimento, talvez) aos consumidores, ciente do sentimento expresso pelo “filósofo” e carnavalesco Joãozinho Trinta quando disse que "Pobre gosta de luxo! Quem gosta de pobreza é intelectual"!

O único valor agregado plausível são os milagres. Aí é que está o grande diferencial. Pode parecer que as duas redes agregam o mesmo valor a seu produto, mas há diferenças de qualidade e quantidade.

A rede católica oferece milagres sofisticados e raros, qualitativamente bem acabados, mas quase inatingíveis. Para o sujeito conseguir um milagre, tem que ter excelente cadastro. E contar ainda com a intervenção de algum santo. E são exigidos muitos formulários, há muita burocracia.

Já na rede evangélica (pelo menos em algumas denominações) rola a maior esculhambação. Quantidade é o que não falta (mesmo que a qualidade seja até risível). É “milagre” a rodo, todo dia. Tem pastor (perdão, eu queria dizer vendedor) que até deveria se chamar Apracur (“Apracur é pra curar...”), de tão fodão que o cara é, pois cura até AIDS!

Há ainda um aspecto que sempre chamou minha atenção: se você ouvir os clientes e vendedores (na verdade, “vendilhões do templo”) de algumas denominações evangélicas, vai notar que falam sempre em progresso e cura materiais, nunca em cura e progresso espiritual. Talvez por isso é que a rede evangélica cresceu tanto: parece que o sujeito muda de igreja para se dar bem na vida, só isso.

Ou ainda: é como se os "migrantes" tivessem se cansado do modelo antigo e estivessem à procura de um modelo novo, mais bonito, com novas funcionalidades. Por isso, fica a pergunta final:

Para esse pessoal que trocou o catolicismo por uma dessas novas versões de igreja evangélica, Deus lembra ou não lembra um novo modelo de eletrodoméstico?

(29-06-2014)

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

O MUNDO JÁ ACABOU

 
Por estar muito agitado e depois de uma noite mal dormida, resolvi tentar criar um texto de ficção, uma ficção doentia, pervertida, um pesadelo de inspiração quase pornográfica. Não sei se conseguirei, mas vamos imaginar o seguinte:
 
- uma modelo ainda jovem, personalidade de televisão, resolve entrar no mundo da prostituição e a fazer filmes pornográficos. Triste, não?
- o pai dessa modelo resolve também explorar seus dotes “artísticos” ao fazer filmes de sexo explícito, nem sempre com mulheres. Como é que é?
- o filho da modelo se encarrega de filmar (!!!) as cenas de sexo explícito da própria mãe e, depois, do avô. Não, isso é delírio, nunca acontecerá tanta perversão!
 
Sentindo-me nauseado, tentei imaginar noticias sobre essa família e saiu isto:
 
- A modelo foi ao hospital por causa de dores pélvicas intensas, que surgiram após a gravação de um conteúdo adulto com oito homens. 
- Após gravar pornô gay e ir parar no proctologista, o pai da modelo quebra o silêncio em pronunciamento enigmático: ‘Conexões…’
 
Confesso que estava enojado e surpreso com minha capacidade de imaginar tamanha perversão, mas ainda tentei imaginar mais uma notícia:
 
- O filho da puta, ou melhor, da modelo – depois de ter filmado algumas vezes(!!!) as peripécias sexuais da mãe, disse que iria filmar o avô, esclarecendo que o pai da puta assumiria o papel de passivo(!!!!)
 
Honestamente, creio não conseguir escrever um texto ficcional tão bukowskiano. Mas depois me lembrei de onde fui buscar inspiração para tanta piração. E sabe onde foi? Na internet, pois essas notícias são REAIS, com personagens reais, membros de uma mesma família!!!!! E que família!
 
Estas três notícias coletadas na internet dão a pista de que Deus e a Pátria provavelmente ficariam muito constrangidos ao ser associados a essa família na expressão “Deus, Pátria e Família”.
 
Como dizia a mãe de um apresentador de telejornal, “o mundo já acabou e ninguém notou”. E eu completaria: já não se fazem mais prostitutas como antigamente!
 

SE LIGA, MANÉ!

O post de hoje foi escrito como carta endereçada a um jovem. Acabei desistindo de entregá-la, pois o destinatário não é meu filho. Mas guardei. Hoje, relendo o texto que escrevi, percebi que ele é meio papo-cabeça, tem algumas lembranças de infância, misturado com papo sério. Ou seja, é bem a cara do Blogson. Por isso, como este blog é meu e eu faço dele o que bem entender, resolvi postá-lo na seção Falando Sério. E criei um título, coisa que não tinha antes.
 
Se algum jovem quiser vestir a carapuça, tudo bem. Se nem conseguir entender direito o que leu, tudo bem também. Como disse uma vez o Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF, não estou nem aí. Mas, pela pertinência do assunto e para dar alguma elegância ao texto, acrescentei um trecho da letra da música “Samba da Benção”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, que não existia na carta original.
 
Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida
Cuidado, companheiro! A vida é pra valer. E não se engane não, é uma só
Duas mesmo que é bom ninguém vai me dizer que tem sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu e assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo”
 

Vou começar essa “conversa” lembrando uma música que diz assim: “nada sei desta vida, nunca saberei”. Você pode perguntar por que estou escrevendo isso, mas a resposta é muito simples: porque eu me preocupo com as pessoas de quem gosto.
 
Eu já disse algumas vezes aos meus filhos que não sou exemplo de vida para ninguém, pois, sempre vivi frivolamente, de forma amadorística, displicente, irresponsável. E tem um papo aí que diz que se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia. Então, não vou tentar dar conselhos, vou contar um pouco da minha história, para ver se você encontra alguma sintonia.
 
