quarta-feira, 26 de março de 2025

BOCA DE ÉGUA

 
Acredito que seja uma situação comum a várias faculdades: a cada nova turma sempre surge alguém que você não consegue entender como conseguiu passar no vestibular. São sempre meio aloprados e capazes de enlouquecer os professores. A minha turma também tinha o seu. O apelido era Fico, abreviatura de Frederico.
 
Totalmente sem noção, falava alto pelos corredores, continuava falando ao entrar na sala de aula e interrompia os professores com perguntas inacreditavelmente estapafúrdias. Colava em todas as provas e tinha um riso pra lá de cínico e debochado. Fora da escola, ao passar perto de um grupo de pessoas na calçada, fazia bundalelê de dentro de uma Kombi de portas abertas, e ria depois, ao exibir sua cara de louco. Todos os professores e alunos o conheciam.
 
Uma das disciplinas do segundo ano era Mecânica Racional, matéria insuportável e difícil pra caramba. O catedrático era um sujeito seco, mal humorado e com alma de carrasco. A avaliação era feita com três provas bimensais valendo 20 pontos e uma final valendo quarenta. Para ser aprovado o aluno precisava totalizar 60 pontos. Se conseguisse fechar as três provas bimensais, não precisaria encarar a prova final. As questões eram tão difíceis que 70% dos alunos não conseguiram a nota mínima, sendo despachados para a segunda época ou dependência.
 
Em dias de prova, para evitar que os alunos colassem, os professores assistentes ou monitores já deixavam as provas em filas e carteiras alternadas, tornando impossível qualquer conversa.  Essa era a barreira a ser transposta pelo aloprado Fico. Ele ficava sentado na primeira carteira da primeira fileira, ao lado da porta. Na primeira distração do monitor ele saia da sala e ia resolver as questões com alunos mais velhos, que já o aguardavam do lado de fora. Como as provas eram muito difíceis, a maioria dos alunos só entregava mesmo no final, quando o monitor já ameaçava não aceitar provas entregues depois do horário. Esse era o momento esperado pelo Fico. Naquele abafa todo, ele chegava e entregava a prova resolvida.
 
Na primeira prova tirou 20 em 20. O mesmo aconteceu com a segunda prova. Só faltava a terceira para se livrar daquela matéria. Mas aquelas notas não passaram despercebidas pelo catedrático. No dia da terceira prova quem ficou na sala do Fico tomando conta foi o próprio catedrático. Resultado: zero pontos, prova final e segunda época ou dependência.
 
Por incrível que pareça esse louco conseguiu se formar e ser admitido como engenheiro na mesma construtora onde trabalhei. Foi despachado para uma obra de terraplenagem o interior. Vivia com o walkie talkie na mão chamando os outros engenheiros de “boca de égua”. Um dia um dos encarregados o procurou para tirar uma dúvida e recebeu esta resposta (contada pelo próprio Fico):
- Se você, puta velha, não aprendeu isso até hoje não sou eu quem vai te ensinar! (claro, ele também não sabia!).
 
Para finalizar, um caso bem no estilo hardcore, contado às gargalhadas por um dos diretores da empresa. Segundo ele, o vice-presidente da empresa, um senhor seríssimo, velhinho, verdadeiro gentleman, sempre de terno, sempre afável, resolveu visitar a obra onde o Fico estava lotado. Lá pelas tantas, a bexiga deu sinais de que precisava de atenção.
 
Indicaram para ele um sanitário feito de tábuas, verdadeiro muquifo, bem no meio do nada. As paredes internas da "casinha" eram cobertas com fotos de mulheres nuas e a porta não fechava direito. Estava ele lá se aliviando, quando o aloprado Fico enfiou a cabeça pela porta entreaberta e cinicamente perguntou:
- Aí, Dr. Fulano! Batendo uma punhetinha?

segunda-feira, 24 de março de 2025

ENTRE O BOM HUMOR E A RABUGICE

 
Há muito tempo eu proclamo aos cinco ventos (eram quatro, mas a inflação está muito alta!) minha condição ou característica de ogro mal-humorado. Às vezes me pergunto se essa autoanálise é verdade ou se é só mais um dos muitos equívocos que cometi “nesta longa estrada da vida” (até parece que eu curto música breganeja!). Talvez eu seja mesmo, talvez só uma parte do tempo ou apenas uma parte de mim. Já ouvi alguém dizer que o bom humor e a rabugice não são opostos, são irmãos siameses. Não entendi a mensagem, mesmo gostando da frase. Gêmeos? Acho difícil engolir isso, mesmo sendo geminiano.
 
