A
pessoa mais culta que conheço pessoalmente foi diretor do colégio onde minha
mulher lecionou. Simpaticíssimo e dono de um sorriso cativante, é sempre convidado para reuniões de ex-alunos
desse colégio. Sabe o nome e demonstra genuína amizade por cada um deles.
Anos
atrás, depois de ser apresentado a ele, dizia que ele era meu melhor – ou mais
caro – inimigo, porque a saída da meninada acontecia exatamente em frente à
minha casa, com todos os previsíveis inconvenientes que isso provocava: ovos
explodidos no nosso portão, farinha de trigo espalhada no passeio, correria,
gritaria e todo tipo de traquinagem que adolescentes fazem na saída das aulas.
Um
dia o colégio fechou e deixei de encontrar meu “inimigo” com a frequência
anterior. Mas o sentimento de amizade que tenho por ele permaneceu. E um dia
nos tornamos “amigos de facebook”.
Mesmo
que à distância, isso permitiu um estreitamento do contato, pois sempre publica
seus poemas e textos de terceiros que fogem à banalidade tão comum nessa rede.
Hoje,
já com mais de 80 anos, publicou um texto que sintetiza – ou simboliza – sua
vida e a de todos que envelheceram e se aposentaram (lembraram de algum
blogueiro?). Espero que gostem.
Um
dia você é chamado de “doutor”, “comandante” ou seja lá qual for o título de
autoridade civil ou militar.
No
outro, é só o seu Fulano da caminhada matinal, a dona Cicrana do pilates das
nove, a voz que o neto chama para ajeitar o Wi-Fi.
E
tudo bem.
Durante
anos — décadas, talvez — você construiu, decidiu, liderou.
Resolveu
problemas que pareciam montanhas.
Carregou
a casa, a empresa, o Estado — o mundo, quem sabe — nas costas.
Teve
horário, metas, gente que dependia de você.
Chamavam,
você respondia. Ordenava, e o mundo obedecia. Ou quase.
Mas
enquanto o mundo obedecia, havia um outro mundo que crescia — e que, muitas
vezes, você mal viu crescer.
Filhos
que aprenderam a andar, falar, sofrer e se virar sem você.
No
fundo, você prometia a si mesmo que um dia compensaria o tempo.
Esse
dia chegou. E, para sua surpresa, não é mais com os filhos — é com os netos.
Agora,
o crachá foi entregue, o e-mail corporativo desativado, a agenda virou um
caderno de aniversários e exames de rotina.
Um
clique silencioso no botão “sair”.
E
então começa o verdadeiro login: o da vida que existia por trás da função.
No
início, é estranho.
Acordar
sem pressa.
Almoçar
sem o celular à mesa.
Não
precisar provar nada a ninguém.
Parece
perda.
Mas,
com o tempo, a gente descobre que é ganho.
É
quando o ego — aquele bicho barulhento e faminto — finalmente vai dormir mais
cedo.
As
vaidades começam a se despentear.
E o
poder, coitado, vira uma piada interna entre lembranças e ironias.
Há
uma liberdade secreta — e quase sagrada — em deixar de ser importante.
Depois
que os holofotes se apagam e as salas esvaziam, sobra um silêncio que assusta
no início, mas logo revela algo raro: a chance de ser inteiro sem precisar ser
centro.
É
nesse intervalo entre a grandeza e o anonimato que mora uma liberdade que
poucos aceitam — a de não precisar provar mais nada.
Ser
ex-presidente, ex-artista da moda, ex-chefe temido ou ex-qualquer-coisa
relevante exige mais do que currículo.
Exige
maturidade para suportar o eco do próprio nome dito cada vez menos.
Há
quem aceite essa travessia com dignidade, transformando passado em legado e
presente em sossego.
E há
quem se agarre a qualquer manchete, a qualquer aplauso residual, como quem se
recusa a apagar as luzes do palco mesmo quando a plateia já foi embora.
Que
a vida pregressa sirva de boas lembranças, orgulho e referências — não de
prisão.
Viver
de glórias passadas é confortável, mas perigoso.
Morar
no passado é correr o risco de se tornar o próprio fantasma do metrô no filme
Ghost — aquela alma inquieta, presa entre estações, que assombra os outros no
vagão porque não consegue aceitar que o tempo passou.
Há
dignidade em reconhecer a importância que se teve.
Mas
há ainda mais liberdade em não precisar provar isso o tempo todo.
Nesse
novo tempo, surgem outras rotinas: o café sem pressa, a leitura sem prazo, a
escuta sem interrupção.
Aparece
uma nova importância — mais discreta, mas muito mais verdadeira.
Porque
já não importa o que você faz.
Importa
quem você é.
Agora,
você é o dono do cachorro Weiss e da gata Menina Chanel.
E as
pessoas da praça nem sabem seu nome — quanto mais o que você já foi.
E
não faz falta.
As
ilusões do “ser alguém na vida” se dissolvem como espuma.
E o
que sobra é a essência:
O
prazer de uma conversa boa.
A
alegria de ensinar sem cobrar.
O
tempo de ouvir mais do que falar.
A
leveza de não ser mais “necessário” — e descobrir que isso é liberdade, não
desprezo.
Talvez
o que antes era ausência agora vire presença.
A
pressa que te levou embora dos aniversários dos filhos cede lugar à calma de
montar quebra-cabeças com os netos.
O
conselho que você não deu aos 17, você agora sussurra aos 7 — com voz mais
mansa, com menos urgência, com mais amor.
Os
netos não são só a continuação da linhagem: são a chance de acertar com mais
ternura onde antes só houve esforço e intenção.
A
verdadeira grandeza talvez esteja em saber sair de cena. E permanecer inteiro.
Quem
já foi importante, se souber deixar de ser, talvez descubra que o anonimato é
só outra forma de liberdade — menos barulhenta, mas muito mais leve.
Alguns
chamam de aposentadoria.
Outros,
de desaceleração.
Mas
talvez seja apenas o início da verdadeira vida adulta: aquela em que você vive,
enfim, para si mesmo — sem script, sem performance, sem palco.
E é
nesse silêncio do “já fui” que se escuta, pela primeira vez, o que você sempre
foi.
Sem
cargo, sem salário, sem plateia.
Só
sabedoria.
E
paz.
Porque
a verdadeira importância pode estar, agora, em ter o tempo inteiro para fazer
coisas simples que levam à felicidade:
Brincar
com um neto.
Passear
com o cachorro.
Conversar
com velhos amigos.
Sentar
à mesa com quem sempre esteve por perto — mesmo quando o mundo exigia que você
estivesse longe.
É a
liberdade de quem já foi importante.
E,
enfim, aprendeu a ser presente.