Este texto encerra o livro que nasceu da
garimpagem minuciosa de 5.142
textos e frases produzidas por Millôr Fernandes ao longo de
toda a sua vida – materiais espalhados por inúmeros veículos de comunicação e
agora reunidos sob o título Millôr
definitivo: a bíblia do caos.
Trata-se de um texto profundamente desencantado,
livre de ilusões,
e, ao mesmo tempo, desconcertantemente
sincero. Justamente por isso, por sua força e honestidade
crua, resolvi reproduzi-lo na íntegra aqui no blog.
O livro
Todo homem é minha caça, nome inspirado num poema do inglês Pope, mostra minha
profunda descrença no ser humano – que eu sou. E olhem que jamais procurei um
homem perfeito. Nunca tive admiração pelo “If”, de Kipling – poema fascistóide
em que o genial propagandista do Império Britânico esculpe um homem de mármore,
com “qualidades” que fariam desse ser, se existente, um chato perfeito. E não
me espanta que Alekos Panagulis, o Homem de Oriana Fallaci, o super-herói dessa
mulher em geral tão dura, fosse um admirador exatamente do “If”. Tinha esse
poema enquadrado, como qualquer executivo (vi, através da vida, inúmeras cópias
emolduradas em escritórios de luxo) mediocremente mercantil. Heróis nunca me
iludiram. Quando caço o homem, como Nemrod na Bíblia, e procuro alvejar
individualmente o mesquinho, o covarde, o safado, o hipócrita, o corrupto, o
incompetente e, coletivamente, a medicina, a política, a psicanálise, o
jornalismo, o economismo, com suas pretensões, falhas, fraquezas, egoísmos e
sandices (que são as minhas, eu nunca esqueço; só que eu nunca esqueço; a maior
parte das pessoas nem se lembra) não estou preocupado com essas falhas e
defeitos insanáveis, mas com o inevitável fim a que isso leva – a desumanidade
do homem para com o homem. Mas, ai!, não resta alternativa – nada me interessa
mais do que o ser humano. A partir de um certo momento da vida minha maior
diversão passou a ser conversar longa, lenta, interessadamente, com alguém. Mas
uma pessoa só. Quantas vezes, na calma do meu estúdio, atravesso a tarde e
penetro pela noite, falando a alguém que veio me procurar. Interrompo o
trabalho mais premente – a princípio aborrecido com a intromissão – e de
repente me vejo profundamente ligado a uma pessoa que nunca vi, num
psicanalismo bifronte e gratuito (o único válido; o unilateral e com guichê na
porta é uma contrafação) arte pela arte no seu melhor momento. E, vejam bem,
essas conversas são, indiferentemente – honni soit qui mal y pense – com homem
ou mulher, jovens ou velhos. Daí vem muito o meu conhecimento do outro lado, a
certeza de que ninguém quer ser mesmo torturador, todo mundo gostaria de ser
generoso, não há quem não tenha uma justificativa absolutamente correta pro seu
erro, seu mau caratismo, seu péssimo humor, sua violência. Mas as justificativas
não eliminam o fato de que todos nós só queremos a nós mesmos; o irmão que se
rompa. Mesmo o mais humilde, o “sacerdote” mais “santo”, a sua vanglória o arrasta,
pelo menos, a querer ser “o mais humilde do ano”. Estão aí Dom Hélder e Madre Teresa
de Calcutá que não me deixam mentir. Humildes, sim, mas que ninguém duvide
disso! Mesmo o herói indubitável, aquele que tirou alguém do incêndio – e
quantas vezes me digo: “Bem, aí está um entre as chamas, aí está a salvação”, –
quando o conheço melhor, descubro que é, na vida diária, usurário de pequenos
empréstimos ou mercador de remédios falsificados. É só ler uma enciclopédia com
olhos abertos para ver que não houve exceção – todos os “libertadores” foram
posteriores tiranos, quase sempre “Salvadores Perpétuos” da pátria a ferro e
fogo (e muito pau- de arara); as sociedades filantrópicas se transformaram
sempre, quando já não eram assim em intenção, em fontes de suborno e
locupletação; as ideologias, feitas em nome do homem, logo servem à glorificação
e/ou gozo material de ideólogos, e a consequente exploração da coletividade.
Humorismo é a visão cética no seu mais profundo sentido. Redentora. Aquela que
nos permite, honestamente, variar sobre a imagem cansada e repetir: “O homem
está nu!“ É a única que vê o herói César depilando seu corpo para – cito
Suetônio – ser “O homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens”, e
não o herói shakespeareano. Que vê Napoleão sabendo se proteger muito bem nos
campos de batalha porque, naturalmente, isso importava muito mais para a glória
da França do que qualquer preocupação com (outras) vidas humanas. Que vê Baden
Powell, o do escotismo, produzindo um “heroico” extermínio de negros na guerra
dos Boers. Que vê todos os grandes experts em pintura da Europa depondo num
tribunal holandês contra o pintor falsário Van Meegerem – aqueles mesmos que,
durante anos, impuseram aos europeus as falsificações dele como peças
autênticas – até que ele desmascarasse tudo e todos, falsificando um quadro
diante de seus próprios juízes. Que sabe que os grandes negócios escusos (há
outros?) internacionais são feitos em camas milionárias, resolvidos em iates de
luxo, decididos em banquetes filantrópicos, planejados em todos os lugares
dourados do mundo. É aí que, impunemente, se decide a morte de milhões de
miseráveis que jamais saberão que sua fome e sua degradação foram negociadas a
milhares de quilômetros de distância, num Méditerranée ensolarado. Só a
descrença total pode trazer alguma solução. Só o ceticismo integral pode começar
a produzir um mínimo de verdade, criar um sentimento de maior aproximação com o
outro ser humano assim mesmo como ele é; quer dizer, a partir do conhecimento
de sua crapulice, de sua mentira, de sua quase-absoluta incapacidade de
corresponder. Só a aceitação desse ser centralizado definitivamente em seu
próprio umbigo (religiões e ideologias, uma tentativa comercial de apresentá-lo
de maneira diversa, só têm feito criar monstros sagrados, cada vez maiores à
medida que as populações aumentam e, com elas, os recursos da tecnologia da
comunicação) pode nos conduzir a um suportável convívio. Por mim, acho que já
aprendi a conhecer o ser humano que sou eu mesmo, meu irmão homem. Já sei até
seu nome – Caim. Não adianta toda a minha racionalização, não adianta eu olhar
no olho de todo e qualquer interlocutor e saber que cada palavra dele – um
imenso código sempre mais complicado – não corresponde a nada do que ele é. O
sentido de humor, que me faz ver sempre falho – porque a mim não me vejo de
outro modo – me mostra toda a complexidade das relações humanas como uma coisa
extraordinariamente engraçada, mesmo quando dramática, mesmo quando odiosa,
mesmo quando mesquinha. Pois fora do ser humano a vida não tem enredo. Fora do
ser humano não há salvação. Não resisto a um ser humano