quinta-feira, 26 de junho de 2025

SPOILER DE ENVELHECIMENTO

No início deste mês completei 75 anos de idade, setenta e cinco anos! Duvido que existam blogueiros mais velhos que eu. Por isso, para “ensinar” a meninada mais jovem, aí na casa dos sessentinha ou menos, resolvi dar um spoiler de como provavelmente estarão quando atingirem a minha idade atual. E quis fazer isso agora, porque já terei virado poeira de estrelas (stardust) quando estiverem ouvindo alguém cantar que vai comer seu bolo.

Talvez minhas "aulas" sejam um segredo de Polichinelo, mas o fato real é que velhice chega como quem não foi convidada e, mesmo assim, age como dona da casa. E o mais curioso é que ela se instala sem avisar, em silêncio, insidiosamente, como um ladrão que invade uma residência que alguém se esqueceu de trancar.

Nessa fase meu corpo lembraria uma indústria dividida em vários departamentos ou seções, mas mal administrada e deficitária: o almoxarifado não tem peças de reposição, o setor de manutenção foi sucateado. O setor de transporte geralmente anda mal das pernas, o que é literalmente verdade, pois os joelhos guincham e choram – cantando fados tristes a cada tentativa de agachar. O setor de geração de energia usa e abusa de combustível de baixa qualidade – meu abdômen, volumoso, revela anos de alimentação descuidada, aliada a uma ansiedade congênita que me faz assaltar a geladeira e potes de biscoito durante a madrugada.

A visão embaça lentamente, graças a uma catarata que ainda não foi operada, como se o mundo também cansasse de ser visto. E por falar em sensação de cansaço, ela é companheira constante, assim como o desânimo e a vontade de nada fazer. Esse quadro é – ou deveria ser – preocupante, não fosse uma insólita sensação de imortalidade – sentida na juventude, mas injustificável na velhice.

Mas a mudança mais estranha acontece no cérebro, que funciona como uma agência de publicidade e marketing, estruturada para atender todo tipo de público, pois nem tudo envelhece de forma igual ao mesmo tempo. A curiosidade continua infantil, um pouco na pegada do George Bernard Shaw quando disse que “alguns homens veem as coisas como elas são e dizem por que, eu sonho coisas que nunca existiram e digo, por que não?”

Mesmo embaralhado com outros sentimentos, o senso de humor continua a existir e lembra o de um  adolescente despreocupado. Mas o que mais me espanta é continuar a olhar a vida, o mundo, as pessoas com os mesmos olhos de quando tinha vinte ou trinta anos. E essa maneira de olhar, a visão atraída por corpos jovens, de pele hígida e formas sedutoras, ainda desperta em mim desejos de um homem de trinta — embora tudo permaneça platônico, apenas no território exclusivo da mente.

Resumindo a gororoba, a velhice inapelável se instala, mas sem um espelho à frente que nos mostre a verdade, a mente reage como se as idades já vividas pudessem ser revividas. Alguém disse uma frase muito boa que utilizo para fechar este spoiler de envelhecimento: “Envelhecer, no fundo, é esse embate entre a esperança e o espelho. E o espelho, ingrato, nunca mente”. E sempre vence.

terça-feira, 24 de junho de 2025

ISTO É LÁ COM SANTO ANTÔNIO

Quando eu era criança os compositores brasileiros de sucesso ainda não tinham problema nenhum para ver gravadas músicas compostas especificamente para essa ou aquela datas festivas Assim, foram lançadas marchinhas de carnaval, músicas para o Dia das Mães, Natal (não tanto quanto nos EUA) e para festas juninas. O lançamento era feito com a necessária antecedência para que pudessem ser aprendidas e cantadas nas datas certas. As músicas de carnaval certamente foram as mais numerosas, mas as inspiradas nas festas juninas também fizeram sucesso.
 
A de que eu mais gosto foi composta por Lamartine Babo, um compositor e letrista inspirado, autor de mais de 400 composições, incluindo sambas, valsas, marchinhas, fox-trotes, marchas-ranchos, canções para festas juninas e Natal, e hinos de diversos times de futebol cariocas. E é a letra de uma dessas músicas que resolvi publicar aqui neste blog jurássico para celebrar esses festejos tão caros a tantas pessoas e comunidades. No final, se alguém se interessar em ouvi-la em uma gravação de 1934, basta clicar no link.
 
ISTO É LÁ COM SANTO ANTÔNIO
Eu pedi numa oração
Ao querido São João
Que me desse um matrimônio
São João disse que não!
São João disse que não!
Isto é lá com Santo Antônio!
 
