quinta-feira, 17 de outubro de 2024

DISJUNTOR

 
Não sei se isso acontece com todo mundo, mas alguns assuntos grudam em minha mente como chiclete em passeio público. Respondendo a um comentário feito recentemente aqui no blog, usei a palavra “disjuntor” relacionada ao falecimento repentino de pessoas. E esse tipo de situação é o chiclete agarrado no meu cérebro.
 
A notícia da morte do publicitário Washington Olivetto mexeu muito comigo pela enorme admiração que tinha por ele. Os “criativos” da área de publicidade frequentemente me fazem babar de encantamento por suas sacadas geniais para divulgar ou vender esse ou aquele produto. E o Olivetto era o paradigma dessa turma no quesito criatividade. Segundo a Wikipédia, sua agência W/Brasil tornou-se “uma das agências mais premiadas do mundo, com quase mil prêmios, entre Leões no Festival de Cannes, Clio Awards, CCSP e outros”.
 
Ainda segundo a Wikipédia, “foi o único latino-americano a ganhar o prêmio Clio Awards em 2001, com um comercial de TV para a Revista Época. Foi considerado como o mais criativo publicitário dos últimos trinta anos na premiação Profissionais do Ano, organizada pela TV Globo. É considerado uma das 25 figuras-chave de publicidade do mundo pela revista britânica Media International. Foi eleito duas vezes o publicitário do século pela Associação Latino-Americana de Agências de Publicidade (ALAP) e pelo site de notícias sobre propaganda brasileira do Monitor Mercantil. Em 2009, entrou para o Hall da Fama do Festival Ibero-Americano de Publicidade(FIAP)”. Resumindo, o sujeito era o foda, o "cara" no quesito criatividade. Mas morreu “novo”, o que é uma sacanagem.
 
E aí pisei no chiclete de novo. Há mais tempo fiz a comparação da passagem vida-morte como fruto de um interruptor que se desliga. Só que essa não era uma boa imagem, pois um interruptor necessita de alguém para clicar em seu botão. Foi aí que me ocorreu a ideia do disjuntor.
 
Utilizando a definição técnica para esse tipo de artefato, um disjuntor é “um dispositivo elétrico que protege os circuitos elétricos de sobrecargas e curtos-circuitos, desligando a energia automaticamente”, imagem perfeita para a mudança da vida-morte, feita automaticamente, sem precisar de ninguém para seu acionamento. Mas o chiclete continuava agarrado. Foi aí que o TOC se manifestou e eu tive a ideia de fazer um levantamento das pessoas falecidas em 2024. Pois é... 

Entrei de novo na Wikipédia e peguei a relação de pessoas famosas falecidas no mundo todo, mês a mês. Sem me importar com o motivo da morte (alguns morreram de desastre, outros foram assassinados, etc.), calculei a média das idades de cada uma dessas 884 personalidades. E o resultado deu 75,14 anos (EPA!).
 
E essa é a conclusão do chiclete: em virtude das “sobrecargas e curto-circuitos” ocorridos durante a vida, o disjuntor de uma pessoa média desarma quando o sujeito chega nos 75 anos. Lembrando que tenho hoje 74 aninhos, poderia citar estes versos do Vinicius de Moraes (falecido aos 67 anos), “De repente, do riso fez-se o pranto, de repente, não mais que de repente”. 

E a cereja do bolo deste texto é o gráfico que indica as mortes do levantamento que fiz, por faixa etária. Olhaí.



 

terça-feira, 15 de outubro de 2024

"FOFINHO!"

 
Há muito tempo eu sou visto pela maioria das pessoas que me conhecem como o “gente boa”, divertido e educado, sempre de alto astral, pacífico, culto e inteligente (verdade!), que nunca discute nem entra em brigas. Talvez alguns estranhem o fato de ficar isolado em festas, de nunca me sentar em mesa de bar e coisas assim, mas tento disfarçar essa falta de vontade de conviver com a maioria das pessoas que conheço. Entretanto, algumas notícias de que fico sabendo fazem com que um urso feroz que hiberna dentro de mim se liberte. Aí eu fico furioso, puto, putíssimo da vida. E já que eu falei em urso, vou reproduzir uma historinha simpática, um “case” de sucesso. Transcrevendo:
 
A história do Teddy Bear, o icônico ursinho de pelúcia, remonta ao início do século XX e está ligada a um famoso episódio envolvendo o então presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt.
 
