quarta-feira, 15 de agosto de 2018

ERA PARA SER UM COMENTÁRIO


Este texto é uma expansão do post “Receitas de pai” e uma (longa) resposta ao comentário feito por meu amigo virtual e imperador do blog “A Marreta do Azarão”. Bora lá.

Como disse no post citado, tenho dificuldade de conviver com ideias preconcebidas, comportamentos robotizados e conceitos e imagens estereotipadas. Imagino que se vivesse na Idade Média teria sido queimado por heresia ou coisa parecida. Incomodam-me as imagens idealizadas e comentários piegas e cheios de amor filial dos dias das Mães e dos Pais.  O pai ou a mãe podem ter sido carrascos, cruéis, sádicos ou indiferentes durante a infância de seus descendentes, podem ter dado surras em crianças indefesas, batendo com cinto, dando palmadas, chineladas, tamancadas, vassouradas, pauladas, beliscões, murros ou tapas na cara, podem ter espancado isolada ou coletivamente seus filhos, podem tê-los humilhado, ridicularizado ou destroçado sua autoestima, que não faz diferença. Basta se tornar adultos para que as surras, castigos e humilhações da infância virem piadas e comentários jocosos nas reuniões de família. É como se os filhos tivessem perdido a memória e recriassem a realidade esquecida. Acho esse comportamento uma maluquice. O pior é que já ouvi várias histórias sobre isso.

Uma das histórias mais bizarras que já ouvi foi contada entre risos por um filho muitas vezes “exemplado”. Segundo ele, o pai deixava dependurados atrás da porta dois “instrumentos de correção”: uma tala de couro e um chicote fino, usadas sempre que um dos filhos merecesse uma correção. Quando estava de bom humor, mandava que o “condenado” escolhesse com qual artefato queria apanhar. Quando o pai estava de mau humor ou a falta era mais grave que o normal, quem escolhia era o pai. Os filhos logo perceberam que a tala, por ser mais larga, apesar de arder mais no início, diluía o impacto da pancada graças à maior área de contato com a pele. Com o chicotinho acontecia o contrário, pois as marcas e vergões ficavam visíveis e doloridas por mais tempo. Por isso, sempre que podiam, escolhiam apanhar de tala. Muito bom!

Ouvir essas histórias sempre me deixaram espantado, pois nunca apanhei de meus pais. Podiam ter defeitos (e tinham), podem não ter deixado bens e propriedades para mim, mas sempre, sempre, sempre me senti amado e valorizado por eles. Raríssimas vezes minha mãe deu algum beliscão ou um tapa no braço, mas meu pai nem isso fez. O que ele fazia era falar. Falar muito. Por longo tempo. Falar de uma forma que me martirizava, que me deixava arrasado. Depois de algum tempo, pedia desculpas (o que me deixava putíssimo. Se era para pedir desculpas depois, por que ser tão ferino, por que cortar com palavras?). Talvez por isso, sempre lamentei não ter apanhado de meus pais.

O fato de não ter apanhado na infância teve enorme influência depois de me tornar pai, pois sempre tive mania de racionalizar meus comportamentos. Por isso, por odiar ter ouvido palavras ferinas e cortantes na infância e por não ter apanhado fisicamente, resolvi “conscientemente” que era melhor bater em meus filhos sempre que fosse necessário. E bati. Bati sem motivo, por motivo fútil, sem raiva, com raiva, equivocadamente, cruelmente. Bati em crianças lindas, adoráveis e indefesas! Até hoje isso me queima por dentro. Ainda que eu vivesse mil anos, não conseguiria nunca apagar a dor e o arrependimento que essas lembranças provocam.

Não bastasse isso, ainda fui um pai ausente e displicente, pois pouco brincava com meus filhos (mesmo que me pedissem), dormia sentado quando deveria estudar com eles, ralhava sem necessidade. Por isso, fico incomodado quando vejo alguns filhos endeusando pais que os ignoraram, humilharam ou agrediram bárbara e cruelmente na infância. Quando vejo velhinhos e velhinhas sorridentes ao lado de filhos atentos e amorosos, murmuro para mim mesmo: - “Me engana que eu gosto!” Raramente percebo alguém que manteve acesa a revolta pelos maus tratos sofridos. Só uma vez ouvi uma senhora dizer mais ou menos isso de sua mãe:
- “Não é por ter envelhecido que ficou boa! Minha mãe sempre foi má. E continua assim até hoje”.

Pensando nessas coisas e nesses casos, pensando em mim e em pais que conheci, resolvi escrever alguma coisa que ironizasse essa idealização de pais nada idealizáveis. A coisa começou a sair em forma de versos muito ruins e foi se ampliando. Cada estrofe terminada parecia pedir uma nova. E as rimas eram muito pobres, coisa de gente ignorante e caipira. Era um poema que estava ficando longo e eu não sabia como terminá-lo.  Por isso, surgiu a ideia de transformar cada estrofe em uma “receita de pai”. Só assim eu consegui interromper o texto. Então, meu caro Marreta, era mesmo para ser um poema, mas fiquei com vergonha do resultado.

Quanto ao fato de existirem pais que não agridem seus filhos, isso faz com que eu tenha um fiapo, uma linha, uma molécula de esperança na humanidade. Por isso, meu caro Marreta, aceite meu agradecimento pelo comentário imerecidamente elogioso e minha admiração e desejo de que continue a ser esse pai que diz ser. Fui.

2 comentários:

  1. Não deve ser fácil admitir tudo isso pra você mesmo e menos ainda fazer essa mea culpa "publicamente". Parabéns pela coragem e obrigado pela confiança. Muda alguma coisa admitirmos nossos erros? Repara-os ou os torna menos graves? Vai saber...

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  2. Não vejo problema em admitir meus erros e culpas. Só os idiotas não aceitam que erram ou erraram ("querer ser mais do que valem é dos imbecis a praxe", já disse Juca Chaves). E o engraçado é que conheço pais muitíssimo piores e mais violentos do que eu fui. A meu favor, para contrabalançar um pouco, declaro que nunca deixei de explicitar de forma "escandalosa" meu amor por meus filhos. Quando nosso primeiro filho nasceu eu tinha apenas 26 anos, era tão imaturo que dava até pena. Outra coisa que eu queria comentar é que as palmadas e surras foram diminuindo progressivamente, do mais velho para o mais novo, até cessarem por completo. Mas a dor da injustiça e da crueldade me devasta até hoje, basta pensar nisso. Dizem que as feridas cancerosas não cicatrizam. Se for assim, o arrependimento é um câncer que me consome, é o abutre que come diariamente o fígado de Prometeu.

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