sexta-feira, 11 de maio de 2018

DISPERSÃO - MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


Estava ouvindo no rádio do carro o programa do Reinaldo Azevedo quando ele declamou o que me pareceu ser um pequeno poema. Achei aqueles versos incrivelmente bonitos, tentei memorizar o nome de quem o teria escrito, mas só consegui guardar a palavra "labirinto" e a informação de que o autor teria sido amigo de Fernando Pessoa. Procurei no Google e encontrei o que procurava. Um puta poema, de autoria do desconhecido (para mim) Mário de Sá-Carneiro. Não vou traçar seu perfil (quem quiser que procure na internet), apenas transcrever os versos de um poema que diz muito de mim - e para mim. Olhaí que beleza.

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira 
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido 
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...

E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar
Ninguém mas quis apertar
Tristes mãos longas e lindas

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me na alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida, 
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço,...
..................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba
......................................


3 comentários:

  1. Esse cara foi do caralho! Só não teve mais destaque - o seu merecido destaque - porque teve o "azar" de ser contemporâneo de Fernando Pessoa, que, obviamente, ofuscou a todos de seu tempo. Pudera, o cara era um esquizofrênico de primeira, era uma porrada de gente, um monte de heterônimos.
    A Adriana Calcanhoto musicou uns poemas do Mário de Sá Carneiro. Acho que poderá gostar:
    https://www.vagalume.com.br/adriana-calcanhoto/o-outro.html
    https://www.e-centrica.org/mario-de-sa-carneiro/

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    1. O Reinaldo Azevedo fez o mesmo comentário – se o cara não tivesse vivido na mesma época do Fernando “Pessoas” ele seria mais conhecido. Mas o que me impressionou é que muita coisa que ele sintetizou em seu poema eu já tinha dito aqui no blog, como eu o tivesse psicografado ou lido antes. Aliás, fiquei sem saber se publicava esse poema ou se deixava para depois, pois estou pensando em retomar um tema que abandonei na “primeira morte” do Blogson, sobre o efeito do medo em minha vida. Tinha até pensado na frase final (meus textos normalmente começam a partir de alguma frase que me ocorre). Como este blog é mesmo uma zona, vou dar um “spoiler”, dizendo a frase (pode ser uma bosta, mas é assim que me ocorreu):
      “Por favor, Futuro, não demore muito a chegar”.

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    2. Dizemos e pensamos muitas coisas que os "grandes" já pensaram. Afinal, pouco importa a época, a natureza humana é imutável, os sentimentos, as impressões, são mais do mesmo. O que muda é, justamente, a forma, a capacidade, o talento, para expressar o que todos sentem.
      Fernando Pessoa, Bukowskii, Augusto dos Anjos, Manoel Bandeira, Chico Buarque... tanta coisa que eles pensaram "antes" de mim. Malditos sejam!!!!

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