Em 1902, Roosevelt foi convidado para uma expedição de caça no Mississippi. Depois de horas sem sucesso na caçada, um de seus assistentes localizou um filhote de urso-negro, amarrou-o a uma árvore e sugeriu que o presidente o matasse, para garantir o "troféu". Roosevelt, no entanto, se recusou, achando injusto e desonroso abater o animal indefeso. O episódio foi retratado em uma charge política desenhada por Clifford Berryman no jornal "The Washington Post", mostrando Roosevelt com um ar de compaixão ao poupar o ursinho.
 
A charge viralizou na época, e, inspirado por ela, o lojista Morris Michtom, que era dono de uma pequena loja de doces e brinquedos em Nova York, teve a ideia de criar um ursinho de pelúcia em homenagem ao presidente. Ele colocou o brinquedo na vitrine de sua loja, com uma placa dizendo "Teddy's Bear" (O Urso do Teddy, referindo-se ao apelido de Roosevelt, "Teddy"). O sucesso foi imediato, e a popularidade do brinquedo cresceu tanto que Michtom fundou a Ideal Toy Company para atender à demanda.
 
Assim nasceu o Teddy Bear, que desde então se tornou um dos brinquedos mais amados e simbólicos da infância ao redor do mundo.
 
Voltando à notícia que me enfureceu preciso falar da minha personalidade dual, que me faz oscilar entre o ogro mal encarado e o “simpaticão”. Se eu fosse mais moço e bonito, talvez alguém até me chamasse de “fofinho”, quase um ursinho de pelúcia de tão gentil, uma espécie de “teddy bear” ambulante.
 
Talvez eu esteja me repetindo muito, mas depois de quase três mil publicações fica difícil me lembrar do que disse e como disse. Por isso, vou repetir: apesar de sempre me sentir muito amado, fui uma criança reprimida, castrada, policiada e educada para ser “bonzinho”. E essa característica nunca me abandonou. Pelo contrário, creio que foi até acentuada à medida que envelheci.
 
Hoje, por exemplo, eu sou o rei da gentileza e cordialidade. Sorrio para desconhecidos, seguro a porta do elevador até que todos entrem ou saiam, agradeço o atendimento que estiver recebendo, pergunto o nome de quem me atende, conto piadinhas, estou sempre de bom humor e tento fazer rir conhecidos e desconhecidos falando mal de mim ou ao contar minhas mazelas, reclamar da “idade do condor”, etc. Resumindo, sou um anjo de candura, o idoso mais fofinho que alguém pode encontrar (mas você lá e eu aqui, OK?)

Só que esse comportamento cortês é falso ou quase isso, mesmo que me traga o maior prazer. Na verdade, eu não sou um “ursinho fofinho”, sou um urso que teve a hibernação interrompida, daqueles que caminham silenciosos pela floresta e, de repente, atacam sem aviso. Um ogro turrão e mal humorado, que ri de si mesmo e das pessoas que acreditam em suas boas qualidades.
 
E foi esse o urso libertado depois de ler a notícia de que no Rio de Janeiro seis pessoas que receberam órgãos transplantados contraíram HIV. Dá para imaginar uma tragédia dessas? E há detalhes mais sórdidos. Segundo a notícia, o laboratório tinha emitido atestados de segurança dos órgãos. Ok, falhas humanas podem acontecer, mas parece que o buraco é mais embaixo. Transcrevendo:
 
 A Vigilância Sanitária fiscalizou o laboratório, mas não encontrou nenhum kit para teste de HIV. Os fiscais pediram a numeração dos testes já realizados e a nota fiscal de compra dos kits para analisar se havia algum erro de fabricação nos lotes. Mas o laboratório não entregou nenhum documento comprovando a compra dos itens. A polícia investiga se os testes foram realmente feitos.
 
Quer mais? Segundo o jornal O Globo, “Laudo de órgão doado com HIV tinha registro de biomédica de São Paulo, que nunca trabalhou no Rio”.
 
Só mais um pouquinho: o laboratório PCS era o responsável por esses testes no estado do Rio. E foi ele, logicamente, que fez os testes e liberou os órgãos para as cirurgias.
 
E agora é para acabar: um dos sócios dessa birosca é primo do ex-secretário estadual de Saúde, agora deputado federal pelo PP. Transcrevendo: O laboratório foi contratado três meses depois da saída de Dr. Luizinho da secretaria. A contratação para análises para transplantes foi feita em dezembro de 2023, em um pregão, por R$ 11 milhões.
 