Eu morava na casa de minha avó materna, em um bairro de classe média baixa, perto de dois campos de futebol de várzea. Quando fui autorizado a sair sozinho de casa, era para lá que me dirigia. A meninada da redondeza também ia para lá, que era o lugar ideal para se jogar “finca” e bolinha de gude, soltar papagaio e, naturalmente, jogar futebol.
 
Sendo muito tímido e inseguro, era às vezes alvo de gozações e ameaças dos meus “amigos”. Afinal, a partir dos seis, sete anos, eles já vagabundeavam por ali sozinhos, livres, o dia todo. Ou seja, eles tinham quatro anos a mais de malandragem que eu e não tinham hora para voltar pra casa. E isso fazia enorme diferença, pois eram craques nas peladas disputadas com bolas de plástico ou borracha (bola de couro era muito difícil de encontrar naquele lugar de gente muito pobre).
 
Um dia meu irmão ganhou de presente uma bola de couro, pequena, fodidinha, mas de couro. A partir daí sempre éramos convidados a jogar futebol. Para equilibrar, meu irmão ficava em um time e eu no outro (éramos pernas de pau). Normalmente, me empurravam para o gol, para não atrapalhar. Mas bastava algum menino de fora chegar com outra bola de couro, que os times eram imediatamente refeitos e a bola devolvida ao meu irmão. Como ele não iria mais jogar (pois teria que tomar conta de sua bola), eu era tirado do time, coisa que me deixava puto. A partir de algum tempo, passei a não ligar para futebol.
 
A médio prazo isso foi até bom, pois fez com que eu progressivamente me afastasse dessa molecada. Como morávamos na parte mais pobre do bairro, meus companheiros eram igualmente pobres, filhos de gente humilde, pobre e sem estudo. Muitos desses “amigos” eram repetentes, outros pararam de estudar ainda no ensino básico ou logo após sua conclusão.
 
Como morei lá até me casar, pude ver em que se transformaram: um virou fotógrafo de batizados e casamentos, outro enlouqueceu, um foi morto no início da adolescência, vários se tornaram apenas desocupados, encostados nas portas dos bares. Nenhum continuou os estudos, nenhum fez faculdade.
 
Que eu quero dizer com isso? Que eu dei sorte de ter me afastado dos meus antigos companheiros de infância. Senão, a chance de ficar igual a eles seria muito grande. Tem um ditado aí que diz “diga-me com quem você anda que eu te direi quem você é”. Talvez seja verdade. Mas eu prefiro pensar na frase de um antigo treinador, que dizia “junte-se aos bons que em breve poderá ser um deles”.
 
Acho que é por aí. E sabe por quê? Porque eu era muito tímido, inseguro e mané. Mas eu queria passar a imagem de descolado, de fodão, de esperto. Então, eu ficava tentando ser parecido com os caras que eu admirava. E eu admirava os “ricos”, pois eu era pobre pra caralho. Mas tinha uns “ricos” de quem devia ter ficado longe, pois quase virei maconheiro ou alcoólatra.
 
Lembrando-me dessas coisas, eu vejo o quanto fui vacilão e quantas cagadas eu dei. Ao ponto de, um dia, meu irmão ter que arrombar a porta do banheiro lá de casa para me tirar, desacordado, quase em coma alcoólica. Já viu a merda que foi, né?
 
Hoje eu vejo (e pra mim já é tarde) que fiz muitas escolhas merda sem pensar muito, sem pensar o que eu REALMENTE queria ser e fazer. Eu fui sendo levado e o termo é esse mesmo, EU FUI SENDO LEVADO pela vida afora. Só não me dei mal totalmente porque meu irmão mais velho me colava o saco e perguntava se eu queria ser só um merda na vida. Depois, conheci minha Amada, que me ajudou a entrar mais um pouco nos eixos. Mas poderia estar bem melhor se só tivesse feito escolhas boas, poderia dar a ela muito mais conforto do que eu consegui dar.
 
Que conclusão eu posso tirar de tudo isso? Que todo mundo faz escolhas o tempo todo, cada um escolhe o que quer para a sua vida. O problema é quando você não consegue enxergar um pouco mais à frente, o problema é quando seus amigos são babacas ou fracassados ou radicais ou sem noção ou piores que você - ou tudo isso junto (a repetição do "ou” foi proposital, para dar ênfase). Aí, se você não tiver um rumo SEU, você corre o risco de jogar fora, de desperdiçar as suas qualidades e sua inteligência. E adotar o rumo deles.
 
Jorge Paulo Lemann, o sujeito mais rico do Brasil atualmente, disse o seguinte: “pense alto, queira o melhor, pois o trabalho para conseguir isso é quase o mesmo de você pensar pequeno”.
 
E eu acrescentaria: Mas tem que ralar, estudar e se preparar, pois, a menos que o cara seja um gênio, inteligentíssimo (e a maioria das pessoas não é), as oportunidades de progresso e riqueza neste século XXI são canalizadas para aqueles que metem a cara nos estudos, até se formar na universidade.
 
Isso não é uma verdade absoluta, lógico, mas, hoje, as chances de ganhar excelentes salários surgem majoritariamente para quem se dedicou a estudar – e estudar muito. E quanto menos educação formal as pessoas têm, mais terão que se contentar com trabalhos pouco qualificados (que sempre foram pouco remunerados – e continuarão sendo). É isso.

17/07/2014

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

CONNOISSEUR

 


CEGUEIRA AFETIVA – AUTOR DESCONHECIDO

  
Recebi hoje pelo zap de um amigo mega culto este artigo. Na hora, já me lembrei do Lula e do Trump, tão apaixonadas as reações que esses líderes provocam em quem os apoia ou odeia. Não sei o nome do autor nem onde foi publicado, mas espero que gostem.
 
