Tenho um amigo que, fez uma descrição
interessantíssima de como enxergava a Vida e o ato de morrer. Para ele, a vida
seria como um caminho cercado que leva o gado ao matadouro, que iria se
afunilando quanto mais se andasse. No início, as cercas estão tão distantes que
ninguém se preocupa com a existência delas. À medida que passam os anos, a
cerca vai se aproximando, se aproximando, de tal forma que, quando nos damos
conta, não há mais como escapar do abate.
Acho que esse é um sentimento que nos
acompanha em boa parte da vida. Sabemos que morreremos um dia, mas as “cercas”
estão tão distantes que é como se nem existissem. É o que eu chamaria de “falsa
imortalidade”.
Um dia, entretanto, um evento ou descoberta
inesperada acontece e a imortalidade ilusória desaparece para sempre, momento em
que os ajustes das expectativas se iniciam. E é assim, com a inexorabilidade da
perda próxima de minha mulher, eu estou.
A descoberta da doença incurável de minha
mulher em março de 2023 me fez desejar que pudéssemos (eu e ela) estar vivos
até 2034, ano em que nossas netas mais novas completarão quinze anos.
Infelizmente, em virtude da doença incurável,
as primeiras estatísiticas consultadas indicavam que viveria até 2027, no
máximo. Mas só isso? Novo ajuste.
Recentemente, devido à confusão mental
provocada por baixa de sódio no sangue, foi internada duas vezes para sua reposição
controlada, só possível em hospital. Hipóteses foram aventadas sobre quem seria
o culpado disso. Medicamentos, claro!
Ajustes, supressões e trocas foram
realizadas, mas novo episódio de hiponatremia (esse é o nome) aconteceu. Ora,
se os culpados não são apenas os medicamentos, quem seria o vilão? Um hormônio
que atua na suprarrenal.
Ah, bom, então basta um tratamento oncológico
para manter as coisas em seus lugares!
Entrei em contato com a oncologista que
sempre a tendeu e tomei um murro na cara: não haverá mais tratamento oncológico,
apenas cuidados paliativos. Mas, doutora, qual é a expectativa de vida então
dessa menina a quem amo tanto?
Desde a descoberta da doença (câncer de
fígado com metástase). Ela teria uma sobrevida de apenas 21 meses. E ela já tem
uma sobrevida de 30 meses. Nada a fazer a não ser a aplicação contínua de
morfina e antipsicótico. Puta que pariu!
Aí surgiu um novo médico que trabalhou em CTI
durante dez anos e, depois de examiná-la e aos exames de imagem e de sangue mais
recentes realizados, disse que não é o câncer o motivo da confusão mental, de
uma provável infecção no quadril, no local da metástase tratada com
radioterapia. Sugestão: nova internação, novos exames, novos antibióticos e
nova esperança de melhora da consciência – mas não da sobrevida. Será internada
hoje.
Mas a enfermeira que a atende
domiciliarmente, depois de pressionada por mim, disse que provavelmente a
mulher a quem amei nos últimos cinquenta e cinco anos não viverá até o final de
dezembro.
Agora, o último ajuste das expectativas é que
ela não sofra. Pelo menos não tanto quanto estou sofrendo por saber, como
cantou o Beto Guedes, “que não vou te tocar além
da lembrança”.
Escrito em uma tristíssima madrugada do dia 20/11/2025.
Nenhum comentário:
Postar um comentário