Fala sério, tem ou não tem cheiro de putaria esse episódio trágico? Eu sinceramente torço para que isso seja apenas uma “comédia de enganos”, mas aqui não é a Escócia, aqui a escória se espalha por todos os lugares. Por isso, o ogro, o urso raivoso que hiberna dentro de mim sonha e defende as chibatadas da Indonésia, a prisão perpétua, a pena de morte, a lex talionis para combater e punir crimes hediondos ou cometidos por gente filha puta.
 
A Terra possui hoje oito bilhões de sapiens; um a mais, um a menos não faz diferença, mas punições e execuções "profiláticas" de canalhas tornam o ar mais respirável, concordam? Jotabê fofinho? Me engana que eu gosto!

domingo, 13 de outubro de 2024

ELE ERA UM ÍDOLO PARA MIM

 


Eu sempre tive fascínio pela criatividade exibida em campanhas e peças publicitárias. E o Washington Olivetto era um gênio nessa área, um verdadeiro ídolo para mim.


É bem melhor ser coautor de coisas brilhantes do que autor solitário de coisas medíocres.

Eu só dou palpite em duas circunstâncias: quando pedem minha opinião ou se eu tiver pensado em algo realmente muito bom para dizer.

Eu sou humilde, mas não modesto. Modéstia é falsidade.

Mais difícil do que ter uma grande ideia é reconhecer uma. Especialmente se for de outra pessoa!

O aplauso público é mais barulhento, mas o íntimo é mais gostoso.

O cartão é mais importante do que as flores. Dois rapazes parecidos podem mandar flores iguais para uma mesma moça, mas certamente faz mais sucesso quem escreve o melhor cartão.

O que me inspira é a possibilidade de fazer o novo, de novo.

O sucesso sempre depende de disciplina, dedicação e algum talento. Mas também da escolha do lugar certo, no tempo certo.

Quando você está fazendo o que gosta, o trabalho deixa de ser trabalho e passa a ser prazer.

Temos que aprender a falar com milhões de pessoas como se estivéssemos falando com uma só.

Toda publicidade é uma intromissão. E o mínimo que um intrometido deve ser é charmoso e bem-educado.

Uma das grandes coisas que impedem, muitas vezes, de se fazer coisas brilhantes é o medo e a busca excessiva de segurança.

(Washington Olivetto)

 

sábado, 12 de outubro de 2024

MAIS AFORISMOS DE SCHOPENHAUER

 
A seguir, a última parte dos aforismos e textos curtos de Schopenhauer, a quem estou chamando de “Schopi”, só de sacanagem. Preciso dizer também que suas frases renderam dois posts por eu ter ficado com preguiça de fazer uma seleção mais fina. Olhaí.
 
 
A vida interior é reprimida e não pode ser conscientizada porque conhecer nossa natureza mais profunda (nossa crueldade, medo, inveja, desejo sexual, agressividade, egoísmo) seria um peso maior do que poderíamos aguentar.
 
Talento é acertar um alvo que ninguém acerta. Genialidade é acertar um alvo que ninguém vê.
 
A fé e o saber não se dão bem dentro da mesma cabeça: são como o lobo e o cordeiro dentro de uma jaula; e o saber é justamente o lobo, que ameaça devorar seu vizinho. O saber é feito de uma matéria mais dura do que a fé, de modo que, quando colidem, a última se quebra.
 
Um bom cozinheiro pode dar gosto até a uma velha sola de sapato; da mesma maneira, um bom escritor pode tornar interessante mesmo o assunto mais árido.
 
 Cada pessoa vê em outra apenas o tanto que ela mesma é, ou seja, só pode concebê-la e compreendê-la conforme a medida da sua própria inteligência.
 
A inteligência é invisível para quem não tem nenhuma.
 
A ousadia é, depois da prudência, uma condição especial da nossa felicidade.
 
Se a vida possuísse qualquer valor real e positivo, o tédio não existiria: a própria existência em si nos satisfaria, e não desejaríamos nada.
 
A descoberta da verdade é impedida de forma mais eficiente não pela aparência falsa das coisas que iludem e induzem ao erro, nem diretamente pela fraqueza dos poderes de raciocínio, mas pela opinião preconcebida e pelo preconceito.
 
Quanto mais claro é o conhecimento do homem, quanto mais inteligente ele é, mais sofrimento ele tem; o homem que é dotado de gênio sofre mais do que todos.
 
A opinião dos outros a nosso respeito só pode ter valor na medida em que determina ou pode ocasionalmente determinar a sua ação para conosco.
 
O extrovertido é o ser que não suporta o tédio de ficar consigo mesmo.
 
Não digas nunca tudo o que sabes mas sempre saiba o que irás dizer.
 
