terça-feira, 12 de junho de 2018

POSSUÍDO PELO MEDO - ALGUMA SESSÃO

A porta do elevador se abre e dele sai um homem idoso com ar angustiado. Dirige-se ao número 303, entra na saleta de recepção, anuncia-se para a secretária (que já o conhece) e espera ser chamado.

- Como vai? Vamos entrar?
- Bom dia, doutor...

O homem acomoda-se no divã e começa a falar.

- Sabe, doutor, primeiro tenho que pedir desculpas pela saída estabanada. Aquilo foi muito idiota! Quando estava vindo para cá, lembrando do meu comportamento tão despropositado, fiquei pensando que devo ter desarmado uma trava presa há muito tempo. Ou seja, o ódio e a vergonha reprimidos na infância pelo medo de um menino filho da puta, um verdadeiro bad baby, foram despertados e explodiram sem controle. Que acha disso?
- Na psicanálise, a eliminação do sintoma é consequência da modificação na estrutura psíquica que deu origem ao sintoma. Ou seja, uma transformação na dinâmica psíquica na qual o paciente se submergiu, e que o faz sentir-se e viver angustiado consigo mesmo e com os outros (no sintoma).
- Não entendi porra nenhuma!
- Ao verbalizar uma vivência que causou sofrimento intenso no passado, você conseguiu reviver os sentimentos contraditórios que recalcou. E isso foi libertador. Para ser eficaz, a terapia pressupõe a criação de um vínculo entre terapeuta e analisando. Na relação entre o terapeuta e o paciente forma-se uma relação pessoal de onde se pode interpretar o inconsciente do analisando. Na análise leva-se o paciente a tomar suas próprias decisões, a estar mais consciente de suas escolhas. É um compromisso de longa duração. Por isso, meu papel não é julgar, mas ouvir e analisar.
- Eu sei, doutor, já não sou calouro nessa matéria. Podemos prosseguir?
- Claro!
- Depois de começar aqui a revolver o passado, percebi que não quero mais fazer isso. Até porque já contei os casos da infância e juventude para o outro psicanalista. Poderia contá-los outra vez, mas, sinceramente, são  café pequeno perto do tornado, do tsunami que está atingindo minha mente.
- Ao final desta sessão vou te dar uma receita de medicamentos contra depressão.
- Eu não quero tomar nenhuma bomba! Além do mais, não estou deprimido. O que estou é angustiado, totalmente sitiado pelo Medo, um medo que nunca senti, que surge de todos os lados, em todos os momentos, entendeu?

(silêncio ofegante)

Hoje eu acordo e durmo com medo, medo de tudo. De acontecer alguma coisa a um de meus filhos (e eu não suportaria!), medo que sofram algum acidente quando viajam, medo de ficar dependendo financeiramente deles, medo de andar à noite e ser assaltado, medo de perder amigos, bens, status, saúde, a fé, medo de  morrer de câncer, medo do amanhã, medo do próximo instante, medo de tudo, de tudo, de tudo. É um sentimento que não me abandona mais, que me vestiu como uma camisa de força. Eu não aguento mais isso!

(silêncio breve)

- Eu imagino que você vai dizer que esse medo está relacionado ao meu desejo irrealizável de controlar tudo, que esse desejo é um eco da impossibilidade de controlar as ausências da minha mãe durante sua gravidez. Vocês têm sempre uma explicação plausível para o que eu e outros sentimos. Mas eu tenho pressa, não aguento mais sofrer pelo amanhã, pelo que pode ou não acontecer amanhã ou depois. Sim, talvez eu queira controlar tudo, justamente para não sofrer. E eu nunca conseguirei isso!
Se o futuro fosse uma entidade, uma divindade mitológica, eu diria para ele: Futuro, não aguento mais temer suas ações! Chega,acabe com isso,  abata-me logo! Livre-me do Medo para sempre, não me faça esperar!
- Aqui está o número do meu celular. Ligue-me a qualquer hora do dia, não faça nada que coloque em risco sua integridade física. Pense que esta é uma fase que será superada...
- Ah, doutor! E o senhor acha realmente que eu vou te ligar? Que vou te mandar uma mensagem pelo whatsapp? Que vou dizer: “Meu caro doutor, vou suicidar agora. Fui!”. Kkkkk, não é assim que se faz? Eu disse que não aguento mais! Tenho dor na nuca, acordo sobressaltado, perco o sono. E sempre tem uma mão invisível a me sufocar. Medo filho da puta! VOU ACABAR COM VOCÊ, DESGRAÇADO!
- Você quer um pouco de água?
- Quero nada, só quero ir embora! Não vou ficar mais aqui!

O homem sai estabanadamente. O psicanalista fica pensativo, o cenho carregado. Lá fora ouve-se o guinchar de pneus freando bruscamente e o barulho de uma batida. Alguém acabava de ser atropelado.

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