É curioso observar como o julgamento humano se molda menos pela razão do que pelo afeto. Defendemos com unhas e dentes aqueles de quem gostamos, ainda que os fatos se imponham em sentido contrário. Os defeitos são relativizados, os deslizes compreendidos e as virtudes exaltadas. Mas basta uma divergência ou decepção para que o mesmo indivíduo, antes admirável, passe a ser visto como hipócrita, incompetente ou desonesto. De repente, tudo o que fazia de bom se torna “mera obrigação”.
Esse fenômeno não se restringe às relações pessoais. Ele aparece com igual intensidade na política, campo em que paixões substituem ideias e identidades se sobrepõem a argumentos. É impressionante a facilidade com que se ama ou odeia um líder, sem espaço para matizes. Para alguns, ele é um visionário injustiçado; para outros, um oportunista perigoso. Nada do que faça — de bom ou de mau — muda o julgamento prévio.
Trata-se de um mecanismo mental bem conhecido. O chamado viés de confirmação nos leva a aceitar sem esforço tudo o que corrobora nossas crenças e a rejeitar, com igual vigor, o que as contraria. A razão, nesse contexto, atua como serva da emoção: não pesa os fatos, apenas os justifica. Quando uma informação ameaça abalar nossas certezas, entra em cena a dissonância cognitiva, conceito proposto por Leon Festinger. Diante do desconforto de admitir que podemos estar errados, o cérebro prefere reinterpretar a realidade. Se o líder em quem confiamos falha, é culpa dos assessores, da imprensa, do sistema. Se o adversário acerta, foi por sorte ou conveniência. Assim, preservamos nossa coerência interna, mesmo à custa da verdade.
Mas há uma camada ainda mais profunda: a herança de nosso tribalismo ancestral. Durante milhares de anos, viver em pequenos grupos exigia lealdade cega e desconfiança do “outro”. Questionar o chefe ou simpatizar com o inimigo podia significar exclusão — e, portanto, risco de morte. Nosso cérebro, forjado nesse ambiente, ainda reage emocionalmente como se cada discordância fosse uma ameaça existencial. Continuamos defendendo nossa tribo — familiar, ideológica ou partidária — como se a sobrevivência dependesse disso.
As redes sociais apenas ampliaram esse instinto. Elas nos cercam de opiniões semelhantes às nossas e nos protegem de qualquer pensamento dissonante. Os algoritmos oferecem conforto ideológico e reforçam a convicção de que “nós” estamos certos e “eles” estão errados. O resultado é a polarização afetiva: deixamos de discutir ideias e passamos a odiar pessoas. O debate se transforma em guerra moral, onde o adversário deixa de ser um cidadão que pensa diferente para se tornar um inimigo que precisa ser derrotado.
Talvez a única forma de escapar dessa cegueira afetiva seja praticar um tipo de humildade intelectual — a disposição de reconhecer que podemos estar errados, de que nossos afetos e preconceitos distorcem a realidade mais do que gostaríamos de admitir. A razão, afinal, é uma conquista frágil, sempre sob o risco de ser derrubada por uma emoção disfarçada de convicção.
E, enquanto continuarmos julgando os líderes — ou quem quer que seja — pelo que sentimos em relação a eles, e não pelo que fazem, continuaremos a viver como nossos ancestrais das cavernas: cada um com a sua tribo, o seu totem e a sua verdade inabalável.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

MANJA O UNIVERSO?

 
Manja o Universo? Pois é. Sabia que graças ao Telescópio Espacial Hubble, as estimativas mais recentes sugerem a existência de pelo menos 2 trilhões de galáxias no universo observável? Bom, né?
 
E agora, sabe quantas estrelas existem em apenas uma galáxia? De 100 a 400 bilhões. É mole? Se você multiplicar a quantidade de galáxias pelo número de estrelas de cada uma poderá ter até vertigem. Mas vamos baixar um pouco a bola.
 
Sabe o Sol, essa bola amarela que serve para secar as roupas nos varais e deixar as meninas gostosas ainda mais gostosas quando se bronzeiam na praia? Pois bem, essa almôndega incandescente não passa de uma estrela de tamanho médio ou, mesmo, uma "estrela anã amarela".
 
Vamos continuar só mais um pouquinho: a Terra, “a nave nossa irmã” é o terceiro planeta (lindo!) a partir do Sol. Então, vamos fazer um resumo: a Terra é o terceiro planeta de uma estrela insignificante, uma dos duzentos bilhões de estrelas de uma dos mais de dois trilhões de galáxias do Universo. Uau! Quanta importância a Terra tem!
 
E para concluir toda essa astronomia, informo que moro em uma cidade localizada no hemisfério sul do globo terrestre, com as coordenadas geográficas de aproximadamente 19° 55′ 00″ de latitude sul e 43° 56′ 00″ de longitude oeste. Pois é, esse é o ponto do Universo onde eu me escondo.
 
E sabe por que eu disse tudo isso? Porque eu não dou a mínima sempre achei estranha essa preocupação das pessoas com as "cercas embandeiradas que separam quintais", como tão bem cantou o Raul Seixas. O sempre ferino Millôr Fernandes disse que “patriotismo é aquilo que se põe no bolso, quando se toma o poder”.

Em outras palavras, as palavras pátria e patriotismo pouco ou nada significam para mim, nunca significaram. Aliás, nem para mim nem para os moradores de rua, aquele pessoal que dorme ao relento tendo apenas um papelão para servir de colchão.
 
Que significa “pátria” para eles? Consegue imaginar um coitado desses dizendo “a minha pátria”? O país, o estado, a cidade, o bairro ou até mesmo a rua onde se mora é outra história, tem significado físico, geográfico.

Pois é, toda esta gororoba serviu como introdução para uma entrevista concedida pelo filósofo Clóvis de Barros ao Alt Tabet, do Canal UOL. Seus comentários iluminaram tanto minha ignorância que eu não resisti ao desejo de publicar trechos do texto que encontrei na internet. Olhaí.
 
