O homem chega em casa, tira a roupa e os
sapatos, cumprindo um ritual adquirido toda vez que vai ao cemitério.
Enquanto espera que a mulher tome banho para que possa fazer o mesmo,
esparrama-se pensativo no sofá. Mais uma noticia de falecimento, mais um velório.
Avós, pais, tios, primos, parentes distantes, cunhados, amigos, colegas,
conhecidos, vizinhos e até mesmo desconhecidos. A quantos já terá ido?
Cinquenta? Cem? Não faz ideia. Só sabe que têm ficado mais frequentes,
prenunciando talvez que o seu próprio não esteja tão distante.
Mas o enterro de hoje trouxe pensamentos que não tinham lhe ocorrido ainda. O falecido, um senhor com mais de noventa anos, tinha o apelido de Zuzu. Aqui cabe um parêntese: como chamar alguém de "Senhor Zuzu"? Não combinava a circuspecção do tratamento "Senhor" com a sonoridade infantil do apelido.
"Zuzu" era primo de sua sogra. Aliás, primo por adoção, pois era sobrinho da madastra da sogra. Devido ao "parentesco" e aos laços afetivos que uniam os "primos", algumas vezes teve oportunidade de encontrar Zuzu na casa da sogra, ocasiões em que trocavam sorrisos à guisa de cumprimento, mas nunca teve o menor interesse de conversar com o homem que acabara de ser enterrado.
A explicação para isso talvez fosse a diferença de idade entre eles e o comportamento tímido e discreto do mais velho. Talvez fosse a presunção e arrogância do mais novo de acreditar que não haveria nada de interessante em manter uma conversa com aquele senhor tímido, discreto e com apelido meio ridículo. Falariam de quê? De futebol? Detestava. Do clima? "É, está precisando chover", coisas assim. De política? Ora, faça-me o favor! Não, nunca esteve interessado em ouvir o que aquele senhor baixinho e gordinho poderia lhe contar.
Mas, um dia, no penúltimo velório a que compareceu, calhou de assentar-se ao lado do "primo" de sua sogra. Para não ficar aquele silêncio de velório entre eles - na verdade, velório é um dos lugares onde mais se conversa, onde os registros familiares são atualizados ("Fulano casou", "Sicrana já está com três netos"). Casamentos, separações, doenças graves, nascimentos, de tudo se fala e comenta - começou a puxar assunto com o Zuzu
Lembrou os casos de outro "parente" de sua sogra, já falecido, conhecido por "Vovô Catapreta". Apesar do velhinho carinhosamente receber o tratamento de avô, o "parentesco" era ainda mais surreal, pois "Vô Catapreta" era padrasto da madrasta da sogra!
Conversa vai, conversa vem, Zuzu contou uma historieta saborosa sobre o velho Catapreta:
- O Catapreta, no fim da vida, morava com seu enteado. A esposa do enteado regulava muito os passos do "sogro", impedindo-o de beber cachaça, sua bebida preferida. Toda vez que eu ia visitá-lo, ele me perguntava se gostaria de tomar uma cachacinha com ele. Quando aceitava, ele ia até o quintal e tirava de um buraco do chão uma garrafa que ele mantinha enterrada para escapar da "revista" da "nora".
Achou graça nessa história, mas tiveram de
interromper a conversa, pois haviam começado os preparativos para o sepultamento do amigo comum.
Lembrando-se do episódio, o homem lamentou nunca ter percebido o potencial estoque de casos
familiares divertidos que talvez o finado Zuzu possuísse e quisesse
compartilhar com quem fosse capaz de despir-se da própria arrogância e pudesse ouvir com
atenção o que aquele senhor baixinho e gordinho teria a dizer.
A esposa saiu do banheiro, dando chance a ele
de tomar um banho para tirar do corpo "a poeira do cemitério".
Enquanto se ensaboava, ficou pensando nos arquivos de computador. Você pode
abri-los e examinar seu conteúdo quantas vezes quiser. Um dia, porém, sabe-se lá por qual motivo, um desses
arquivos é corrompido e você o perde, pois nunca mais poderá utilizá-lo nem recuperar os
dados nele contidos. E só poderá lamentar não ter feito backup das informações perdidas.
E concluiu que as pessoas são como esses arquivos. Um dia, sem aviso
prévio, recebemos a notícia de seu falecimento. E só poderemos lamentar não ter
tido mais contato e conversado mais com quem agora é apenas um arquivo perdido.
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