quinta-feira, 20 de novembro de 2025

HIPONATREMIA

 
Tenho um amigo que, fez uma descrição interessantíssima de como enxergava a Vida e o ato de morrer. Para ele, a vida seria como um caminho cercado que leva o gado ao matadouro, que iria se afunilando quanto mais se andasse. No início, as cercas estão tão distantes que ninguém se preocupa com a existência delas. À medida que passam os anos, a cerca vai se aproximando, se aproximando, de tal forma que, quando nos damos conta, não há mais como escapar do abate.
 
Acho que esse é um sentimento que nos acompanha em boa parte da vida. Sabemos que morreremos um dia, mas as “cercas” estão tão distantes que é como se nem existissem. É o que eu chamaria de “falsa imortalidade”.
 
Um dia, entretanto, um evento ou descoberta inesperada acontece e a imortalidade ilusória desaparece para sempre, momento em que os ajustes das expectativas se iniciam. E é assim, com a inexorabilidade da perda próxima de minha mulher, eu estou.
 
A descoberta da doença incurável de minha mulher em março de 2023 me fez desejar que pudéssemos (eu e ela) estar vivos até 2034, ano em que nossas netas mais novas completarão quinze anos.
 
Infelizmente, em virtude da doença incurável, as primeiras estatísiticas consultadas indicavam que viveria até 2027, no máximo. Mas só isso? Novo ajuste.
 
Recentemente, devido à confusão mental provocada por baixa de sódio no sangue, foi internada duas vezes para sua reposição controlada, só possível em hospital. Hipóteses foram aventadas sobre quem seria o culpado disso. Medicamentos, claro!
 
Ajustes, supressões e trocas foram realizadas, mas novo episódio de hiponatremia (esse é o nome) aconteceu. Ora, se os culpados não são apenas os medicamentos, quem seria o vilão? Um hormônio que atua na suprarrenal.
 
Ah, bom, então basta um tratamento oncológico para manter as coisas em seus lugares!
 
Entrei em contato com a oncologista que sempre a tendeu e tomei um murro na cara: não haverá mais tratamento oncológico, apenas cuidados paliativos. Mas, doutora, qual é a expectativa de vida então dessa menina a quem amo tanto?
 
Desde a descoberta da doença (câncer de fígado com metástase). Ela teria uma sobrevida de apenas 21 meses. E ela já tem uma sobrevida de 30 meses. Nada a fazer a não ser a aplicação contínua de morfina e antipsicótico. Puta que pariu!
 
Aí surgiu um novo médico que trabalhou em CTI durante dez anos e, depois de examiná-la e aos exames de imagem e de sangue mais recentes realizados, disse que não é o câncer o motivo da confusão mental, de uma provável infecção no quadril, no local da metástase tratada com radioterapia. Sugestão: nova internação, novos exames, novos antibióticos e nova esperança de melhora da consciência – mas não da sobrevida. Será internada hoje.
 
Mas a enfermeira que a atende domiciliarmente, depois de pressionada por mim, disse que provavelmente a mulher a quem amei nos últimos cinquenta e cinco anos não viverá até o final de dezembro.
 
Agora, o último ajuste das expectativas é que ela não sofra. Pelo menos não tanto quanto estou sofrendo por saber, como cantou o Beto Guedes, “que não vou te tocar além da lembrança”.

Escrito em uma tristíssima madrugada do dia 20/11/2025.

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