 
“A ideia de 'pátria acima de tudo', frequentemente exaltada em discursos políticos, carrega um vazio conceitual e serve para manter privilégios e desigualdades”, afirmou Clóvis de Barros no Alt Tabet, do Canal UOL.
 
"Estando a pátria acima de tudo, nós começamos a nos perguntar o que será que essa história de pátria quer dizer? Será que a pátria é o Estado? Será que a pátria é a nação? E aí você começa a perceber que a ideia de pátria, ela tem uma presença poética muito grande, mas ela tem um certo vazio conceitual. E aí é preocupante, por quê? Porque você coloca nisso o que você quiser", explicou o filósofo.
 
Para ele, ao se evocar a noção de pátria, uma palavra de significado fluido, o que se preserva, na prática, são desigualdades históricas.
 
“Dado que a pátria Brasil existe, pelo menos desde a sua independência, você poderia imaginar que o patriotismo faz uma defesa de valores, de crenças, de convicções que existam há bastante tempo. Portanto, é uma espécie de homenagem ao que sempre existiu, homenagem ao passado, homenagem às coisas como elas sempre foram. Pois então, seria interessante observar o que é que sempre foi. E o que a sociedade brasileira sempre foi? Desigual. Elitista. Cheia de privilégios. Discriminatória”.
 
Segundo Clóvis, preservar essa visão beneficia quem sempre esteve em posição de vantagem. 
 
"Para os que têm e sempre tiveram, ou digamos, para o grupo que sempre contou com os famosos 90% de toda riqueza, os 5% que sempre tiveram os 90% da riqueza, nada mais adequado do que conservar as coisas como elas sempre foram", pontuou.
 
O filósofo acrescenta ainda que a mentalidade individualista contribui para a manutenção desse cenário. 
 
"Não há uma consciência de transformação em grupo. O que há é uma consciência de obtenção de privilégios pessoal".
 
“Brasil é 10ª economia, mas não tem 10ª educação; por quê?”
 
O desenvolvimento econômico do Brasil não se reflete em avanços proporcionais na educação, avalia o filósofo Clóvis de Barros Filho.
Embora o Brasil ocupe atualmente a 10ª posição econômica global, o país ainda enfrenta desigualdades profundas no acesso à educação de qualidade e à produção de conhecimento.
 
“A décima economia do mundo não tem a décima educação do mundo, não tem a décima universidade do mundo, não tem a décima produção de conhecimento do mundo, não tem a décima produção de ciência do mundo, aqui é só soja, certo? Grana tem, então acaba ficando com uma aparência de estábulo de ouro”.

O texto de minha autoria foi escrito no início de setembro (provavelmente depois do dia sete) e motivado pela forma que os partidários do ex-presidente têm de se expressar.

domingo, 12 de outubro de 2025

FELIZ DIA DAS CRIANÇAS!

Feliz Dia das Crianças!
 
Dia das crianças tímidas, superprotegidas, invejosas, inseguras, neuróticas, depressivas, cruéis, vítimas de bullying, analfabetas, pobres, famintas, deficientes, amputadas, com doença terminal, abandonadas, espancadas, ladras, viciadas, abusadas sexualmente e suicidas. E a todas as outras.
 
Que a vida lhe seja leve. E que se não tiverem muitos motivos para se alegrar, que pelo menos tenham poucos para se entristecer. Como a criança da foto. 



sábado, 11 de outubro de 2025

PARLENDA (PROMESSA É DÍVIDA)

 
Eu tinha dito aqui que tentaria encontrar e publicar no blog uns versos infantis que acreditava terem sido escritos por um psicopata ou por um candidato a serial killer. Por estar sem saco (metaforicamente falando) e sem joelho para subir escada (situação real) só para tentar achar aqui em casa o livro infantil da década de 1950 onde li esses versos, acabei pesquisando “Tangolomango” na internet. Descobri umas cinco versões diferentes (algumas bem ridículas) e escolhi a que mais identifiquei com o livrinho infantil que meu irmão ganhou há quase setenta anos.
 
Descobri também que Tangolomango é uma brincadeira folclórica, uma “parlenda”. Segundo o pai dos muito burros, as parlendas são versos ritmados e de fácil memorização, em sua maioria com temáticas infantis. Derivada do verbo ‘parlare’, que significa ‘conversar’”.
 
Podem até ser, mas para mim o livreto que meu irmão ganhou quando tinha dez, onze anos deve ter sido escrito por alguém da Família Adams para ensinar subtração para a Wandinha. Olha que sinistro:
 
TANGOLOMANGO

Eram nove irmãs numa casa, foram todas fazer biscoito. 
Deu tangolomango numa delas e das nove ficaram oito.

Essas oito, meu bem, que ficaram, foram juntas jogar confete. 
Deu tangolomango numa delas e das oito ficaram sete.

Essas sete, meu bem, que ficaram, foram juntas aprender francês. 
Deu tangolomango numa delas e das sete ficaram seis.

Essas seis, meu bem, que ficaram, foram juntas comprar um brinco. 
Deu tangolomango numa delas e das seis ficaram cinco.

Essas cinco, meu bem, que ficaram, foram todas fazer teatro. 
Deu tangolomango numa delas e das cinco ficaram quatro.

Essas quatro, meu bem, que ficaram, foram juntas jogar xadrez. 
Deu tangolomango numa delas e das quatro ficaram três.

Essas três, meu bem, que ficaram, foram juntas passear nas ruas, 
Deu tangolomango numa delas e das três ficaram duas.

Essas duas, meu bem, que ficaram, viajaram para Inhaúma. 
Deu tangolomango numa delas e das duas ficou só uma.

Essa uma, meu bem, que ficou, resolveu fazer coisa alguma. 
Deu o tangolomango nela, e não sobrou nenhuma.
 
   

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

SEXTOU!

 


E AGORA, JOSÉ?

