No post-agradecimento “Meu Desafeto Predileto” eu publiquei o texto da capa do livro Bíblia do Caos, de Millôr Fernandes. Deu um trabalhinho lascado copiar cada uma das sessenta e duas palavras que formam o que eu chamei de “humor de saturação”. Eu só não precisava ter tido esse trabalho se imaginasse que o Millôr tinha feito no final do livro um pequeno dicionário com elas, comentando seu significado (outra forma de fazer humor). Talvez ninguém se interesse em ler esse tipo de coisa, mas para mim o Millôr foi aquele tipo de sujeito que você diz –“quando eu crescer quero ser igual a ele”. Então, quem quiser, que leia.
PENSAMENTOS
– função cerebral. Reflexão que envolve todos os sentidos e atos do ser humano.
Lupicínio Rodrigues achava: “O pensamento parece uma coisa à toa mas como é que
a gente voa quando começa a pensar.”;
PRECEITOS
– princípios, prescrições, tentativa de impor aos outros aquilo que assumimos
como certo e que, possivelmente, nunca nos serviu pra nada;
MÁXIMAS
– basicamente de caráter moral, comumente popular, sempre com aparência de
verdade definitiva. Isso não existe; a máxima é uma mentira absoluta, quase
sempre conservadora ou reacionária;
RACIOCÍNIOS
– constante esforço humano para provar a si próprio uma impossibilidade – a de
que é um animal racional. Só isso já prova a irracionalidade humana, sem a feliz,
porque completa, irracionalidade dos outros animais;
CONSIDERAÇÕES
– jeito de refletir que acaba por nos trazer respeito pelos outros pobres
diabos como nós e levar a tratá-los com a devida...consideração;
PONDERAÇÕES
– espécie de reflexão tão detalhista e lenta, que leva o ponderador a ser
devagar;
DEVANEIOS
– fantasia cerebral, própria de pensadores amadores;
ELUCUBRAÇÕES
– passar longo tempo ponderando, pensando, antigamente à luz de velas
bruxuleantes. Edgar Poe quando lucubrava em suas madrugadas drogadas acabava
dialogando com corvos inexistentes. Dizem que inicialmente era um papagaio;
CISMAS
– preocupação, reflexão tendente à desconfiança e à suspeita. Cisma-se com tudo
e com todos;
DISPARATES
– o sentido vem de um jogo de salão em que ouvindo uma coisa (nome,
substantivo) segredada num ouvido e uma definição aleatória segredada no outro,
o ouvinte revelava aos circunstantes os dois enunciados juntos, provocando
gargalhadas;
IDÉIAS
– Augusto dos Anjos: “Vem do encéfalo absconso que a constringe”. Uma coisa de
que as pessoas geralmente são meras repetidoras. Quando alguém tem duas idéias
por semana, como acreditava Shaw, é considerado um gênio;
INTROSPECÇÕES
– mergulho que o cavalheiro faz em si mesmo numa busca de verdades interiores,
já que aqui fora estamos em falta. Psicanálise sem psicanalista;
TRESVARIOS
– desvario potenciado;
OBSESSÕES
– Idéia fixa: o que dá ao obsessivo o conforto de não ter que mudar de idéia;
MEDITAÇÕES
– concentração profunda e prolongada do espírito. Espremido bem, o cara acaba
confessando: estava era mesmo pensando em sacanagem;
APOTEGMAS
– dito econômico sentencioso, curto e grosso;
DESPROPÓSITOS
– coisa inteiramente deslocada da realidade ou do que se está falando, dita
fora de hora, de lugar, de meio. Sempre divertido de usar, sobretudo em
velórios;
APODOS
– zombaria, apelido, dito depreciativo. Quem usa apodos não tem recalques. Ou
se livra deles ao usar os apodos;
DESVARIOS
– parente do tresvarios, já citado;
DESCOCOS
– descaramento, puro e simples;
COGITAÇÕES
– essa é fácil por causa do Descartes que a popularizou: “cogito, ergo sum.” O
cara que cogita é cogitabundo;
PLÁCITOS
– Achar bom, aprovar; donde beneplácito. Simples, no, mamita?
