Acredito estar perdendo minha capacidade de "delirar" de olhos abertos. "Mas deve ser da idade", como cantou a Marina Lima. Por isso, às vezes recorro a lembranças mais antigas para desencavar algum papo-cabeça. Como este, por exemplo. Tenho um amigo que, um dia, enquanto
conversávamos fiado em sua casa, fez uma descrição interessantíssima de como
enxergava a Vida e o ato de morrer – o que mexeu com minha imaginação.
Para ele, a vida seria como um caminho
cercado que leva o gado ao matadouro, que iria se afunilando quanto mais se
andasse. No início, as cercas estão tão distantes que ninguém se preocupa com a
existência delas. À medida que passam os anos, a cerca vai se aproximando, se aproximando,
de tal forma que, quando nos damos conta, não há mais como escapar do abate. E
disse rindo que a solução era “meter
coices na cerca, para ela se afastar um pouco”.
A imagem bem arquitetada me fascinou. Gostei
tanto que até ampliei o conceito: quando somos crianças, nem sequer sabemos da
existência de cercas. Olhamos para os lados enquanto caminhamos e não vemos
limites na paisagem. Aos poucos, aumentando a idade, começamos a perceber algo
na linha do horizonte.
Ontem, lembrando-me disso, fiquei pensando nas inúmeras variáveis que afetam
a vida de cada um, a sucessão de escolhas e decisões que tomamos desde que
nascemos. Daí veio a ideia de que a vida de cada um é como se fosse um algoritmo, uma equação
matemática complexa e sofisticada, com um sem-número de elementos, variáveis,
operações e incógnitas, que tentamos diariamente solucionar.
Alegoricamente falando, quando estamos ainda
na infância, preocupamo-nos apenas com operações de soma, que nos dão alegria –
e subtração, que nos provocam decepção e choro.
Chegando à adolescência, continuamos
alegremente nas tarefas de somar e subtrair, mas incorporamos também as
operações de multiplicar. Quando nos casamos e vêm os filhos, passamos também a
trabalhar com divisão.
Em
determinado ponto da vida, alguns começam a cogitar sobre as inúmeras variáveis
e incógnitas – verdadeiros números complexos – que impedem o entendimento da
equação. Nesse ponto, em um passado remoto, provavelmente foi imaginada a
existência de deuses diversos, que explicariam as inúmeras questões existentes
– origem da vida, origem do universo, doenças, sol, lua, fertilidade e todo
tipo de situação que causava ansiedade, medo ou perplexidade nos nossos
antepassados.
Não é demais imaginar que, para muitos, a
equação estava resolvida. Outros, entretanto – talvez uma meia dúzia de gatos
pingados – continuavam a exercer sua curiosidade, recusando uma solução mágica,
tipo “hocus pocus”. A ciência que surgiu
daí foi, devagarzinho, expulsando, reduzindo e empurrando a influência dos
deuses e das religiões para mais longe, à medida que os fenômenos naturais iam
sendo explicados e que muitas incógnitas iam sendo identificadas.
Mesmo assim, até hoje, quando ouvimos falar
de conceitos cuja existência nem suspeitamos tal a complexidade de raciocínio
envolvida, continuamos com várias incógnitas para identificar, para que a
equação enfim seja solucionada – tal como no tempo de escola, quando o
professor escrevia ao final de um teorema demonstrado: “c.q.d” (os mais pedantes usavam “q.e.d.”).
Hoje, ouvimos falar da “ilusão” da “dimensão”
tempo, que só existiria porque existe um observador, ficamos perplexos com as
informações sobre os limites do universo e sobre as partículas subatômicas,
ficamos boquiabertos com as informações contidas nos genes e nas moléculas de
DNA. Alguns se intrigam com a ideia do Big
Bang ou do Big Crunch (a maioria
nem sequer ouviu falar disso!), a respeito da idade do universo e coisas semelhantes,
noções e ideias entendidas apenas por um punhado de “malucos”, gênios de mente
brilhante e inquieta, mas coisas incompreensíveis para a maioria absoluta da
população.
Tudo isso mexe com as posições de Deus na
equação, usado para explicar incógnitas ainda não definidas. Os cristãos
fundamentalistas são pródigos nesse uso. Já os católicos, mais sensatamente,
comportam-se tal como disse alguém: “à medida
que a Ciência avança, a Religião recua”. Para entender isso, dito sem
crítica e sem ironia, basta lembrar Galileu, Giordano Bruno e outros.
Quando envelhecemos, mais aumenta nosso
desejo de ver nossa equação resolvida. Afinal, a “cerca” vai se aproximando mais e
mais... Com isso, surgem perguntas a respeito de algumas incógnitas que talvez
nunca sejam respondidas: Qual o sentido
da vida? Como e por que a vida surgiu? A vida seria apenas consequência de um
capricho de moléculas de carbono delinquentes e sem mais o que fazer? O que há
após a morte? Existe Céu, existe Inferno? Todas essas perguntas, volta e
meia, provocam comichões na mente, que não consegue encontrar uma explicação
que atenda à Razão – a não ser pela Fé.
Penso que quanto mais envelhecemos – quando
aumenta a percepção de finitude da vida (jovem sabe que a vida é finita, mas
nem se lembra disso – ainda bem), quando percebemos que a Vida não demora tanto
a nos abandonar, o cérebro, acompanhando o cansaço do corpo, começa a silenciar
as inquietações, a acalmar a busca pela identificação das incógnitas que ainda
restam. A mente e o corpo começam apenas a contemplar a solução do problema, a
esperar que se processe o resultado final da equação.
Que pode ser zero. Ou infinito...