Não há nada tão desgraçado na vida da gente que ainda não possa ficar pior.
 
Quanto mais elevada for a posição de uma pessoa na escala hierárquica da natureza, tanto mais solitária será, essencial e inevitavelmente.
 
Não há nada mais fácil do que escrever de tal maneira que ninguém entenda; em compensação, nada mais difícil do que expressar pensamentos significativos de modo que todos os compreendam.
 
 Afetar alguma qualidade, gabar-se dela, é uma confissão de não possuí-la.
 
O maior grilhão do homem é acreditar que nunca esteve agrilhoado.
 
Usar de polidez é uma tarefa difícil, pois exige que testemunhemos grande consideração por todas as pessoas, enquanto a maior parte delas não merece nenhuma; ademais, precisamos simular o mais vivo interesse por elas, quando em verdade temos de estar contentes por não o sentirmos. Unir polidez com orgulho é uma obra-prima.
 
Um fluxo constante de pensamentos de outros pode parar ou amortecer seu próprio pensamento e sua própria iniciativa.
 
Geralmente é a perda que nos ensina o valor das coisas.
 
Para vivermos entre os homens, temos de deixar cada um existir como é, aceitando-o na sua individualidade ofertada pela natureza, não importando qual seja.
 
Por mais que o orgulho seja, em geral, censurado e mal-afamado, suspeito, todavia, que isso venha principalmente daqueles que nada possuem do que se orgulhar.
 
Para ver como a vida é curta é preciso antes viver bastante.
 
O ódio constitui de longe o prazer mais insistente; os homens amam às pressas, mas detestam longamente.
 
Age com retidão para com todos, mas não te fies facilmente deles. Desconfia das gesticulações e te comporta mais ou menos de acordo com o que se acha por trás delas.
 
À medida em que envelhecemos, as divergências se vão tornando cada vez maiores. No final da vida, estamos completamente sós.
 
Cada um fará sua própria história e esperará que esta seja capaz de trazer a verdade à luz.
 
A vontade é um cego robusto que carrega um aleijado que enxerga.
 
Ah, como uma cabeça banal se parece com outra! Elas realmente foram todas moldadas na mesma forma!
 
Querer escrever como se fala é tão condenável quanto o contrário, ou seja, querer falar como se escreve, o que resulta num modo de falar pedante e ao mesmo tempo difícil de entender.
 
A fé é como o amor. Não pode ser forçada.
 
Se quisermos avaliar a situação de uma pessoa pela sua felicidade, deve-se perguntar não por aquilo que a diverte, mas pelo que a aflige.
 
Polidez é inteligência; consequentemente, impolidez é parvoíce. Criar inimigos por impolidez, de maneira desnecessária e caprichosa, é tão demente quanto pegar fogo na própria casa.
 
A posse mata todo o encanto.
 
O sinal de uma cabeça eminente é resumir muitos pensamentos em poucas palavras.
 
Toda a nação troça das outras e todas têm razão.
 
Na verdade, só existe prazer no uso e no sentimento das próprias forças, e a maior dor é a reconhecida falta de forças onde elas seriam necessárias.
 
Nada se toma a sério na vida humana; o pó não vale esse trabalho.
 
O Estado não é mais do que uma mordaça cujo fim é tornar inofensivo esse animal carnívoro que é o homem, e dar-lhe o aspecto de um herbívoro.
 
O homem, no íntimo, é um animal selvagem, uma fera. Só o conhecemos domesticado, domado, nesse estado que se chama civilização, por isso recuamos assustados ante as explosões acidentais do seu temperamento.
 
Nada supera a satisfação da própria vaidade e nenhum machucado dói mais do que o ataque a ela.
 
As pessoas comuns pensam apenas como passarão o tempo; um homem de intelecto, tenta usar o tempo.
 
Casar significa fazer todo o possível para se tornar objeto de repulsa para o outro.
 
Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode-se dizer que não tem razão alguma de ser no mundo.
 
A vida é uma tarefa que devemos desempenhar laboriosamente.
 
Pode ainda considerar-se a nossa vida como um episódio que perturba inutilmente a beatitude e o repouso do nada.
 
Quem atribui um grande valor à opinião dos homens presta-lhes demasiada honra.
 
Todo tolo miserável que não tem absolutamente nada de que possa se orgulhar, adota como último recurso o orgulho da nação a que pertence; ele está pronto e feliz para defender todas as suas faltas e loucuras com unhas e dentes, reembolsando-se assim por sua própria inferioridade.
 