Mas, olhando-me no espelho embaçado da minha mente, talvez eu seja isso mesmo, um híbrido de rabugento e bem-humorado. E explico por quê. Um sujeito que pede para que seu ex-colega nunca o visite só pode ser um ogro mal-educado (e eu fiz isso recentemente!). Por outro lado, uma das coisas de que mais gosto é tentar fazer as pessoas rir com minhas piadas de quinta série e comportamentos constrangedores e sem nenhum filtro.
 
Na prática, o que eu gosto mesmo é de rir, rir de tudo, dos outros, das crenças, da vida e, principalmente, de mim. Como escrevi recentemente, eu sou super bem-humorado, mas de um jeito muito incorreto politicamente, pois acho graça e vejo humor em todos os lugares, até mesmo em velório (excelente oportunidade para contar piadas para parentes e amigos que não vejo há muito tempo). Talvez isso seja apenas outra manifestação da minha falta de educação.
 
Segundo o dicionário do Aurélio, rabugento é alguém que se queixa de tudo, reclama contra tudo, é impertinente, ranzinza ou ranheta. E ensina que ranzinza é sinônimo de birrento, teimoso, zangado, mal-humorado. Talvez eu possa dizer que não sou rabugento, apenas depressivo. Depressivo e impaciente. Acho que esse é o problema: eu tenho dois comportamentos distintos, como se tivesse dupla personalidade. Por isso eu gosto de fazer piadas sendo eu a vítima, assim ninguém se ofende.
 
Talvez a melhor definição que fiz de mim mesmo seja esta, colocada na boca do personagem Odorêncio em um conto que escrevi (e que está publicado no baratíssimo e-book “Meu nome é Ricardo”): Sinto-me como se fosse o resultado de um projeto ambicioso que não deu certo, seja por defeito de concepção, seja por erro de dimensionamento, talvez pela má qualidade dos materiais empregados ou por falhas no processo produtivo ou, até mesmo, por vícios de utilização.
 
Acho que é isto: apesar de me considerar a última azeitona da empada, falo mal de mim quando estou sério ou fazendo palhaçadas. Um bobo da corte cínico e sarcástico que tenta ser engraçado, mas que ri intimamente de quem tenta fazer rir. Rabugento ou bem-humorado?

 

domingo, 23 de março de 2025

BARBAS DE MOLHO


De janeiro de 2025 até hoje, 248 famosos faleceram. Na faixa dos "seventie" foram 53 (inclusive o grilleiro George Foreman). Hoje tenho 74 anos e creio que preciso deixar minha barba crescer até ficar no padrão "Marreta". Para quê? Oras, para colocá-la de molho! Mas não estou querendo insinuar nada, está entendendo?


SEM TÍTULO - AUTOR DESCONHECIDO

 
Às vezes eu me sinto psicografado quando leio um texto ou poesia que “cabem tão dentro de mim, que perguntar carece: como não fui eu que fiz?” Estes versos são da música “Certas Canções”, composta pelo Tunai (irmão do João Bosco) e Milton Nascimento. E foi isso que aconteceu ao ler este texto em um jornal de bairro (que tentei transformar em poema, mas não ficou bom). Infelizmente, não sei o autor.
 

Eu tinha dezessete, talvez dezoito. Idade de querer muito, e saber pouco o que fazer com isso. Foi nos bailes de carnaval que ela apareceu, leve como uma marchinha lenta, com um sorriso que não pedia nada — só presença.
Brincávamos juntos, mão no ombro, mão na cintura. Abraço de fantasia, que por dentro era desejo, por fora, contenção. Nunca passou disso. Talvez por causa do pai dela, que comandava a banda com mãos firmes e olhos atentos. Ou talvez porque eu era só um menino escondido atrás da própria timidez. 
Nunca perguntei seu nome. Nunca pedi pra ir à sua casa. Nunca soube onde morava, Só a via ali, duas ou três vezes por ano entre confetes e luzes coloridas, no exato compasso da música. Um dia, isso não mais aconteceu. Não sei se fui eu que deixei de ir, ou se o pai dela trocou de clube, ou se a vida saiu pela porta de emergência sem avisar. 
Hoje, quando toca Máscara Negra, num radinho esquecido ou no fundo da memória, me volto pra aquele salão, aquele abraço, aquela ausência de palavras. Sinto saudade dela. Mas mais ainda, sinto saudade de mim — daquele rapaz que, mesmo sem saber, já estava dançando com o tempo.