Eu pedi numa oração
Ao querido São João
Que me desse um matrimônio
Matrimônio! Matrimônio!
Isto é lá com Santo Antônio!
 
Implorei a São João
Desse ao menos um cartão
Que eu levava a Santo Antônio
São João ficou zangado
São João só dá cartão
Com direito a batizado
 
Implorei a São João
Desse ao menos um cartão
Que eu levava a Santo Antônio
Matrimônio! Matrimônio!
Isso é lá com Santo Antônio!
 
São João não me atendendo
A São Pedro fui correndo
Nos portões do paraíso
Disse o velho num sorriso
Minha gente, eu sou chaveiro
Nunca fui casamenteiro!
 
São João não me atendendo
A São Pedro fui correndo
Nos portões do paraíso
Matrimônio! Matrimônio!
Isso é lá com Santo Antônio!

 

domingo, 22 de junho de 2025

MR. STRANGE LOVE

 - Você viu o que o Donald fez?

- Quem, o Pato?

- Não o puto. O tramp ordenou o bombardeio de instalações nucleares no Irã!

- E por que ele fez isso?

- Bom, ele é aliado de Israel, que está em guerra com o país dos aiatolás.

- Eu, se fosse ele, transformava Israel no quinquagésimo primeiro estado norte-americano.

- Ficou doido?

- Olha só: primeiro pegaram o Havaí, depois anexaram Porto Rico como uma espécie de protetorado americano.

- E agora o tramp quis transformar o Canadá em mais um estado americano!

- Então? Nada mais natural que transformar Israel no 51º estado norte-americano!

- Eu acho que é mais fácil Israel anexar os Estados Unidos!

- Só se os americanos fizerem um desconto bom.

- Eitcha!


Dr. Strangelove é um filme de 1964, uma comédia de humor negro em que um general americano enlouquece e tenta começar uma guerra nuclear com a União Soviética.  A cena final do filme é hilária, mas não vou dar spoiler. Quem quiser que corra atrás. O título completo desse clássico já diz tudo: “Dr. Strangelove ou: Como Aprendi a Parar de Me Preocupar e Amar a Bomba”

 

COM A ALMA LEVE

 
Já disse mil vezes que sou monoglota, que só sei falar português. Talvez por isso – ou apesar disso – sou literalmente fascinado pelo som de outras línguas, chegando até a identificar a sonoridade dos vários sotaques (mesmo sem saber de onde vêm) da língua inglesa. Mas nunca disse sentir-me atraído pelo vocabulário pouco conhecido que a língua portuguesa pode apresentar em outros países lusófonos.
 
E ontem tive a alegria de ver seu emprego em um texto alegre e delicado que li no blog “Alma Leve!” da blogueira Daniela Silva, uma jovem nascida em Vila Nova de Gaia, Portugal. Achei uma delícia ler seu texto sobre a festa de São João na cidade do Porto. Além do texto agradabilíssimo, fiquei babando de alegria ao ler palavras não utilizadas no Brasil. Algumas, pela semelhança com palavras aqui utilizadas. Mas duas literalmente me derrubaram. Para tentar entender seu significado, tive de recorrer à mãe dos muito burros. E o que a internet me devolveu eu compartilho agora com os leitores e leitoras d'aquém mar, esse pessoal que acessa o Blogson Crusoe até quando está na praia do Arpoador (sonha, Jotabê!)
 
E Gemini, a IA do Google, sabichona que só ela, foi traduzindo para mim, explicando que “Essas palavras são muito comuns em festas populares de Portugal, especialmente nas festas dos Santos Populares (como as de Santo António em Lisboa, São João no Porto e São Pedro em várias outras localidades”). E começou a aula:
 
- Bailaricos – São bailes populares, geralmente ao ar livre e com música tradicional portuguesa. As pessoas dançam, principalmente músicas de arraial e folclóricas.
- Bombos – São tambores grandes usados em festas populares. Os grupos de bombos animam as ruas com batidas fortes e ritmadas, geralmente durante as procissões ou desfiles.
- Grelhador – Grelha ou churrasqueira. É o utensílio onde se assam as febras, sardinhas, pimentos, etc., durante os arraiais.
- Manjerico – É uma planta aromática (uma variedade de manjericão) típica das festas de Santo António. Em Portugal, é tradição oferecer manjericos com um cravo de papel e uma quadra popular (um pequeno poema). Representa amor e sorte.
- Pimentos – Pimentões (no português do Brasil). Costumam ser assados junto com as febras ou sardinhas e fazem parte da refeição típica das festas.
 
