A porta do elevador se abre e dele sai um
homem idoso com ar angustiado. Dirige-se ao número 303, entra na saleta de recepção,
anuncia-se para a secretária (que já o conhece) e espera ser chamado.
- Como vai? Vamos entrar?
- Bom dia, doutor...
O homem acomoda-se no divã e começa a falar.
- Sabe, doutor, primeiro tenho que pedir
desculpas pela saída estabanada. Aquilo foi muito idiota! Quando estava
vindo para cá, lembrando do meu comportamento tão despropositado, fiquei
pensando que devo ter desarmado uma trava presa há muito tempo. Ou seja, o ódio
e a vergonha reprimidos na infância pelo medo de um menino filho da puta, um
verdadeiro bad baby, foram despertados e explodiram sem controle. Que acha
disso?
- Na psicanálise, a eliminação do sintoma é consequência da modificação na estrutura psíquica
que deu origem ao sintoma. Ou seja, uma transformação na dinâmica psíquica na
qual o paciente se submergiu, e que o faz sentir-se e viver angustiado consigo
mesmo e com os outros (no sintoma).
- Não entendi porra nenhuma!
- Ao verbalizar uma vivência que causou
sofrimento intenso no passado, você conseguiu reviver os sentimentos
contraditórios que recalcou. E isso foi libertador. Para ser eficaz, a
terapia pressupõe a criação de um vínculo entre terapeuta e analisando. Na relação entre o terapeuta e o paciente
forma-se uma relação pessoal de onde se pode interpretar o inconsciente do
analisando. Na análise leva-se o paciente a tomar suas próprias decisões,
a estar mais consciente de suas escolhas. É um compromisso de longa duração. Por
isso, meu papel não é julgar, mas ouvir e analisar.
- Eu sei, doutor, já não sou calouro nessa
matéria. Podemos prosseguir?
- Claro!
- Depois de começar aqui a revolver o
passado, percebi que não quero mais fazer isso. Até porque já contei os casos
da infância e juventude para o outro psicanalista. Poderia contá-los outra vez,
mas, sinceramente, são café pequeno perto do tornado, do tsunami que está
atingindo minha mente.
- Ao final desta sessão vou te dar uma
receita de medicamentos contra depressão.
- Eu não quero tomar nenhuma bomba! Além do
mais, não estou deprimido. O que estou é angustiado, totalmente sitiado pelo
Medo, um medo que nunca senti, que surge de todos os lados, em todos os
momentos, entendeu?
(silêncio ofegante)
Hoje eu acordo e durmo com medo, medo de
tudo. De acontecer alguma coisa a um de meus filhos (e eu não suportaria!),
medo que sofram algum acidente quando viajam, medo de ficar dependendo
financeiramente deles, medo de andar à noite e ser assaltado, medo de perder
amigos, bens, status, saúde, a fé, medo de morrer de câncer, medo do
amanhã, medo do próximo instante, medo de tudo, de tudo, de tudo. É um
sentimento que não me abandona mais, que me vestiu como uma camisa de força. Eu
não aguento mais isso!
(silêncio breve)
- Eu imagino que você vai dizer que esse medo
está relacionado ao meu desejo irrealizável de controlar tudo, que esse desejo é um eco da
impossibilidade de controlar as ausências da minha mãe durante sua gravidez. Vocês têm sempre uma
explicação plausível para o que eu e outros sentimos. Mas eu tenho pressa, não
aguento mais sofrer pelo amanhã, pelo que pode ou não acontecer amanhã ou
depois. Sim, talvez eu queira controlar tudo, justamente para não sofrer. E eu
nunca conseguirei isso!
Se o futuro fosse uma entidade, uma divindade
mitológica, eu diria para ele: Futuro,
não aguento mais temer suas ações! Chega,acabe com isso, abata-me logo! Livre-me do Medo para sempre,
não me faça esperar!
- Aqui está o número do meu celular. Ligue-me
a qualquer hora do dia, não faça nada que coloque em risco sua integridade
física. Pense que esta é uma fase que será superada...
- Ah, doutor! E o senhor acha realmente que eu
vou te ligar? Que vou te mandar uma mensagem pelo whatsapp? Que vou dizer: “Meu caro doutor, vou suicidar agora. Fui!”.
Kkkkk, não é assim que se faz? Eu
disse que não aguento mais! Tenho dor na nuca, acordo sobressaltado, perco o
sono. E sempre tem uma mão invisível a me sufocar. Medo filho da puta! VOU
ACABAR COM VOCÊ, DESGRAÇADO!
- Você quer um pouco de água?
- Quero nada, só quero ir embora! Não vou ficar mais aqui!
O homem sai estabanadamente. O psicanalista
fica pensativo, o cenho carregado. Lá fora ouve-se o guinchar de pneus freando bruscamente e o barulho de uma batida. Alguém acabava de ser atropelado.
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