Eu tive um chefe que caminhava no limite da normalidade. Era quase um doido manso, de tão excêntrico. Mas era brilhante, genial e engraçadíssimo. Via os problemas com uma clareza absoluta, mas emitia suas opiniões do jeito mais caricato ou destemperado possível. Eu ria até mandar parar com seu estilo ensandecido e anárquico.

Um dia comentei que ele deveria expor suas críticas e análises certeiras de forma menos enlouquecida, pois mesmo que tivesse uma espécie de visão de raio X que lhe permitia ver com clareza o que todos demoravam a enxergar, as pessoas riam de seu comportamento aloprado em vez de prestar atenção ao que dizia. Para reforçar o conselho, disse-lhe que agindo assim ele estaria lembrando São João Batista, "a voz que clama no deserto".

-"João Batista, é?", foi a reação que teve. Mas deve ter gostado da comparação, pois um dia à porta de minha sala disse que estava "joãobatistando" alguma coisa. Essa era uma de suas excentricidades, tinha a mania de transformar substantivos e nomes próprios em verbos.

Não faz muito tempo, lembrando-me desse caso, comecei a achar que, sim, que alguns nomes (nem todos) têm realmente jeitão de verbo. E aí comecei a viajar.

Por exemplo, Orfeu dá uma frase do tipo “ele orfeu a casa toda” (pretérito perfeito do indicativo, 3ª pessoa do singular). Romeu poderia dar uma frase assim: “ele romeu toda a comida que estava na geladeira” (mesmo tempo de verbo de “Orfeu”).

E aí a gente continua: Osmar – “só se ele osmar o forno” (Infinitivo da melhor qualidade). Ludmila dá duas possibilidades: “ela ludmila isso muito bem” (presente do indicativo, 3ª pessoa do singular) ou “ludmila aquelas cartas para mim” (imperativo, 2ª pessoa do singular).

E a viagem é longa: Maria – futuro do pretérito do indicativo (ela maria...); Silmara – pretérito mais-que-perfeito do indicativo; Caio – presente do indicativo, 1ª pessoa do singular.

Mas é com os nomes terminados em “ando” que a coisa fica legal: Armando e Rolando são autênticos gerúndios dos verbos Armar e Rolar. Mas há também alguns bem mais engraçados, justamente pelo non sense: “Fernando”, por exemplo. Dá vontade de perguntar “o que você está fernando aí”? Gerúndio do verbo “Fernar”, lógico.

Deve ser por esse tipo de associações alopradas que eu e meu ex-chefe descompensado combinávamos tão bem.

Resumindo: tem gente que gosta muito de um “papo cabeça”. Às vezes, eu até “tropeço” em um também. Mas, pelos exemplos acima, nota-se que eu sou chegado mesmo é em assuntos sem pé nem cabeça.

08/07/2014

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

CERTO DIA, NO VALE DOS REIS...

 (Estou esguichando ansiedade. Isso faz minha cabeça pirar)





MANUAL DO PROPRIETÁRIO

 
Repetindo o que disse (escrevi) recentemente, ninguém nunca me alertou que viver exigiria resiliência, resignação e estoicismo, que a vida seria como uma senoide, uma montanha russa que alterna alegria e tristeza, felicidade e sofrimento de forma tão dramática. Eu não me preparei para suportar isso! E, podem acreditar, este desabafo não é força de expressão. Talvez seja consequência de uma educação muito protetora que me fez crescer desfibrado, frágil, inseguro. Como poderia ter evitado isso? Já vai saber.
 
Com exceção de produtos primários ou vendidos a granel, tais como pedra britada, legumes, verduras, tábuas, cordas, pregos, que estejam à temperatura ambiente ou não embalados, tudo vem com instruções sobre como consumir e onde armazenar, como instalar ou como montar – medicamentos, televisores, móveis, celulares, etc.
 
Algumas instruções são verdadeiras bíblias, de tão grandes,  calhamaços apresentados na forma de Manual do Proprietário e que acompanham os automóveis zero-quilômetro, por exemplo. Para ser sincero, quase nunca leio nada – ou apenas o basicão (falha minha!).
 
Mas se existe algo que precisaria ser entregue com manual de instruções detalhadíssimo são os bebês recém-nascidos. E nem me refiro às orientações sobre alimentação, vacinas, funcionamento do intestino. O que realmente faz falta é um manual de Vida, ensinando os pais sobre o que não fazer, ou como orientá-los diante de uma perda, ou frustração, por exemplo. Um manual que ensinasse os pais a não descarregar suas frustrações nem projetar nos pimpolhos os sonhos e desejos não alcançados. Um manual que nos orientasse em cada etapa da existência, uma espécie de terapeuta impresso.
 
Meu pai e seus quatro irmãos estudaram medicina no início do século XX para atender a um desejo da minha avó (meu pai, pelo menos, fez isso). Quantos exerceram essa profissão? Nenhum! Imagino a decepção vivida por minha avó. A sorte (ou azar) é que também tinham direito de exercer a profissão de farmacêutico (naquela época podia).
 
Mas, à falta de um manual de Vida, todos ou quase todos morreram na mais profunda depressão, talvez semeada por uma educação repressora na infância. Não tenho certeza de nada disso, são apenas especulações que fiz juntando cacos do que ouvi, tal como um paleontólogo montando pedaços de um fóssil incompleto.
 
O que sei é que talvez por ter tido seus sonhos destroçados e ser incapaz de reagir adequadamente a isso, meu pai tentou me proteger da dureza de uma vida semelhante à dele, ao não me exigir nem cobrar dedicação e empenho nos estudos.
 
Na época do vestibular, por motivo alheio à natural disputa por uma vaga em curso concorrido, eu estudei feito um cavalo – diariamente, obsessivamente e até nos fins de semana à noite (eu queria reatar o namoro com a paixão da minha vida, que disse desejar me ver “careca”, situação provocada pelos trotes sofridos pelos “calouros burros”). Mas ao me ver debruçado nas apostilas, talvez em uma noite de sábado, meu pai me disse para não estudar tanto, que eu precisava descansar, coisas assim.
 
