A porta do elevador se abre e dele sai um
homem idoso de aparência cansada. Dirige-se ao número 303, entra na saleta de
recepção, anuncia-se para a secretária que já o conhece e espera ser chamado.
- Como vai? Vamos entrar?
- Bom dia, doutor...
O homem acomoda-se no divã e fica em silêncio
por alguns instantes. E começa a falar.
- Sabe, doutor, tenho uma amiga que também faz
terapia. Estava contando para ela a história da gravidez de minha mãe. Na
opinião dela, todas as pessoas deveriam fazer terapia. O que acha disso?
- Todos nós usamos como que uma couraça, uma armadura, para viver em sociedade. Mas nem todos têm armaduras tão pesadas que paralisem ou
os impeçam de se movimentar. Ou seja, nem todas as pessoas precisam fazer algum
tipo de terapia, entendeu?
- É, você deve ter razão.
(silêncio breve)
- Eu vim pensando em contar um ou dois casos
que até hoje me envergonham. Na época, fiquei muito mal. Qual você prefere
escutar primeiro, o mais delirante ou o mais abjeto?
- A escolha é sua.
- OK, vou contar o mais antigo primeiro. Eu
estava na quarta série do grupo escolar e tinha dez ou onze anos. Era colega de
dois irmãos, um menino e uma menina. O menino era do tipo valentão e
frequentemente arrumava brigas na saída da aula. Eu era franzino e medroso,
morria de medo de alguém querer brigar comigo. Talvez por isso e pelo fato de
irmos na mesma direção, acabei ficando amigo desse menino.
Um dia, comentei com ele que na minha casa
existia um anel de caveira igual ao usado pelo Fantasma. Conhece essa história em quadrinhos, doutor?
- Sim, o "Fantasma que anda", não é?
- Isso mesmo. Eu gostava muito dessas
histórias. Pois bem, o menino ficou empolgado e pediu para vê-lo. Eu disse que
não poderia, pois era de um de meus tios, mas ele insistiu. Eu repeti a
negativa e ele ficou com raiva. Pegou meu braço e começou a torcer. Pedi para que
me soltasse, mas ele continuou a torcer meu braço e disse que se eu não desse
para ele o tal anel ele iria me bater no dia seguinte.
A irmã do valentão ficou com um sorriso
cúmplice enquanto eu era ameaçado e agredido. Fiquei tão apavorado com a
possibilidade de apanhar, de ser surrado (meus pais nunca me bateram), que não
pestanejei: no dia seguinte, tal como em um filme de gangsters, entreguei a ele o anel da caveira (que não era meu!).
Depois disso, creio que passei a voltar
sozinho para casa. Não me lembro se era eu que o evitava ou se era ele que me
ignorava. O que me consolou foi o fato de ser um anel sem valor, abandonado e
esquecido em uma gaveta. Se eu o tivesse dado de presente ou jogado fora, nada
teria acontecido, mas o que me marcou não foi a covardia abjeta explicitada
por meu comportamento nem a provável humilhação a que seria submetido ao ser
espancado na rua. O que me fez ceder à chantagem do colega filho da puta foi o
Medo, um medo incontrolável. Medo da dor, medo do desconhecido, medo, medo, medo, medo!
- Doutor...
- Sim?
- Eu não estou legal, não sei explicar, mas
lembrar dessa história me deixou muito estranho. Acho que vou embora agora.
- Calma, respire pausadamente, o tempo ainda
não acabou e...
- Foda-se o tempo! Eu não estou bem, estou
agoniado, entendeu?.
- Espere um pouco...
- Tchau!
Nenhum comentário:
Postar um comentário