Deve-se usar palavras comuns para dizer coisas incomuns.
 
Em toda sociedade, assim que ela se faz numerosa, predomina a mediocridade.
 
Um bom suprimento de resignação é de fundamental importância para a jornada da vida.
 
A vida é uma situação temporária que tem uma solução permanente.
 
A compaixão é um ato inútil que nos esgota emocionalmente, sem trazer qualquer benefício duradouro.
 
O instinto de sociabilidade de cada um está na proporção inversa da sua idade.
 
O que o rebanho mais odeia é alguém, que tem a audácia necessária para ter a própria opinião!
 
O bom humor é a única qualidade divina do homem.
 
Não nos deixar cair em tentação, é o mesmo que dizer: não nos deixar ver quem realmente somos.
 
O destino embaralha as cartas, e nós jogamos.
 
Pelo menos nove décimos de nossa felicidade baseiam-se exclusivamente na saúde... Com ela, tudo se transforma em fonte de prazer...
 
Quanto mais inteligente ele é, mais sofrimento ele tem. O homem que é dotado de inteligência sofre mais do que todos.
 
Assim como a cera, naturalmente dura e rígida, torna-se, com um pouco de calor tão moldável que se pode levá-la a tomar a forma que se desejar, também se pode com um pouco de cortesia e amabilidade, conquistar os obstinados e os hostis.
 
Depois que o homem transformou todos os sofrimentos e tormentos na concepção de inferno, para o céu restou apenas o tédio
 
A recordação atua como a lente convergente na câmara obscura: reduz tudo e produz uma imagem muito mais bonita do que a original.
 
A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais
 
O homem é livre para fazer o que quer, mas não para querer o que quer.
 
A riqueza influencia-nos como a água do mar. Quanto mais bebemos, mais sede temos. O mesmo vale para a glória.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

BENEDICTIO CEREVISIAE


 
O tema de hoje é meio esquisito pois vou falar de cerveja, logo eu que nem gosto de cerveja! Mas meu papel é só de documentarista. Por isso, já começo perguntando: você já ouviu falar do “vinho do padre”? Já? E de "cerveja do padre"?

“Vinho do padre” é nome popular que se dá ao “vinho canônico”, fabricado especificamente para ser utilizado durante a missa católica, simbolizando o sangue derramado por Cristo. Como este texto não se propõe a catequizar ninguém, não é para conversão, só conversação (fraquinha!), vou contar a história da cerveja do padre, graças a um vídeo antigo que minha mulher me enviou. Tão antigo que o padre que nele aparece às voltas com a produção de cerveja morreu em 2020, por aí.
 
Bom, eu disse que não queria catequizar ninguém, mas seria de bom alvitre que os ateus – especialmente aqueles que gostam de cerveja barata mas boa – se ajoelhassem no milho, ou melhor, na cevada, e recitassem esta oração, uma benção, que consta no Ritual Romano (livro que reúne os ritos da Igreja Católica):
 
BENEDICTIO CEREVISIAE
V. Adjutorium nostrum in nomine Domini.
R. Qui fecit caelum et terram.
V. Dominus vobiscum.
R. Et cum spiritu tuo.
Oremus
Bene   dic, Domine, creaturam istam cerevisiae, quam ex adipe frumenti producere dignatus es: ut sit remedium salutare humano generi, et praesta per invocationem nominis tui sancti; ut, quicumque ex ea biberint, sanitatem corpus et animae tutelam percipiant. Per Christum Dominum nostrum.
R. Amen.
Et aspergatur aqua benedicta.
 
Que, em língua de pagãos, pode ser traduzida assim:
 
BENÇÃO DA CERVEJA
V. A nossa proteção está no nome do Senhor
R. Que fez o Céu e a Terra
V. O Senhor esteja convosco.
R. Ele está no meio de nós.
Oremos
Abençoai, Senhor, esta criatura, a cerveja, que da riqueza do grão vos dignastes produzir, para que seja remédio salutar ao género humano; concedei ainda, pela invocação do vosso santo Nome, que quem quer que dela beba, receba [de Vós] a saúde do corpo e a tutela da alma.
E água benta é aspergida
 
Eu só não entendi por que usar água benta! Seria mais coerente usar a bem suada cerva para borrifar ou aspergir a produção mais recente, concordam?
 