Até aí estava tudo bem, mas “Febras” e “Rolotes” foram demais para mim. Se fosse mais novo já pensaria em alguma safadeza envolvendo o uso de "rolotes", mas a puritana IA me colocou nos trilhos novamente, ao explicar que 
“Rolotes” são trailers ou carrinhos de comida (food trucks, digamos), comuns em festas e eventos, que “vendem desde ‘farturas’(?) até ‘bifanas’(???), passando por bebidas e doces” e que “Febras” são fatias de carne de porco (geralmente lombo) temperadas e grelhadas. Muito populares nas festas, servidas no pão ou no prato.
 
Fiquei pensando que se visitasse Portugal durante uma dessas festas ficaria igual ao ET de Spielberg apontando o dedo luminoso para as iguarias à venda e dizendo apenas “SSS”, “SSS”.
 

sábado, 21 de junho de 2025

DELÍRIOS E PESADELOS

 
Tenho tido muitos pesadelos ultimamente – pesadelos que me fazem acordar triste, deprimido. E o pior é que guardam uma semelhança muito grande entre si. Sempre trazem a sensação  de abandono, censura, de rejeição. Os ambientes não correspondem a nenhum lugar que conheci, são mal iluminados e há poucos móveis, como se estivessem sendo desocupados.

Às vezes, sonho que volto, ou tento voltar, para a empresa onde trabalhei durante quatorze anos e onde fui mais feliz – e da qual saí no meio de um processo trabalhista, quando ela já estava pré-concordatária. Hoje, essa empresa não existe mais, mas mesmo sem nunca mais ter tido contato com nenhum deles, me sinto censurado, ignorado pelos colegas que nela permaneceram até o naufrágio definitivo.
 
Mas, nesta madrugada, o pesadelo foi diferente. Sinceramente, foi tão louco que eu tenho dúvida se era apenas um sonho/pesadelo "normal" ou se estava interferindo no "enredo". Começou com contornos bíblicos e depois ganhou o formato de um roteiro de filme de terror. Confesso que não sei onde terminou o pesadelo – iniciado ainda sob sono profundo – e onde começou o delírio meio alucinógeno em que ele se transformou, a ponto de me fazer querer interferir no diálogo iniciado quando o Criador, depois de chamar o anjo exterminador, começa a desabafar:
 
– Não aguento mais a maldade dos homens! Devia ter deixado que essa gentinha se afogasse no Dilúvio – ia sobrar até para o Noé e sua família!
– Mas, Senhor... fostes Vós mesmo que os criastes!
– Não te pedi opinião! Mandei te chamar para acabar com os maus.
– Não seria melhor acabar com a maldade humana?
– Não! Se fosse isso, teria que extinguir toda a humanidade.
– É verdade... Seria um trabalhão – com o perdão da má palavra – dos diabos. Além disso, não haveria espadas de fogo suficientes.
– Pois é. Mas me lembrei da Revolução Francesa, quando milhares de pessoas foram guilhotinadas. Acho que a guilhotina é um bom instrumento para acabar com a nobreza da maldade e do crime.
– E quando posso começar?
– Já. Mas vamos definir uma ordem: primeiro os reis do tráfico, depois os príncipes da corrupção, os duques do feminicídio, os marqueses da pedofilia e, por fim, os condes e barões da mentira, da maldade e da crueldade humanas.
– Boa!
 
Mas um silêncio ensurdecedor se instalou. E eu me dei conta de que estava acordando. Aquilo tinha sido só um sonho – ou um pesadelo lisérgico. Pensei que aquele diálogo poderia servir como um bom rascunho para um filme apocalíptico. Virei-me de lado tentando dormir de novo, pois ainda eram duas da manhã. Mas tive a certeza de que um filme assim não faria sucesso – e ainda receberia muitas críticas, até mesmo de algum “nobre” que tivesse vestido o barrete (ou a carapuça).
 
Ao voltar a dormir, surgiu outro pesadelo, tão recorrente quanto o primeiro: nele, eu me via ainda trabalhando na empresa onde me aposentei – depois de onze longos e odiosos anos. A sensação era parecida: sentia-me ignorado, veladamente censurado e rejeitado pelos ex-colegas de quem não gostava – e eu não gostava de quase ninguém. Ao acordar, numa mistura de alívio e raiva, disse para mim mesmo:
– Eu não trabalho mais nessa merda!
Mas o gosto amargo – que algum gaiato definiu como “gosto de fundo de gaiola” ou “de cabo de guarda-chuva” – permaneceu na boca. Já era hora de levantar.
 

sexta-feira, 20 de junho de 2025

DIFÍCIL, MUITO DIFÍCIL!