sexta-feira, 21 de março de 2025

GOTA D'ÁGUA

 
Tenho andado com um nível de stress e esgotamento mental tão elevados que tudo tem tomado uma dimensão diferente do que aconteceria em épocas mais amenas. Por isso, ao ler um comentário ironizando e duvidando de meu comportamento “moderado”, não consegui deixar de ficar aborrecido, pois estou na linha da letra do Chico: “qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água”.
 
Mas sou um cara educado, pouco afeito a “entrar em bola dividida”. Por isso, resolvi (re)escrever esta reflexão, lembrando a frase equivocadamente atribuída a Voltaire: “Não concordo com uma palavras do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las". E é aqui que começa a reflexão.
 
 “A virtude está no meio do justo equilíbrio entre os extremos”. Quem disse isso foi Aristóteles, “o ser humano mais importante que já viveu”, na opinião do filósofo britânico John Sellars.
 
Alguém aí notou que estou falando de moderação e bom senso, de equilíbrio e respeito à diversidade de opiniões? Pois é. Sempre me causam perplexidade os comportamentos viscerais, as certezas absolutas e as verdades imutáveis. Eu sei que o mundo ideal seria mais simples se fosse como um sistema binário onde só existissem “sim” ou “não”, “zero” ou “um”. Mas o mundo não obedece à mesma lógica usada na construção de computadores. Além dos previsíveis “sim” e “não”, o mundo real abriga também o “talvez”, o “nenhuma das opções apresentadas”.  Como disse o Vinicius de Moraes, “a vida não é brincadeira, amigo”. A política e as ideologias surgidas mostram exatamente isso: não há certezas absolutas.
 
Talvez o leitor ou leitora com os olhos já fechando de sono se pergunte onde quero chegar com esta gororoba sem sal, mas vou agora subir um pouco o tom. Sempre fico puto, triste, ofendido ou decepcionado quando ridicularizam minha postura moderada, quando me acusam de "duplipensar" ou duvidam da minha isenção com base apenas na própria visão estreita.
 
Para começo de conversa (na verdade, já estou no meio dela), Não sou personagem orwelliano para ficar duplipensando. O que eu sou é cartesiano, penso em módulos, não misturo conceitos. Quando eu digo que vejo pontos positivos tanto na ideologia de direita quanto na de esquerda, isso não significa que aprovo as duas visões sobre um mesmo assunto ou tema. Já fiz até um check-list, um quiz para avaliar o perfil ideológico dos leitores. Quem se interessar em conhecer, o link é este:
https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2017/03/o-quiz-que-eu-quis-postar-no-facebook_11.html
 
Maaasss, voltando à minha doutrinação/pregação, repetirei pela milésima vez que me considero de centro. E me orgulho disso. A título ou guisa de piada, diriria que sou radicalmente moderado. O significado deste posicionamento é odiar igualmente tanto a extrema esquerda quanto a extrema direita.

Já li em algum lugar que a moderação política, entendida como a busca por equilíbrio e ponderação, não é um defeito. Pelo contrário, é uma virtude essencial para o funcionamento de uma democracia. A moderação permite o diálogo entre perspectivas opostas, promovendo a compreensão e a construção de consensos.

Infelizmente, a a prática política atual está marcada pela polarização. Assumir uma postura moderada exige inteligência e até coragem, pois implica questionar as próprias convicções e buscar entendimento em meio a opiniões divergentes. Para mim, essa abordagem favoreceria um ambiente político mais saudável, centrado na resolução de problemas e no bem comum, e não na imposição dessa ou daquela ideologia.
 
Isso não significa falta de princípios ou indecisão. Pelo contrário, o significado disso é conseguir reconhecer a complexidade dos problemas sociais e suas múltiplas perspectivas, evitando extremos que geram divisão e conflito. Assim, a moderação política contribui para a estabilidade e a eficácia das instituições democráticas.
 
