sexta-feira, 4 de setembro de 2015

MINHA EXPERIÊNCIA NUCLEAR - PARTE 4/6

Garantia da Qualidade: essa exigência do edital me fez rir até mandar parar. Segundo li na época, esse “monstrinho” teria surgido para certificação das bases de concreto e outras instalações, usadas para testes de empuxo dos motores de foguete que seriam utilizados nos primeiros voos espaciais. Está na cara que a construção de uma base de concreto deve ser bem mais barata que um motor de foguete. Por isso, se uma dessas estruturas falhasse de alguma forma, poderia provocar danos ao motor em teste, com enormes prejuízos de dinheiro e tempo (imagino que já estivesse rolando a corrida espacial entre União Soviética e Estados Unidos).

Foram então listados procedimentos rigorosos a ser cumpridos para a construção dessas estruturas. Essa lista, originalmente com dezoito exigências (depois baixados para treze) foi depois utilizada na construção de usinas nucleares. Na prática, era um check-list sofisticado.

No caso de Angra 3, o caso é o seguinte: o edital previa o cumprimento integral de treze normas ou procedimentos estabelecidos pela IAEA (International Atomic Energy Agency) para a construção de usinas nucleares. Não me lembro mais de que se tratava, mas todos eram relacionados à segurança e confiabilidade da obra. Falavam, entre outros assuntos, de arquivamento de documentação, controle de qualidade e garantia da qualidade. Tentei achar essas treze orientações na internet, mas desisti.

Toda obra de engenharia que se preze tem, obrigatoriamente, controle de qualidade dos materiais empregados. Dependendo do porte da obra, o laboratório é até instalado no próprio canteiro. Então, não era nenhuma novidade a exigência de controle de qualidade rigoroso. Mas, garantia da qualidade, que bicho era esse?

A primeira providência foi contratar um especialista em controle de qualidade para assessorar e dar consultoria sobre essa exigência. A segunda foi designar um engenheiro ultra metódico, mega sério e sistemático para a recém criada “Gerência de Garantia da Qualidade”. Embora fosse realmente uma gerência, seria subordinada diretamente ao presidente da empresa (caso ganhássemos a obra, lógico). E tome reuniões, treinamentos, palestras e muito dinheiro gasto com essa consultoria.

O chefe do nosso departamento era um sujeito sarcástico, extremamente excêntrico e muito engraçado. Os apelidos que ele colocava eram como chiclete em calçada pública, grudavam de forma definitiva. Com a equipe de consultores e terceirizados para essa proposta foi a mesma coisa. Já falei no “Grafite” e “Canetão”, mas o melhor mesmo foi o apelido que deu ao consultor de garantia da qualidade.

Pela divisão de tarefas adotada, eu trabalhava direto com ele. Foi a época que eu mais me diverti no trabalho, pois ríamos o tempo todo. E o serviço saía! Um dia, meio irritado, perguntou se eu tinha visto o “Ventania”. Perguntei quem era, já esperando a próxima maluquice.

- Você não sabe quem é o Ventania? É o consultor da garantia.

- Porque Ventania?

- Esse cara só está vendendo vento, e vendendo caro! E o Zé (...) (o gerente) está em órbita, pois ele acha que esta empresa fará tudo o que estão dizendo. Pior é que não é uma órbita perfeita, porque o vento soprado é muito forte.

Comecei a rir e ele continuou:

- Você que é bom em desenho podia desenhar essa situação. Olha só, o planeta é a empresa. O satélite em órbita é o Zé (...). Aí você faz uma órbita ondulada para ele, porque o Ventania está atuando.

Ele realmente achava que o consultor, por não ter experiência anterior com esse tema, estava nos fazendo de trouxas. talvez sim, talvez não. O que sei é que, depois de um tempo, até o diretor técnico perguntava ao Zé (...) como estava indo o trabalho com o Ventania.

Naquele tempo, eu nunca tinha ouvido falar de ISO-9000. Hoje, eu vejo que a Garantia da Qualidade era exatamente isso (ou quase isso). Na prática, era uma ratificação formal e documentada de que os procedimentos previamente estabelecidos estavam sendo cumpridos e executados sempre da mesma forma (a maluquice é essa: a norma ISO não estabelece que o serviço deve ser realizado da melhor forma possível. A certificação apenas garante que o serviço está sempre sendo realizado da mesma maneira. Se for ruim, será "eternamente" ruim).

Como era uma exigência do edital, o Manual de Procedimentos para a Garantia da Qualidade começou a ser gestado. Dá para adivinhar qual era o primeiro procedimento? Ninguém se habilita? Era “Como elaborar um Procedimento”. Era o suprassumo da burocracia atuando na área de qualidade. E meu chefe, dono de uma visão extremamente fria e desencantada do que nos esperava, caía de pau.

Na visita que fez a Angra 1 ficou observando uma movimentação de pedra britada. Sem motivo aparente, um equipamento retirava a brita de um pátio e transportava para outro, bem ao lado. Perguntou a quem o acompanhava o que essa movimentação significava. A resposta foi de que no primeiro monte a brita ainda não tinha a garantia da qualidade assegurada, enquanto que o segundo depósito já estava OK. Meu chefe emendou de primeira:

- Então, apesar da garantia, a brita do segundo monte é pior, porque na movimentação de um lado para o outro, o equipamento raspa um pouco o chão e leva terra junto com a brita!

O fiscal ficou sorrindo sem graça, diante da observação na mosca.

Esse sujeito costumava dizer que a empresa crescia à noite, quando não tinha ninguém para atrapalhar. Como "ninguém", entenda-se: diretores e gerentes. Um dia, a propósito de mais uma maluquice ligada à proposta em elaboração, comentou que o "Hélice" devia estar girando muito. Já imaginando alguma sacanagem, perguntei de quem estava falando.

- Você não sabe quem é o Hélice? É o "Sô Arcindo"! Toda vez que alguém faz uma burrada na empresa ele dá um giro dentro da sepultura. Ultimamente, deve estar sendo usado como ventilador pelos "morto".

Caguei de rir, pois o "Sô Arcindo", como falou fazendo sotaque caipira, era o fundador da empresa, falecido uns trinta anos antes.

Se eu fosse registrar todos as observações espirituosas e amalucadas e os casos dessa excelente pessoa, este texto aumentaria substancialmente de tamanho. E ainda tem muita coisa para lembrar. Por isso, só para completar este tópico, lembro a discussão semântica sobre o uso das preposições "de" "do" na área da qualidade. O gerente Zé (...) era enfático e professoral ao “exigir” seu uso correto.

- Ô Zé, não se pode dizer “garantia de qualidade?

- É claro que não! O correto é dizer “Controle de Qualidade” e “Garantia da Qualidade”!

Eu compartilhava a visão desencantada do meu chefe e achava tudo isso um porre, uma viadagem só. Mas me divertia pra caramba.


3 comentários:

  1. "E achava tudo isso um porre, uma veadagem só. Mas me divertia pra caramba". Acho que devia haver uma repartição, quem sabe uma associação, na vida só para essas coisas. Só acho e bem acho, acho eu.
    "J"

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  2. Hahahaha
    Coisas da Jota, e boa parte delas, creia nem eu mesma entendo.
    "J"

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