  
Em outubro de 2013 um bando de ativistas de uma tal “Frente de Libertação Animal” invadiu um instituto de pesquisas para “libertar” uma penca de cães da raça beagle que eram usados como cobaias (com isso, inviabilizaram as pesquisas que estavam em andamento). A notícia me deixou tão boquiaberto que achei que merecia uma charge ironizando esse comportamento fundamentalista e radical. Infelizmente, o ChatGPT não existia ainda naquela época. Contentei-me então em descrever a charge imaginada no post “Let It Beagles” (eu gostava de trocadilhos).
 
Lembrando-me disso, resolvi pedir a essa IA para gerar uma imagem da piada antiga, só pelo prazer de ver o resultado. Para isso, dei a seguinte instrução:
 
Faça um desenho caricato no estilo da HQ “Calvin and Hobes”, em preto e branco, com esta situação: o cenário mostra um túmulo meio escavado e uma lápide tombada ao lado, onde está escrito John Lennon (também pode ser George Harrison). Dentro do buraco, segurando o cabo de uma pá, encontra-se um sujeito de meia idade muito magro, meio calvo e com a barba por fazer. Olha com cara apalermada para outro sujeito do lado de fora do buraco, que está enfurecido. O balão do homem com raiva traz esta frase:
 EU TE FALEI PARA LIBERTAR OS BEAGLES!!!!!!!!!
 
A imagem foi gerada, mas nunca deveria ter mencionado a deliciosa dupla Calvin e Haroldo, pois o homem enfurecido com a atitude do ativista retardado virou o Calvin. Ocevê!
 
Corrigi o texto e tentei mais uma vez, mas o resultado ficou pior, sem a ingenuidade de traços do primeiro. Não vou incluir nenhum desses desenhos no post antigo, mas fica o registro gráfico da piada imaginada. Ô coisa difícil! Olhaí.






quinta-feira, 19 de junho de 2025

SÍNDROME DE CARÊNCIA DE PROTAGONISMO – MARCELO DUARTE LINS

 A pessoa mais culta que conheço pessoalmente foi diretor do colégio onde minha mulher lecionou. Simpaticíssimo e dono de um sorriso cativante, é sempre convidado para reuniões de ex-alunos desse colégio. Sabe o nome e demonstra genuína amizade por cada um deles.
 
Anos atrás, depois de ser apresentado a ele, dizia que ele era meu melhor – ou mais caro – inimigo, porque a saída da meninada acontecia exatamente em frente à minha casa, com todos os previsíveis inconvenientes que isso provocava: ovos explodidos no nosso portão, farinha de trigo espalhada no passeio, correria, gritaria e todo tipo de traquinagem que adolescentes fazem na saída das aulas.
 
Um dia o colégio fechou e deixei de encontrar meu “inimigo” com a frequência anterior. Mas o sentimento de amizade que tenho por ele permaneceu. E um dia nos tornamos “amigos de facebook”.
 
Mesmo que à distância, isso permitiu um estreitamento do contato, pois sempre publica seus poemas e textos de terceiros que fogem à banalidade tão comum nessa rede.
 
Hoje, já com mais de 80 anos, publicou um texto que sintetiza – ou simboliza – sua vida e a de todos que envelheceram e se aposentaram (lembraram de algum blogueiro?). Espero que gostem.


