sexta-feira, 28 de agosto de 2015

MINHA EXPERIÊNCIA NUCLEAR - PARTE 3/6

Depois da visita a Angra, arregaçamos as mangas e começamos a trabalhar. Isso significava ler toda a extensa documentação, estudar projetos, começar o planejamento, etc., cada um no seu quadrado, lógico. Os engenheiros com experiência em planejamento começaram a destrinchar os projetos para definir os cronogramas e as redes Pert, como e quando cada etapa seria construída, quais equipamentos e equipes a utilizar, etc.

Os engenheiros com habilidade narrativa (havia um que era genial) ficaram encarregados de escrever as centenas de páginas que foram produzidas, onde eram descritos detalhadamente os métodos previstos e suas particularidades. Cuidavam também de descrever as edificações e instalações provisórias que seriam construídas, tais como acampamentos, refeitórios, vestiários, escritórios de obra, centrais de concreto, etc.

Uma equipe chefiada por um engenheiro extremamente meticuloso e experiente nessa área, ficou encarregada de fazer a varredura, o pente fino em toda a documentação que deveria ser apresentada (certidões negativas, atestados de capacidade técnica, etc.).

Os engenheiros orçamentistas (eu fazia parte desse “quadrado”), em sintonia com o departamento de compras da empresa, encarregaram-se de traduzir as informações e hipóteses formuladas pelas equipes de planejamento e redação técnica nos índices e preços que seriam ofertados na proposta comercial.

Havia ainda a seção de projetos, chefiada por um engenheiro competentíssimo, onde  eram detalhados e desenhados os projetos decorrentes do planejamento realizado (posicionamento de guindastes, detalhamento de formas especiais, cronogramas e gráficos diversos e coisas do tipo). É bom deixar claro que essa muvuca era e é normal na elaboração de propostas para obras de maior porte ou mais complexas. Para nós, a novidade da proposta de Angra 3 é que “todo mundo” estava envolvido em sua elaboração.

O chefe dessa seção merece um parêntese com alguns parágrafos. Seu nome era Herberto e era filho de alemães legítimos. O pai chamava-se Huberto. A razão para esses nomes idiotas é curiosa. Originalmente, chamavam-se Herbert e Hubert. Durante a Segunda Guerra, em virtude da hostilidade dos brasileiros contra italianos e alemães, resolveram abrasileirar os nomes, que viraram essa bosta. 

Outra curiosidade é o fato de seus pais terem vindo para o Brasil ainda crianças com uns quatro anos, por aí. Provavelmente, conheceram-se na colônia alemã de BH (se isso existiu). Seus pais eram, portanto, brasileiros naturalizadíssimos e falavam português sem nenhum sotaque, pois tinham praticamente nascido aqui. Em casa, entretanto, a língua falada por todos era o alemão. Segundo meu amigo Herberto, por causa da guerra, além da mudança de nomes, passaram a conversar só em português, hábito que se manteve mesmo depois da derrota da Alemanha. 

Durante a elaboração da proposta para Angra 3, aconteceu seu encontro com dois alemães que tinham chegado para dar consultoria no planejamento da obra. Acredito que timidamente no início (e quando não havia outros colegas por perto), o Herberto passou a conversar com eles em alemão. Tempos depois, contou-me que os gringos destacaram o fato de ele falar sem nenhum sotaque. E surpreenderam-se por usar palavras e um estilo de linguagem antigo, já em desuso na Alemanha. Suponho que seria o equivalente a alguém chegar no Brasil falando "vosmecê" e usando expressões como "alvíssaras" ou "eia, sus!". 

Imagino que esse profissional competentíssimo e super gente fina já tenha morrido, pois eu era o segundo engenheiro mais novo da equipe (e já estou com 65 anos!), enquanto ele era o segundo ou terceiro mais velho. Se ainda estiver vivo, deve estar hoje com uns 90 ou 95 anos. Grande Herberto! Parêntese fechado.

Voltando à proposta, foi nessa época que aconteceu o episódio já narrado em um dos primeiros posts deste blog, (http://blogsoncrusoe.blogspot.com.br/2014/08/historias-do-digao-parte-ix.html) que transcrevo a seguir (em itálico), na certeza de que quase ninguém leu esse caso ridículo:

“Quando saiu a licitação para a construção da usina nuclear Angra III, a empresa onde trabalhávamos mobilizou todos os recursos possíveis para ganhar essa obra (mas foi desclassificada). Como era uma tecnologia totalmente nova, alemã, diferente da americana utilizada na usina Angra I, uma das exigências do edital era a parceria com empresa que já tivesse construído usina semelhante. Essa empresa atuaria como consultora, antes e durante a execução da obra.

Feitos os contatos, chegaram a Belo Horizonte dois engenheiros alemães, sendo que apenas um falava espanhol. Foram logo apelidados por outro colega, crítico e irônico ao extremo, de “Grafite” e “Canetão”. Grafite, segundo a ótica desse colega, era aquele que iria arregaçar as mangas e trabalhar, pois usava apenas lapiseira – e borracha, naturalmente. O outro, justamente aquele que sabia espanhol, era o gerente da empresa alemã para a América do Sul e usava apenas caneta, útil somente para assinar cheques, na visão ácida desse colega.

Estávamos concentrados em nossas tarefas, quando chega o Canetão:

– Óia ‘este’ planta! Está faltando um corte que está indicado ‘neste outro’ planta!

Os desenhos originais estavam escritos em alemão, com a indicação de vários cortes (schnitt). E o alemão começou a contá-los na nossa frente, para conferir:

– eins, zwei, drei, vier... E o Digão emenda: – fünf, sechs, sieben, acht…

O alemão, que aparentava idade próxima à de meu amigo, um senhor, portanto, surpreende-se.

– O senhorrr fala alemáo? – pergunta encantado.

– Não, só sei contar até dez – responde o Anta. Começamos a rir depois que o Canetão saiu.

– Animal, você forneceu pro alemão a prova definitiva que o Brasil não é um país sério, sua Anta!!!”


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