E é com esse tipo de comportamento, baseado na própria experiência, nas frustrações ou sonhos inatingidos que muitos pais educam seus filhos. Se pudessem consultar o manual talvez não agissem assim – e os filhos não cresceriam fragilizados, incapazes ou com imensa dificuldade para pegar o touro da vida pelos chifres.
 
E então, que acha da ideia desse manual do que não fazer? Talvez o ChatGPT até pudesse redigi-lo!
 
Ou não?

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

UM DIA ISSO ACONTECERÁ

 
SONETO DE SEPARAÇÃO
 
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
 
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
 
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
 
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
(Vinicius de Moraes – 1938)

O CRIME (DE PLÁGIO) PERFEITO - RUBEM BRAGA

 
Depois do surgimento da IA – das IAs, na verdade – ficou fácil posar de escritor, músico ou desenhista. Só que não! Ter uma ideia e pedir a uma delas para gerar um texto, um desenho ou criar uma melodia não faz de ninguém o autor. Você pode até ter a veleidade e a vaidade de apresentar-se como se fosse o autor da “maravilha”, mas intimamente sabe que não é.
 
Quando trabalhava em construtora, fiquei sabendo de um caso explícito de “mau-caratismo”. Um colega fez um elaborado estudo sobre algum assunto, para a diretoria da empresa. Esse engenheiro era muito inteligente, culto e escrevia bem pra caramba, além de ter ótima caligrafia. Não sei se chegou a apresentar o relatório. O que sei é que outro engenheiro, um picareta ignorante e mesquinho, pegou esse trabalho, reescreveu tudo com a própria letra (não havia computadores) e o apresentou ao diretor.
 
Quando ficamos sabendo disso, um colega sarcástico disse que o texto tinha sido “passado a sujo”, porque estava até com erros de português e a letra do plagiador era muito mais feia que a do autor original – e comentou: “como ele é semianalfabeto, nem passar a limpo direito ele conseguiu”. Nós (aí incluído o diretor) rimos muito desse caso, mas, curiosamente, não houve punição para o mau-caráter.
 
Lembrei-me desse caso ao ler uma divertida crônica do Rubem Braga em que ele confessa ter plagiado descaradamente o Carlos Drummond de Andrade. Espero que gostem. De uma coisa quem acessa este blog desconjuntado pode ter certeza: as tranqueiras que escrevo e publico aqui sairam de minha mente desmiolada, são apenas minhas, não têm plágio nem IA (a baixa qualidade já denuncia). Lêaí.
 
Aconteceu em São Paulo, por volta de 1933, ou 4. Eu fazia crônicas diárias no Diário de São Paulo e além disso era encarregado de reportagens e serviços de redação; ainda tinha uns bicos por fora. Fundou-se naquela ocasião um semanário humorístico. O Interventor, que depois haveria de se chamar O Governador. Seu dono era Laio Martins, excelente homem de cabelos brancos e sorriso claro, boêmio e muito amigo. Pediu-me colaboração; o que podia pagar era muito pouco, mas eu não queria faltar ao amigo. Escrevi algumas crônicas assinadas. Depois comecei a falhar muito, e como Laio reclamasse inventei um pretexto para não escrever. Seu jornal era excessivamente político (perrepista, se bem me lembro) e eu não queria tomar partido, na política paulista, mesmo porque tinha muitos amigos antiperrepistas. Laio não se conformou: “Então ponha um pseudônimo!”
Prometi de pedra e cal, mas não cumpri. Laio reclamou novamente, me deu prazo certo para lhe entregar a crônica. No dia marcado estava atarefadíssimo, e quando veio o contínuo buscar a crônica para O Interventor eu cocei a cabeça – e tive uma ideia. Acabara de ler uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Minas Gerais, órgão oficial de Minas, com um pseudônimo – algo assim como Antônio João ou João Antônio, ou Manuel Antônio, não me lembro mais; ponhamos Antônio João. Botei papel na máquina, copiei a crônica rapidamente e lasquei o mesmo pseudônimo.
Dias depois recebi o dinheiro da colaboração, juntamente com o pedido urgente de outra crônica e um recado entusiasmado de Laio: a primeira estava esplêndida!
Daí para a frente encarreguei um menino da portaria, que estava aprendendo a escrever à máquina, de bater a crônica de Drummond para mim; eu apenas revia, para substituir ou riscar alguma referência a qualquer coisa de Minas. Pregada a mentira e praticado o crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes senti remorso, eu o afogava em chope no bar do alemão ao lado, e o pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale do Antônio João.
O remorso não era, na verdade, muito: Carlos não sabia de nada, e o que eu fazia não era propriamente um plágio, porque nem usava matéria assinada por ele, nem punha o meu nome em trabalho dele. E Laio Martins sorria feliz, comentando com meu colega de redação: “O Rubem não quer assinar, mas que importa? Seu estilo é inconfundível!”
O estilo era inconfundível e o chope era bem tirado; mas você pode ter certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas vezes eu o bebi à sua saúde, ou melhor, à saúde do Antônio João, isto é, à nossa. Dos vinte e cinco mil-réis que Laio me pagava, eu dava cinco para o menino que batia à máquina; era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes graças ao seu trabalho. Laio, o menino, os leitores e eu – e você em Minas não era infeliz. Não creio que possa haver um crime mais perfeito.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

ADÃO E EVA ERAM ASSIM

 
Li no livro “O caldeirão azul” do físico muito foda Marcelo Gleiser que os primeiros organismos seriam criaturas do tipo “anaeróbica (que vive sem oxigênio) e termofílica (que gosta de ambientes quentes), uma criatura unicelular simples, que viveu onde a água do mar encontrava o magma que jorrava do interior da Terra, em ventas hidrotermais".
 