DITOS –
Mexerico e também obscenidade. Se você não encontrar essas definições em seus
dicionários, dê o dito pelo não dito;
SANDICES
– parvoíce, coisa de maluquete;
ESPECULAÇÕES
– considerar minuciosamente, para errar com absoluta certeza;
CONCEITOS
– avaliação de atitude ou pronunciamento;
GNOMAS
– afirmativa de caráter moral. Geralmente é conservadora, proclamada há tantos
anos que pode ser considerada imoral. O mundo já girou, a Lusitana rodou e o
gnoma permaneceu o mesmo;
MOTES –
divisa, lema de brasão, afirmativa altaneira de cavalheiros templários, hoje
reduzida à tema pelos cantadores de feira: “Me dá o mote”;
PROPOSIÇÕES
– pensamento com caráter provisório, proposto para ser confirmado ou negado;
muito comum é a proposta indecorosa. Quase sempre tentadora. Geralmente aceita;
ARGUMENTOS
– indícios com que se procura provar (defender) alguma coisa;
FILACTÉRIOS
– espécie de breve ou amuleto usado pelos judeus pendurado no pescoço, ou no
braço, contendo sentenças da lei mosaica. Dito, portanto, irretorquível, xiíta;
REFLEXÕES
– o pensamento deixando de ser reflexo do exterior e voltando-se sobre o
próprio refletidor. Em física a modificação da propagação de uma onda,
fazendo-a voltar ao ponto inicial. Não ficou mais claro?;
ESCÓLIOS
– explicação de um texto clássico. Ou a complicação de um texto novo a fim de
que ele se torne clássico;
CONCLUSÕES
– é isso aí, e não se toca mais no assunto. Falei, tá falado;
AFORISMOS
– conceito, em geral de caráter moralístico. Donde preconceito;
ABSURDOS
– que foge à qualquer convívio com o raciocínio de pessoas dignas e bem
pensantes. Pior só o abmudo. Ou, ainda mais, o absurdomudo;
MEMÓRIAS
– geralmente aquilo que se esquece;
ESTULTILÓQUIOS
– palavrório, discurso estulto, tolo, néscio, imbecil, insensato, inepto,
estúpido; espera aí vocês vieram pra me ler ou pra ofender?;
ALOGIAS
– contra-senso, incapacidade de expressão por lesão dos centros nervosos ou por
falta de lógica pura e simples;
DESPAUTÉRIOS
– besteira sem tamanho, asneira desmedida. Dizem que a palavra vem de Van
Pauteren, filósofo flamengo do século XV, famoso por formulação de teorias
lingüísticas idiotas. A gente conhece o tipo;
AQUELAS
– você conhece aquela do Antônio Houaiss?;
INSULTOS
– ofensa, injúria que as vezes ataca a própria pessoa, e se chama insulto
cerebral;
NECEDADES
– pacovice, barbaquice, bertoldice, bernardice; pronto, ficaram na mesma;
DISLATES
– asneira pura e simples, sem mais enfeites;
PARADOXOS
– ir contra o senso comum, contra a própria lógica aparente, contradizer se
contradizendo. Não é bom?;
PRÓTASES
– depois da prótase, como ninguém ignora, vem a epítase e logo depois, como
qualquer menino sabe, a catástase. Ou vocês, na gramática, não aprenderam
também a prótese, a epêntese e a parágoge?;
SOFISMAS
– argumento que parte de premissas corretas para conclusões perfeitamente
mentirosas, mas irrefutáveis. Tipo silogismo crítico; “Todo bom e barato é
raro. Todo raro é caro. Logo todo bom e barato é caro.”;
SINGULARIDADES
– como me afirmou Camilo Castelo Branco: “Ora, o senhor Millôr está a dizer
coisas que parecem de doudo.”;
MIOPIAS
– estreiteza de opinião que leva fatalmente à estreiteza de visão;
ESTULTÍCIAS
– aquilo em que se compraz o estulto;
SILOGISMOS
– forma filosófica de duas premissas e uma conclusão para embatucar todos nós:
“Nenhum homem é perfeito. Todo prefeito é homem. Logo nenhum prefeito é
perfeito.”;
TERGIVERSAÇÕES
– subterfúgios, fuga aos compromissos, explicações pra brochuras.
ENORMIDADES
– Absurdo sem tamanho. “O Millôr nesse livro só disse enormidades”;
PARANÓIAS
– afirmativas que revelam mania de grandeza, ambições suspeitas, ou mesmo
insuspeitas, por que não?;
LEVIANDADES
– ligeireza, irresponsabilidade, incapacidade de levar o leitor a sério, mesmo
quando ele compra um livro de 500 páginas;
IMPRUDÊNCIAS
– falar o que não deve, ou o que deve em momento indevido, uma forma de firmeza
de caráter desconhecida por políticos;
INCOERÊNCIAS
– em física a propriedade de um ciclo de ondas com fases que não guardam
relações constantes entre si. É por aí;
DESABAFOS
– quando a pessoa mente ou conta vantagens a isso se chama bafo. Desabafo é
exatamente o contrário;
GALIMATIAS
– palavras incompreensíveis, como se fossem pronunciadas em Babel, em todas as
línguas;
HERESIAS
– qualquer coisa de que a gente não gosta e da qual não consegue se defender;
HIDROFOBIAS
– os latidos precursores da mordida.
DIZEDELAS
– Ditos.