Pouco importa. Como sexta-feira é o dia nacional da cerveja, podemos agora contar um pouco dessa simpática história. Era uma vez... (pensando bem, este não é um início digno de fé, mas vamos lá)
 
(Transcrevendo):
“Domingo, 02 de Julho (1893), chegou o ‘Ceará’ ao Rio de Janeiro. Conforme me falaram é um dos portos mais bonitos do mundo. Viajamos no mar sem problemas, 25 dias: de 08 de Junho até 02 de Julho. Graças a Deus chegamos bem em nossa nova pátria.” Esse é o relato que descreve a chegada de dois grandes missionários redentoristas que primeiro chegaram a terras brasileiras: Pe. Mathias Tulkens e Pe. Francisco Lohmeyer. Da Holanda para o Brasil! Ao chegar a Juiz de Fora, Pe. Matias entusiasmou-se com a cidade ao dizer: “parece ser a cidade mais civilizada e mais próspera do Brasil. Os alemães construíram com os seus próprios meios uma igreja e tinham um vigário próprio também alemão. Faz 4 meses que ele faleceu e os alemães ficaram sem vigário (trata-se do Pe. Adolfo Januschka). Eles ficaram muito satisfeitos quando souberam que eu ficaria um tempinho com eles. A cidade tem 25.000 habitantes, dos quais, conforme o vigário, 1.200 alemães, mas um ou outro me falou que eram 4.000. A igreja é pequena mas, isto é costume aqui; há bastante espaço para ampliá-la”.
  
Foi dessa forma que a Congregação Redentorista se instalou em Juiz de Fora, trazendo também seus costumes culturais, entre eles a tradição europeia da cerveja, especialmente a produção artesanal. A bebida fazia parte da dieta cotidiana dos religiosos e não era considerada alcoólica, sendo o vinho reservado apenas para ocasiões especiais.
 
Os missionários redentoristas, ao se estabelecerem no Morro da Gratidão (atual Morro da Glória), montaram uma cervejaria nos moldes dos conventos da Holanda, utilizando equipamento de alta qualidade importado de lá. A tradição cervejeira foi passada aos brasileiros, com destaque para o Irmão Geraldo, redentorista consagrado, pelo tempo que dedicou à produção da cerveja até 1994, momento em que paralisou a produção. Não sei o motivo dessa decisão, talvez por doença, velhice ou até mesmo falecimento.
 
Só em 2009, o Padre Flávio, então pároco da Paróquia de Nossa Senhora da Glória, restaurou a cervejaria com o auxílio de cervejeiros locais. Ele reativou o equipamento e resgatou a receita original, produzindo novamente a Hofbauer, em homenagem a São Clemente Maria Hofbauer, santo austríaco da Congregação.
 
Na Idade Média, a produção de cerveja era comum em mosteiros, e, para Padre Flávio, a bebida integrava a convivência comunitária e a fé. Após um intervalo de 15 anos sem produção, foi necessário estudo e paciência para reativar a cervejaria, valorizando o patrimônio histórico. Como disse o padre: "Do que vale um patrimônio se estiver parado, morto?"
 
Aqui cabe um depoimento pessoal. Conforme já contado aqui no Blogson, tive contato com uma senhora italiana, amiga e hóspede da sogra de minha tia, que nunca bebeu água durante os meses em que esticou sua permanência no país. Começou bebendo vinho, passando depois para cerveja (mais barata que vinho). Também falei de uma empresa alemã de engenharia, contratada para um serviço altamente especializado na obra onde fiz estágio, que fornecia cerveja (quente) durante o turno de trabalho para seus funcionários.
 
E para encerrar este texto tão embriagante, tão embriagador, acho razoável reproduzir a saudação suméria representativa de saúde e prosperidade: Pão e cerveja! (mesmo que eu prefira ficar só com o pão).
 
 


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

AGELESS

 
Se tem uma coisa que me deixa incomodado é ser mal entendido, mal interpretado. E isso aconteceu recentemente quando disse me considerar um “ageless”. Os comentários que li me fizeram sentir mais apedrejado que mulher adúltera da Bíblia. Por isso, para tentar explicar o que para mim já estava claro, resolvi reunir trechos de postagens feitas desde o início do Blogson. Parei em 2020 por já estar de saco cheio e o texto resultante estar com quatro páginas, totalmente fora do padrão do Blog. Eu não quero parecer ser o que não sou, o que eu quero é ter a liberdade de pensar o que me der na telha. Quem quiser que leia.
 
