Seis
meses depois de se aposentar, ele já estava inquieto pela total inatividade
em que vivia. Por isso, quando o cunhado fez o convite para que o ajudasse a organizar o
setor comercial da pequena construtora que lutava para fazer crescer, aceitou de bom grado. Fez apenas uma exigência: poder fazer o próprio horário de trabalho - e isso incluiria poder chegar mais tarde, só para evitar o trânsito maluco da hora do rush. Resolveu também ir de metrô, só
para não ficar estressado com os motoboys que ficam barbarizando entre os
carros. Aceitas essas condições, logo estabeleceu-se uma rotina prazerosa de
trabalho para ele. Pelo menos, até aquele dia...
Assim que o metrô abre as portas, o aposentado
entra no segundo vagão, escolhe o lugar onde sempre gosta de sentar, tira os
óculos do bolso, abre o livro na página onde havia parado e mergulha na
leitura, indiferente às pessoas ao redor. Tem os cabelos quase totalmente
grisalhos, está ligeiramente obeso e apresenta a “barriga de chope”’ que todos
os amigos de mesma faixa etária possuem. Veste-se informalmente com calça
jeans, camisa polo e sapatênis, que são suas roupas prediletas.
Mesmo que não tenha nada a esconder e ainda
que nunca ande com muito dinheiro no bolso, naquele dia sente-se observado. É
uma sensação que já teve em outras situações, em outros lugares e que nunca
soube explicar como isso acontece. Mas o incômodo de sentir-se vigiado é real, o que
o faz tirar os olhos da leitura e olhar à sua volta. E lá está o motivo, bem à
sua frente.
Sentada em um banco oposto ao seu,
encontra-se uma mulher de meia idade, gordota, cabelos descuidados e começando
a embranquecer, e o olhar de quem não é exatamente um modelo de normalidade.
Parece já tê-la visto antes, mas volta à leitura do livro, lembrando-se do
conselho do filho mais velho: -“o segredo
é evitar contato visual com bêbado e gente doida, pois esse pessoal é muito pegajoso”.
Esboça um sorriso enquanto se lembra de sua
juventude. Na época da faculdade, quando esperava o ônibus para voltar para casa
depois das aulas, muitas vezes foi abordado por pessoas que pediam dinheiro
exibindo nas mãos uma carteira profissional ensebada ou algum outro documento
amarrotado, frequentemente embriagadas e com sinais nítidos de ter dormido em
alguma calçada. Achava estranha a atração que exercia sobre essas pessoas - até
mesmo quando havia mais gente no ponto de ônibus. Talvez fosse pelo fato de
sempre olhar as pessoas com alguma curiosidade.
Lembrou-se de uma abordagem que foi
particularmente divertida, quando um sujeito magro e alto aproximou-se e pediu
cinquenta centavos, explicando com toda dignidade: -“não vou mentir não, eu quero é para a cachaça”. Como só tinha mesmo
o dinheiro da passagem, não teve como atender ao pedido do cachaceiro, ainda
que o achasse merecedor, só pela sinceridade demonstrada. Estava nesse devaneio
enquanto tentava achar o ponto do livro onde tinha parado a leitura, quando
ouviu a pergunta:
-
Aconteceu alguma coisa, algum problema com você?
Olhou na direção de onde tinha partido a voz.
Era a mulher sentada à sua frente, olhando fixamente para ele, com uma
expressão que lhe pareceu misturar preocupação e censura. Tentou cortar o
contato visual, mas foi impedido por outra pergunta:
-
Porque você não veio ontem?
- Eu
não entendi o que a senhora disse. O barulho...
- Eu
perguntei se aconteceu alguma coisa com você, pois não veio ontem.
-
Desculpe-me, mas a senhora deve estar me confundindo com outra pessoa, pois nem
a conheço.
Demonstrando impaciência, a mulher eleva a
voz.
- É
claro que você me conhece! E não o estou confundindo com ninguém!
- A senhora
deve estar enganada. Sem querer ofender, nunca a vi mais gorda!
- Não
estou preocupada se o senhor me acha gorda ou magra, nova ou velha, mas eu o
conheço muito bem!
Um diálogo surreal assim não podia estar
acontecendo, pensou o aposentado. Tentou suavizar as palavras, até para que os
demais passageiros parassem de olhar para ele, com risinhos e sorrisos
disfarçados.
- Peço desculpas se a ofendi. O que eu quis
dizer e estou enfatizando é que não a conheço ou, se já fomos apresentados
alguma vez, infelizmente não consigo me lembrar quando nem onde.