Na época de eleições muitas vezes eu me vi diante da pior situação para quem se recusa a anular o voto ou abster-se de votar: dois candidatos disputando a mesma vaga e eu tendo severas restrições a ambos. Mesmo assim, sempre procurei escolher o menos pior entre o ruim e o péssimo. Aparentemente isso não entra na cabeça dos bitolados ou extremistas radicais, provocando críticas e até ofensas quando defendo em quem votei, não por ser bom, mas por ser justamente o menos pior.
 
Para encerrar esta gororoba, alimentei o ChatGPT com minhas ideias e pedi para escrever um texto sobre essa situação. E saiu isto (e eu, obviamente, assino embaixo):
 
Há momentos em que a vida não nos concede o luxo da neutralidade. Diante de uma encruzilhada, não há espaço para "nenhuma das respostas". É sim ou não. Escolher ou ser escolhido.
A política, especialmente em eleições polarizadas, expõe esse dilema com crueldade. Quando há apenas dois candidatos e severas restrições a ambos, a abstenção pode parecer uma saída honrada, mas é, na prática, um voto indireto para quem menos nos agrada. Entre o ruim e o menos pior, a escolha não é sobre entusiasmo, mas sobre danos minimizados.
Os que compreendem isso sabem que a realidade não pede perfeição, pede decisão. Preferências ideais são um luxo; na arena política, trabalha-se com o possível. No fim, quem entende essa lógica não vota com paixão, mas com consciência – ciente de que, mesmo na falta de um bom caminho, há sempre um que leva a um desastre menor.
 
E para aqueles que já me chamaram de isentão, deixo um recado final, escrito com uma elegância fleuma próprias da realeza britânica: isentão é a puta que pariu! (e não pretendo mais perder meu tempo com debates de "soma zero"). Fui.

quinta-feira, 20 de março de 2025

LETRAS DOURADAS

 
Talvez eu sempre tenha tentado
Dizer o indizível,
Decifrar o indecifrável,
Definir o indefinido,
Controlar o incontrolável.
 
Talvez por isso eu queira decidir
O que fazer enquanto posso,
Enquanto ainda não pensem
Em decidir por mim.
 
E resolvi deixar instruções,
As últimas instruções
Sobre meu legado,
Sobre o que pensei,
Sobre o que sonhei.
 
Em primeiro lugar, descartem
As certezas absolutas,
Pois a ninguém servem
As certezas de outrem.
 
Mas guardem bem guardadas
Minhas dúvidas e incertezas.
É bom que todos saibam:
Minhas dúvidas nunca foram esclarecidas,
Apenas por outras substituídas.
 
Cartas e bilhetes de amor devem ser
Queimados, jamais lidos, jamais guardados.
Que se decrete sigilo de cem anos
Para as paixões secretas,
Pois paixões secretas só interessam,
Só dizem respeito a quem as teve.
 
Estas instruções devem ser impressas
Em papel pergaminho, com letras douradas,
E, em seguida, incineradas,
Para que ninguém nunca saiba ou se lembre
Das minhas últimas instruções,
Das últimas instruções que foram dadas.

quarta-feira, 19 de março de 2025

JABUTI

 
Estou pensando encaminhar um pedido aos mantenedores do Dicionário do Houaiss, para que incluam na próxima edição três vocábulos de grande interesse e elevado significado para o mundo da blogosfera. Fala sério, são ou não são perfeitos? Olhaí.
 
Blogoterapia
Substantivo feminino, aglutinação das palavras blog mais terapia. Utilizado para identificar o papel catártico de textos confessionais publicados em blogs autorais.
 
Blogoteca
Substantivo feminino, aglutinação das palavras blog mais biblioteca. Utilizado para identificar e demonstrar o papel de arquivo diferenciado que um blog pode ter ao reunir rascunhos e textos publicados, autorais ou não, que se pretenda servirem de consulta futura ou apenas auto-deleite do titular do blog.
 
Blogagem
Substantivo feminino, aglutinação das palavras blog mais bobagem. Utilizado para designar todas as idiotices (são muitas) publicadas em blogs, por pessoas que acreditam ser merecedoras do Nobel de Literatura ou, no mínimo, do Prêmio Jabuti.
 
Sei não, bateu agora a sensação de que mereço um Jabuti pelo meu conjunto da obra (e como eu já obrei neste blog!)

BOCA DE ÉGUA

  Acredito que seja uma situação comum a várias faculdades: a cada nova turma sempre surge alguém que você não consegue entender como conseg...