“LET’S ALL GET UP AND DANCE...” (18/09/2014)
Ultimamente, comecei a sentir algo parecido em relação aos idosos. Pode ser frescura, falta do que fazer, mas o fato é que eu sinto que de nós, os mais velhos, espera-se um comportamento "coerente" com a idade. Se alguém resolver rir alto ou fizer coisas inesperadas e idiotas no shopping (esconder-se atrás de uma coluna, por exemplo), pelo simples fato de estar alegre e despreocupado, provavelmente será olhado com vergonha e constrangimento pelos familiares, com reprovação e desconfiança pelos demais, como se o "preferencial" estivesse delirando ou definitivamente senil.
O que, afinal, eu quero dizer? Isso: de um senhor ou de uma senhora (assim imagino) espera-se sempre um comportamento "condizente" com a idade que o corpo aparenta, mais contido, severo, senhoril – ou então essa pessoa será julgada e considerada gagá, caduca, senil. Bela merda essa prisão!
 
SUPEREGO (05/12/2014)
Um dos meus filhos disse recentemente que minha geração “é mais largada". Segundo suas palavras “o que estranha não é uma pessoa mais velha fora do padrão sério/sisudo, mesmo porque a sua geração é mais largada. O que eu não entendo é uma pessoa querer se comportar como se pertencesse a uma geração que não a sua. E isso vale até para o que já se convencionou chamar de ‘adultescentes’.".
Achei graça, mas protestei veementemente, pois até hoje padeço de falta de traquejo social, pois ou fico travado (como ficava antes de começar a namorar minha mulher) ou fico muito "relaxado" tal como aprendi a ficar, convivendo com meus cunhados. Além disso, não pertenço a essa turma. Não quero parecer mais novo do que sou. Sou idoso, preferencial, mas não da "melhor" idade, porque isso é hipocrisia (melhor porra nenhuma!). Eu pertenço à turma da "gravidade", aquela onde tudo cai, está caindo ou já caiu (por enquanto, estou me referindo apenas à pele, dentes, cabelo e audição, pô!). Quanto ao resto, só o tempo dirá, mas imagino que o futuro seja meio tenebroso (a força "gravitacional" tende a ficar mais "intensa"...).
O que quero dizer é que dentro de mim (nada sei dos demais) ainda vive uma parte do menino, uma parte do adolescente, uma parte do jovem adulto. E esse Frankenstein mental às vezes pede atitudes de acordo com a idade que estiver mandando na hora. Mas aí, eu tenho que segurar ao máximo para não parecer retardado ou senil. Essa é a prisão dos idosos tidos como saudáveis, uma prisão feita de normas de conduta e convenções sociais.
 
C' EST LA VIE (19/12/2014)
Natal chegando,
comprar no shopping é inevitável.
Sem paciência para escolher presentes,
meu olhar se perde entre pessoas e vitrines,
no burburinho próprio da época.
Distraído, olho com meus olhos de vinte ou trinta anos.
Quando passo perto de algum espelho, no entanto,
a imagem que retorna é a de um senhor
de mais de sessenta anos,
com ar perplexo e apalermado. Sinistro.
 
ESPELHO (06/10/2016)
Que aconteceu com aquele menino
que sonhava viajar em um Vera Cruz prateado?
Onde se escondeu aquele adolescente inseguro
que queria aprender a beijar lendo um livro?
Onde foi parar aquele jovem ingênuo
que um dia encontrou o amor de sua vida?
Que fim levou aquele pai que dormia,
incapaz de ajudar seus filhos com os deveres?
Onde está aquele homem insensível
que pensava mais em si mesmo?
É esse, aquele velho espantado
que se vê refletido em espelhos paralelos?
 
O MUNDO É DOS JOVENS (29/11/2016)
O mundo é dos jovens. Eu sei que essa é uma frase clichê, mas o mundo é definitiva e irrefutavelmente dos jovens. E isso ficou ainda mais patente com o surgimento das mídias sociais. Mas não me refiro aos que ainda estão na fase da adolescência. Os jovens de que estou falando têm entre dezoito e quarenta e cinco anos. Você poderá me perguntar o que quero dizer com isso. Mas, mesmo que não pergunte nada, já vou esclarecendo: esse é o mundo ao qual eu gostaria de pertencer, essa é a minha tribo ideal.
Não, não estou querendo parecer tiozão nem vestir bermudas com camiseta regata (creio ser esse o nome). Longe de mim essa breguice. O que eu gostaria mesmo é de estar nessa faixa etária. Já disse uma vez que não tenho saudade de épocas, estilos, moda ou ritmos musicais, não curto nostalgia. O que eu tenho - e isso é tristemente real - é saudade de mim mesmo, quando podia fazer as coisas que não fiz ou fiz e não deveria ter feito.
Ser jovem, ser ainda jovem é uma dádiva do Tempo. Aos mais velhos resta a arquibancada, resta observar, criticar (inveja pura) e sentir-se como um estrangeiro em um país ocupado e dominado por jovens.
Quando eu ainda ouvia discos de vinil, às vezes derramava um pouquinho de álcool no centro do disco, para tentar reduzir a chiadeira provocada pelo desgaste decorrente das sucessivas audições. Gostava de ver o álcool ir-se espalhando em direção à borda do LP, numa ótima demonstração da força centrífuga.
Pois bem, hoje eu me sinto como aquele álcool, que vai sendo cada vez mais conduzido para a borda, para a periferia da sociedade. Saudade de mim, entendeu? Estrangeiro? Esse cara sou eu! 
 