- Você me conhece aqui mesmo do metrô. Todo
dia, neste horário, você embarca na segunda estação depois da minha, escolhe
sempre o assento defronte ao meu, tira os óculos do bolso, abre o livro e
começa a ler. Está sempre vestido de calça jeans, camisa de malha com gola polo
e calça sapatênis. Marrom. Como vê, eu sei tudo sobre você. Ah, e desce na
estação antes da minha.
Era uma situação estranhíssima e
potencialmente fora de controle. Até mesmo pela falsa intimidade da forma de
tratamento que ela empregava. Estaria ele sendo objeto de uma paquera enrustida
e silenciosa de uma velhota feia e gorda? Ficou tentado a pensar que em vez de
“objeto”, o certo seria considerar-se “vítima”, mas recusou a avaliação
preconceituosa. Estava imaginando como poderia acabar com aquele circo constrangedor e grotesco, quando a
mulher atacou de novo, com a voz um pouco mais alterada:
- Quando eu percebi que você tinha um
comportamento metódico e organizado, sempre repetindo os mesmos gestos, eu
fiquei feliz. Aliás, mais que feliz, fiquei aliviada, me identifiquei com seus
gestos. Antes de você aparecer, eu passava o tempo contando os bancos e os
rebites do vagão. Você neutralizou essa minha fissura, essa ânsia. Por isso é
que eu perguntei o que aconteceu, pois fiquei preocupada quando não apareceu
ontem.
Era demais! Aturar bêbados e loucos mansos
por alguns minutos em um ponto de ônibus era suportável, mas servir de terapia
para uma mulher provavelmente psicótica, portadora de TOC e atitudes
francamente desequilibradas durante todo o percurso feito diariamente no metrô,
seria mais do que estava disposto a aceitar. Aquilo precisava acabar. E de
forma definitiva.
Tentou sorrir de forma cúmplice para ela até
que o metrô parasse na próxima estação, não importando qual fosse. Quando a
porta se abriu, saiu rapidamente do vagão, sem olhar para trás, mas não sem
antes ouvir a doida gritando:
-
“Volta, você desceu na estação errada!”
Aliviado, pega um táxi e vai para casa, de
onde liga para o cunhado. Conta rapidamente o acontecido e termina a conversa,
dizendo:
- Sinto
muito, mas depois de hoje decidi parar de trabalhar definitivamente. Simplesmente
não dou mais conta nem estou a fim de aguentar coisas desse tipo. Depois a
gente se fala mais.
Interessante. Se a história é real ou não é bem a cara da cidade.
ResponderExcluir"J"
Preciso dar uma explicação: provavelmente ninguém (quem?) percebeu que este texto é o núcleo tema central do post “Metrô” publicado recentemente (e não mais disponível). Só que o texto original me incomodava, pois foi criado com a ideia de unir três cenários, momentos e personagens distintos, mas a solução encontrada desandou, ficou um lixo. Por isso, resolvi isolar a ideia original, passada dentro do metrô, das outras duas.
ExcluirA ideia do encontro inusitado surgiu do nada, sem nenhuma referência a situação conhecida. E foi meio complicado tentar desenvolvê-la, pois nunca andei de metrô em BH. Apenas pareceu-me que esse tipo de transporte teria os elementos que precisava: regularidade de horários, vários pontos de embarque e assentos eventualmente espelhados, um de frente para o outro. O defeito era a rapidez do deslocamento, que levaria à criação de diálogos enxutos e com pouco tempo para acontecer.
Quanto à reação inesperada do aposentado, essa foi baseada em mim mesmo, pois sou agora muito mais impaciente e sensível do que era (esse “sensível” ficou meio estranho, mas tudo bem). Por isso, não tenho mais saco de aturar muita coisa nem disposição para conviver com gente idiota.
Engraçado, este comentário é quase um post, de tão extenso, como se eu estivesse respondendo questões e esclarecendo dúvidas não formuladas. Obrigado pelo comentário. Quase ia me esquecendo disso. Valeu!
Esse negócio de impaciente e sensível é foda, mas não ter paciência com gente idiota (foda também). Notei que o texto tinha alguma coisa com os outros passados, no entanto a memória não ajuda muito. Sobre alterar textos não é algo que eu goste de fazer, mudar um texto é um convite pra destruí-lo, mas de vez em quando como é o caso,dá certo. Agora já pode começar a parte II.
Excluir"J"