Imagino que a Terra nesse momento era a expressão máxima do caos, com tsunamis gigantescos com ondas de 500 metros (a imaginação é minha, tã legal?), vulcões vomitando lava para todo lado e a todo momento, terremotos com escala Richter maior que 15 (nem sei se isso é possível), furacões, radiação cósmica, queda de meteoros gigantescos, uma zona, enfim.
 
Quando eu ainda tinha inspiração e piração, criei uma série de dezénhos (os desenhos do Zé) sobre esses proto-organismos. Um dos que mais gosto é este, onde tentei mostrar dois "protos" sendo jogados para lá e para cá num oceano primitivo:



segunda-feira, 6 de outubro de 2025

MUNDO PERDIDO

Desde criança me interesso por animais extintos. A culpa talvez seja de um álbum de figurinhas que eu e meu irmão ganhamos quando eu tinha uns dez anos. Não era colecionável: todos os cromos vinham junto, bastava destacar e colar. Uma salada de dinossauros, mamíferos, peixes e anfíbios que me deixou fascinado.
Lembro-me de ter visto ali figurinhas com a representação provável de um mastodonte, seu primo mamute, do ancestral dos cavalos, um “brontossauro” (era assim que se chamava), dimetrodon, celacanto, boi almiscarado e tantos outros. Não sei que fim levou o álbum — talvez tenha ficado com meu irmão ou virado banquete de cupins.

Então, ler sobre fósseis e curtir suas reproduções artísticas virou minha praia. Recentemente, assistindo no youtube a um vídeo sobre animais anteriores aos dinossauros, fiquei fascinado ao ver o crânio de um “ET” pré-histórico, bizarro demais para passar em branco. Foi ele que inspirou este post. Antes de continuar, dê uma olhada na “lindeza”:

 

Essa simpatia viveu no período Permiano, há 260 milhões de anos. Conhecido nas rodas boêmias pelo nome de Estemmenosuchus mirabilis, pesava uns 500 kg e talvez fosse algo entre os répteis e os mamíferos.Quando vi seu crânio, com protuberâncias ósseas para todos os lados, já pensei logo em um canivete suíço, no cinto de inutilidades do Batman ou em uma esponja de aço de 1.001 utilidades (hoje só mil, já que ninguém mais as usa na ponta das antenas da TV para melhorar a imagem).

E aí surgiu a pergunta inevitável: como nasceu esse troço? Para o bem de sua mamãe, espero que esse bonitão tenha saído de um ovo. Porque, se não, depois do parto alguém de outra espécie poderia dizer:
- "Lá vem a arregaçada"

PITAIAS DE SABEDORIA

 
Já disse isso uma vez, mas vou repetir: acho um absurdo que o Todopoderoso tenha deixado os frutos da árvore do conhecimento ao alcance da mão do proto-casal. Que Ele pretendia com isso? Pai onisciente, onipresente, que ele ganharia deixando os filhos usar drogas? Sim, porque o fruto mastigado não era uma maçã – a menos que fosse uma versão vívlica da maçã envenenada da Branca de Neve. Imagino que nem era uma árvore, mas um cacto com um fruto alucinógeno, antepassado do peyote que o Aldous Huxley e o Carlos Castañeda consumiram para abrir as portas da percepção.
 
Mas tenho pra mim que essa pitaia vívlica só servia para dar barato, sem nenhuma outra função útil. E o pior é que a certeza da finitude seria seu efeito colateral!
 
Estava matutando com meus borbotões sobre isso, sobre a sacanagem de não nascermos com manual de instruções, tendo de aprender a nos virar sozinhos para ganhar o primeiro bilhão.
 
A única orientação que Adão recebeu foi “comerás o pão com o suor do teu rosto”. Mas, e quem não tem vocação para padeiro ou pizzaiolo nem gosto para por as mãos na massa? Só mesmo investindo na bolsa (não a da madame desavisada, preocupada em mandar mensagem pelo whatsapp, mas bolsa de valores).
 
Enfim, eu acho essa história muito mal contada e mal escrita, principalmente por confundir o leitor. Como aceitar que o Deus do Antigo Testamento, sempre pronto a passar a régua por qualquer motivo, seja o mesmo Deus amoroso do Novo Testamento? Para mim, o primeiro redator da Vívlia (um tal de Moche) redigiu sua versão preconceituosa e primitiva do que ouviu do Todopoderoso. Só pode!

sábado, 4 de outubro de 2025

RECEITA DE BRAGUICE

 
Como todo mundo sabe, breguice é alguma coisa de mau gosto, vulgar, cafona, algo semelhante à camisa com mangas boca de sino e calça de bolso redondo que usei na adolescência (que vergonha, meu Deus). Eu era muito brega, esta é a verdade. Depois, tentei me livrar disso, mas um pé sempre ficou preso na periferia. Mas não é de breguice que eu queria falar. Meu tema de hoje é “braguice”, o comportamento de meu ídolo máximo Rubem Braga. Como escrevia bem! E hoje, lendo um texto sobre ele, descobri a receita que usava para escrever suas deliciosas, engraçadas e delicadas crônicas. Aprende aí:
 
Braga checava tudo para ter a absoluta certeza que não se enganava. Os originais eram sempre escritos, reescritos, corrigidos. O cronista cortava palavras, substituía, reescrevia frases. Era minucioso e detalhista e conservou como estilo a brevidade. Exterminador de adjetivos, dizia que a crônica deveria se aproximar da conversa fiada, ou seja, parecer despretensiosa para arrebatar o leitor. À lição para o exercício da crônica acrescia a necessidade de conhecimento amplo. Braga lia de tudo. Poesia, biografia, literatura estrangeira, romance policial e até tratados sobre jardinagem. O cronista cultivava um conhecimento enciclopédico.
 