Um dia você é chamado de “doutor”, “comandante” ou seja lá qual for o título de autoridade civil ou militar.
No outro, é só o seu Fulano da caminhada matinal, a dona Cicrana do pilates das nove, a voz que o neto chama para ajeitar o Wi-Fi.
E tudo bem.
Durante anos — décadas, talvez — você construiu, decidiu, liderou.
Resolveu problemas que pareciam montanhas.
Carregou a casa, a empresa, o Estado — o mundo, quem sabe — nas costas.
Teve horário, metas, gente que dependia de você.
Chamavam, você respondia. Ordenava, e o mundo obedecia. Ou quase.
Mas enquanto o mundo obedecia, havia um outro mundo que crescia — e que, muitas vezes, você mal viu crescer.
Filhos que aprenderam a andar, falar, sofrer e se virar sem você.
No fundo, você prometia a si mesmo que um dia compensaria o tempo.
Esse dia chegou. E, para sua surpresa, não é mais com os filhos — é com os netos.
Agora, o crachá foi entregue, o e-mail corporativo desativado, a agenda virou um caderno de aniversários e exames de rotina.
Um clique silencioso no botão “sair”.
E então começa o verdadeiro login: o da vida que existia por trás da função.
No início, é estranho.
Acordar sem pressa.
Almoçar sem o celular à mesa.
Não precisar provar nada a ninguém.
Parece perda.
Mas, com o tempo, a gente descobre que é ganho.
É quando o ego — aquele bicho barulhento e faminto — finalmente vai dormir mais cedo.
As vaidades começam a se despentear.
E o poder, coitado, vira uma piada interna entre lembranças e ironias.
Há uma liberdade secreta — e quase sagrada — em deixar de ser importante.
Depois que os holofotes se apagam e as salas esvaziam, sobra um silêncio que assusta no início, mas logo revela algo raro: a chance de ser inteiro sem precisar ser centro.
É nesse intervalo entre a grandeza e o anonimato que mora uma liberdade que poucos aceitam — a de não precisar provar mais nada.
Ser ex-presidente, ex-artista da moda, ex-chefe temido ou ex-qualquer-coisa relevante exige mais do que currículo.
Exige maturidade para suportar o eco do próprio nome dito cada vez menos.
Há quem aceite essa travessia com dignidade, transformando passado em legado e presente em sossego.
E há quem se agarre a qualquer manchete, a qualquer aplauso residual, como quem se recusa a apagar as luzes do palco mesmo quando a plateia já foi embora.
Que a vida pregressa sirva de boas lembranças, orgulho e referências — não de prisão.
Viver de glórias passadas é confortável, mas perigoso.
Morar no passado é correr o risco de se tornar o próprio fantasma do metrô no filme Ghost — aquela alma inquieta, presa entre estações, que assombra os outros no vagão porque não consegue aceitar que o tempo passou.
Há dignidade em reconhecer a importância que se teve.
Mas há ainda mais liberdade em não precisar provar isso o tempo todo.
Nesse novo tempo, surgem outras rotinas: o café sem pressa, a leitura sem prazo, a escuta sem interrupção.
Aparece uma nova importância — mais discreta, mas muito mais verdadeira.
Porque já não importa o que você faz.
Importa quem você é.
Agora, você é o dono do cachorro Weiss e da gata Menina Chanel.
E as pessoas da praça nem sabem seu nome — quanto mais o que você já foi.
E não faz falta.
As ilusões do “ser alguém na vida” se dissolvem como espuma.
E o que sobra é a essência:
O prazer de uma conversa boa.
A alegria de ensinar sem cobrar.
O tempo de ouvir mais do que falar.
A leveza de não ser mais “necessário” — e descobrir que isso é liberdade, não desprezo.
Talvez o que antes era ausência agora vire presença.
A pressa que te levou embora dos aniversários dos filhos cede lugar à calma de montar quebra-cabeças com os netos.
O conselho que você não deu aos 17, você agora sussurra aos 7 — com voz mais mansa, com menos urgência, com mais amor.
Os netos não são só a continuação da linhagem: são a chance de acertar com mais ternura onde antes só houve esforço e intenção.
A verdadeira grandeza talvez esteja em saber sair de cena. E permanecer inteiro.
Quem já foi importante, se souber deixar de ser, talvez descubra que o anonimato é só outra forma de liberdade — menos barulhenta, mas muito mais leve.
Alguns chamam de aposentadoria.
Outros, de desaceleração.
Mas talvez seja apenas o início da verdadeira vida adulta: aquela em que você vive, enfim, para si mesmo — sem script, sem performance, sem palco.
E é nesse silêncio do “já fui” que se escuta, pela primeira vez, o que você sempre foi.
Sem cargo, sem salário, sem plateia.
Só sabedoria.
E paz.
Porque a verdadeira importância pode estar, agora, em ter o tempo inteiro para fazer coisas simples que levam à felicidade:
Brincar com um neto.
Passear com o cachorro.
Conversar com velhos amigos.
Sentar à mesa com quem sempre esteve por perto — mesmo quando o mundo exigia que você estivesse longe.
É a liberdade de quem já foi importante.
E, enfim, aprendeu a ser presente.

SPOILER DE ENVELHECIMENTO

No início deste mês completei 75 anos de idade, setenta e cinco anos! Duvido que existam blogueiros mais velhos que eu. Por isso, para “ensi...