sexta-feira, 18 de setembro de 2015

MINHA EXPERIÊNCIA NUCLEAR - FINAL

Deixei para falar das propostas técnica e comercial por último, por serem literalmente a chave e o fecho destas lembranças. Mas, vamos devagar.

A proposta comercial não tinha nada de especial que a diferenciasse de outras propostas apresentadas para outras obras, de outros órgãos. Era composta de planilhas detalhadas para cada um dos prédios da usina, cada planilha contendo a quantidade prevista de concreto, ferragem, movimentação de terra, etc. Essa quantidade era fornecida pela própria Nucom, pois os projetos executivos não estavam ainda disponíveis. Além das planilhas, havia resumos de preços, cronogramas físico-financeiros, demonstrativo dos encargos sociais incidentes no preço da mão de obra, e as chamadas "composições de preços unitários" para cada um dos preços ofertados.

Essas composições são demonstrativos super detalhados de cada um dos preços cobrados. Assim, só para dar exemplo, para assentar um metro quadrado de azulejo, a composição trazia o azulejo considerado já com a previsão de quebra, a quantidade de argamassa necessária, as horas de azulejista gastas para assentar aquele metro quadrado, etc. E, claro, o custo unitário de cada um desses componentes, de tal forma que, ao final do demonstrativo, obtinha-se o valor unitário do serviço. Após a aplicação das taxas de administração, impostos e lucro, tinha-se finalmente o preço unitário que seria aplicado às quantidades fornecidas pela Nucom. Resumindo: nada de anormal ou suspeito havia na proposta comercial. O "tchã" da história estava na proposta técnica.

Se alguém quis saber a razão da papelada já descrita, a razão é simples. Na década de 1980 (não sei como é hoje) as propostas técnicas atingiram um padrão de qualidade e de apresentação tal que poderiam tranquilamente ser chamadas de "propostas estilo ostentação", tal a quantidade, detalhamento e riqueza das informações nelas contidas.

Começava-se por descrever as implicações logísticas decorrentes da localização da obra. Descrevia-se como os materiais mais importantes seriam obtidos, qual a forma de estocagem, quais as alternativas, etc. O mesmo se fazia com a mão de obra: quantos operários seriam alojados, quantos recrutados na região, qual a estimativa de casados e solteiros, qual o máximo previsto para cada categoria, como seria feito o fornecimento de alimentação para todos, quantos refeitórios precisariam ser construídos, qual o equipamento de cozinha seria utilizado, em quantos turnos previa-se o trabalho, etc., etc.

Os equipamentos previstos tinham o mesmo tratamento: além da descrição detalhada das unidades industriais (britagem, centrais de concreto, centrais de formas e de armação), ainda era abordado o plano de manutenção, como seria a planta das oficinas, qual a equipe prevista, qual a quantidade de ... e bla bla bla. 

A descrição de como seriam executadas as várias etapas construtivas da obra era exaustivamente detalhada, e qualquer servicinho era esmiuçado quase ao nível molecular. Essas informações transpostas para o papel transformavam as propostas técnicas em verdadeiras aulas, em cursos rápidos de engenharia.

Mas o edital de Angra 3 continha uma coisa a mais, uma exigência que, mal utilizada, poderia converter-se em um verdadeiro Cavalo de Tróia: as composições de preços unitários já mencionadas deveriam obrigatoriamente fazer parte da proposta técnica, mas sem nenhuma indicação de preço. Essa novidade talvez tenha sido pensada em virtude da natureza estratégica da obra, como uma forma de "garantia da qualidade" para o contratante. Pode ser...

O fato é que, de posse do esqueleto de cada um dos preços antes da proposta comercial ser aberta, a empresa contratante poderia tranquilamente fazer uma auditoria prévia do preço final ofertado de cada concorrente, sem precisar tirar o lacre da proposta comercial. Para essa auditoria, bastaria acrescentar os preços unitários dos materiais e dos demais componentes. Traduzindo: se eu sei que a empresa XPTO prevê gastar 6 sacos de cimento para fazer um metro cúbico de concreto, basta multiplicar os seis sacos pelo preço unitário do cimento. Depois, é só multiplicar o valor assim obtido pela quantidade prevista de concreto para a obra toda.

Mesmo em uma época onde não havia computadores de mesa, fazendo isso com todos os serviços, não seria difícil descobrir o preço final apresentado por cada concorrente, com pequena margem de erro. Esse era o Cavalo de Tróia. Se houvesse naquela época um jogo de cartas marcadas tal como aconteceu no Petrolão, seria muito fácil arranjar algum defeito subjetivo em uma proposta com pinta de ganhadora, para desclassificá-la sem sequer abrir a proposta comercial.

Jamais saberei o que aconteceu naquela época. De nada adiantou a consultoria de uma empresa alemã que já construíra usina similar a Angra 3, nenhum efeito deve ter causado aquela inacreditável massa de textos e desenhos produzida. Nem a dedicação integral de alguns dos mais brilhantes profissionais que tive a honra de conhecer, pertencentes ao quadro de engenheiros e técnicos da empresa. Nenhum peso teve a verdadeira fortuna gasta na proposta mais sofisticada já apresentada pela construtora.

Talvez nem fosse necessária a "tática diversionista" montada pelo "major". Fico matutando que a proposta da empresa onde trabalhei pode ter corrido mais risco depois de ter sido entregue do que no seu transporte de BH para o Rio. Naqueles dias em que os generais presidentes governavam, nossa proposta foi desclassificada, não sei se devido a problemas na documentação (o que eu duvido) ou, o que é quase certeza para mim, na proposta técnica, onde estava amarrado o cavalinho de tróia.

Com a desclassificação, a proposta comercial, tal como previsto no edital, não foi aberta (talvez nem fosse preciso, não é mesmo?). Dentre as empresas grandonas classificadas, a Andrade Gutierrez deve ter apresentado o menor preço. E foi declarada vencedora da licitação.


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