Captou a mensagem? Agora é só começar a escrever. Duro vai ser achar assunto, problema parece não ter afligido quem escreveu mais de quinze mil crônicas em 62 anos de carreira.

TESOURO ENTERRADO

 
Tenho 75 anos. Nunca imaginei atingir esta idade. Aliás, sempre fui péssimo em futurologia. O máximo que consegui foi imaginar na adolescência que no ano 2000 eu teria 50 anos. Hoje eu tenho 75 anos e não desejo isso para ninguém, podem acreditar. Porque, a menos que você tenha muita grana ou muito sucesso e seu talento seja reconhecido até pelos pigmeus Bandar, não há graça nenhuma em olhar para os objetos que guardou ao longo da vida como se fossem tesouros enterrados em uma praia deserta por piratas do Caribe.
 
Pensando na inutilidade do que guardei, resolvi fazer um inventário do que tenho aqui em casa (porque no banco, não tenho nada mesmo), para que os filhos decidam o que fazer com esse spoiler (ou espólio) – se chamam uma caçamba de lixo, se queimam tudo (comportamento tradicional da família de meu pai), se doam para reciclagem ou criam um sebrechó (mistura de sebo com brechó) provisório para arrecadar alguma grana que pague pelo menos as pizzas que eu sugeriria que fossem pedidas para come-morar a minha passagem desta para a melhor (queria acreditar nisso!). E aí comecei a fazer um levantamento mental do tesouro:
 
Décadas de 1950/1960:
- Álbuns de figurinha do Bambi e da Dama e o Vagabundo, antiquérrimos, do tempo em que eu tinha parado de fazer gugu dada
- Almanaques infanto-juvenis Tiquinho e Tico-Tico da década de 1950 (1957, por aí)
- Revistinhas de HQ inteiras ou despedaçadas pelos meninos (já viu que são bem antigas, né?)
- Livros infantis diversos
Obs. Um dos livros mais bizarros meu irmão ganhou de presente quando tinha uns dez anos. É um texto em forma de versos, em que dez meninas vão desaparecendo até não sobrar mais nenhuma. Lembro-me destes versos: "das sete irmãs que sobraram, todas foram estudar francês. Deu tangolomango em uma delas e das sete ficaram seis". "Tangolomango"...Olha que coisa mais louca! Preciso escarafunchar onde está esse livreto aqui em casa para publicar o texto todo no blog. (O autor devia ser um serial killer, só pode!).
 
Décadas de 1960/1970
- Álbuns do Henfil, do Jaguar, do Pasquim e do Ziraldo lançados pela editora do Pasquim
- Coleção completa O Bicho (falta o número zero, que não foi vendido em banca)
- Coleção completa O Grilo
- Algumas revistas do Fradim
- Alguns exemplares de Jornalivro (livros clássicos em forma de jornal)
- Livros diversos dados por meu pai
 
Décadas de 1970/1980:
- Livros diversos dados por meu amigo Pintão (que os tinha comprado em duplicata, sem saber)
- Alguns livros de humor (Veríssimo, Millôr Fernandes, Febeapá do Estanislau, As máximas e mínimas do Barão de Itararé, entre outros)
- Livro importado das letras e cifras dos Beatles (menos as do George Harrison) que ganhei de minha mulher
- Livros capa dura Pato Donald Especial, Mickey Especial e Tio Patinhas Especial
Obs. Os livros que comprei a preço de banana na Livraria Ouvidor e os da Agatha Cristie são da minha mulher.
 
Décadas de 1990 em diante:
- Algumas revistas Chiclete com Banana, do Angeli
- Livretos do Robert Crumb
- Livro completo das tiras do Wood e Stock (Angeli), presente de um dos filhos
- Livro do Gênesis desenhado pelo Robert Crumb, idem
- Livros que ganhei de presente dos meninos
- Três ou quatro livros da obra completa do Peanuts (de um total de 26 volumes)

Além da parte “cultural”, lembrei-me da parte musical:
- Uma calimba que um filho trouxe de uma viagem feita a algum país da America do Sul
- Um violão Di Giorgio Autor 3, com o braço empenado, que custou três salários da minha mulher quando foi comprado.
- Palheta do B.B.King, dada pelo próprio à minha cunhada ao final de um show em BH
- Revista autografada pelo B.B.King, idem
- Discos de vinil de blues, Jimi Hendrix, Paulinho da Viola, etc
- CDs diversos
 
Depois disso, lembrei-me também da parte afetivo-esportiva:
- Coleção de maços de cigarro do final da década de 1950
- Coleção de caixas de fósforo promocionais da mesma época
- Um fóssil que ganhei de meu pai (um pedaço de peixe, talvez?)
- Um snorkel frontal, bom para treinar nado de borboleta
- um par de óculos de natação
- um par de pés de pato que ganhei de minha mulher
 
Finalmente, lembrei-me do vestuário:
- Um barbeador elétrico sem fio
- Sapatos (tem um par que nunca foi usado)
- Calças compridas, bermudas e camisas sociais
- Blusas tipo camiseta (t-shirt), agasalhos, jaquetas e blusas de frio
- Um cachecol importado que meu irmão trouxe de uma viagem ao exterior
- Um terno que talvez não me sirva mais (obesidade)
- Shorts, Meias e Cuecas
Obs. As cuecas devem ser jogadas no lixo! Onde já se viu alguém usar uma peça íntima (underwear) que guarda a memória do antigo "inquilino"?

Mas a herança mais significativa que deixarei para meus filhos é meu coração, dividido em quatro fatias iguais. 
 
Quanto valerá isso?
 

 

OS FILHOS DE FRANCISCO (E JULIETA) - 05

O irmão mais novo de minha mãe, Mon   (Almon), nasceu em 05/04/1940, o que significa que é apenas dez anos mais velho do que eu. Essa dife...