DOUPONE (14/12/2017)
A primeira empresa onde trabalhei seguia um protocolo meio bizarro: os engenheiros, o único arquiteto e os estagiários de engenharia eram indistintamente tratados por “doutor”, enquanto os demais profissionais de nível universitário (psicólogos, administradores, contadores e economistas) tinham de se contentar em ser chamados de “senhor”. E eu, um aluno relapso, irresponsável e medíocre, um legítimo doupone, um verdadeiro doutor em porra nenhuma, adorava ser tratado com essa reverência equivocada.
Hoje, aposentado - e, pior, idoso -, espanto-me quando alguém me chama de "senhor" ou de "Seu Zé", pois não é essa a imagem que tenho de mim. Minha carteira de identidade mental ostenta ainda o retrato de um homem mais jovem e mais sonhador. Mas cheguei à conclusão de que preciso me ajustar e atualizar meu perfil, aceitar e assumir definitivamente a idade cronológica que tenho.
Antes que isso aconteça, preciso resolver um paradoxo: quanto mais me chamam de "Seu Zé" mais eu vejo que "Meu" Zé não existe mais, talvez nunca tenha existido. A cada dia que passa sou menos Senhor de mim mesmo, cada vez mais distante dos sonhos e desejos irrealizados. Não sou senhor de nada! Como ser chamado de "Senhor" se nada mais tenho de meu, intrinsecamente meu? O "meu" Zé verdadeiro perdeu-se há muito tempo e nada pode agora resgatá-lo. Assim, quando alguém me chamar de "Seu Zé", pode acontecer de ficar tentado a perguntar "Cadê ele?", onde está ele, o meu Zé desaparecido, talvez até mesmo o doupone que eu fui um dia?
 
REFLEXOS (09/09/2020)
O espelho da sala me olha assustado
Carrancudo é o reflexo na janela
O espelho do banheiro manda um recado
É melhor comportar-me como se espera
De um senhor que tem a minha idade
Minha mente nem se toca e pondera
Que desdenha de normas tão austeras
Que circunspecta senioridade
Exibir é a mais vã das vaidades
É tentar ser o que não se é
E que é inútil ocultar o que se é
Isso sim, um gasto de energia pueril
Pois não há mal em fingir-se infantil.
 
CONFRARIA DAS HIENAS (16/11/2020)
Eu não tiro selfies e sou pouco fotografado em festas (não por vontade própria, talvez por julgamento estético de quem maneja a câmera), mas me atiro no blog com toda a falta de vergonha possível. Se isso faz com que eu pareça ser um tolo, um ingênuo ou alguém digno de pena, não estou nem aí. Quando o número de “seguidores” (detesto essa palavra!) do Blogson passou de dois para nove eu me assustei e comecei a me autopoliciar para não “manchar” minha imagem. Comecei a escolher textos e assuntos (melhor forma de se castrar a criatividade) que pudessem estar à altura dos novos amigos.
Mas resolvi mudar. Vou cada vez mais focar em piadas idiotas, trocadilhos deploráveis e comentários que um idoso nunca deveria fazer. Foda-se! Como minha expectativa de tempo de vida é baixa, eu quero é rir, mesmo que seja sozinho, mesmo que seja de mim mesmo, em qualquer lugar.  Back to basic! Porque agora o que eu quero mesmo é entrar para uma confraria que cultive e aprecie o riso. E que ele seja crítico e politicamente incorreto, provocado pela ironia, sarcasmo, deboche ou maledicência. Se não existir, vou acabar criando uma. E, lembrando-me de uma piada antiga sobre um grupo de crianças no zoológico, já tenho até nome: Confraria das Hienas.

 

DISJUNTOR

  Não sei se isso acontece com todo mundo, mas alguns assuntos grudam em minha mente como chiclete em passeio público. Respondendo a um come...