Esta é a
compilação das três partes de um "conto" publicado em 2019 sob o título "Era só uma reunião de ex-alunos". Mesmo que vire
textão, a leitura fica mais consistente, sem descontinuidade. Lógico, para quem
se interessar em (re)ler as quatro páginas da versão integral. E, naturalmente, mais uma picaretagem jotabélica para suprir a falta de novas postagens. Olhaí.
Eu nunca quis
participar de reuniões anuais de ex-colegas. Logo depois de formado, fui
convidado para umas duas ou três, mas depois de recusar todas, desistiram de me
chamar. Para mim, tudo bem, pois sempre achei esses encontros um porre. Porque
só vai quem está bem na fita, quem acabou de ganhar isso e aquilo. Ex-colega
fodido não vai. Para quê? Para exibir suas dificuldades, seus fracassos, sua
falta de grana ou desemprego? Não mesmo! Além do mais, nunca consegui criar
vínculos sólidos de amizade com os colegas, pois, graças às muitas dependências
que peguei, estava sempre em uma sala diferente, única forma de conciliar as
matérias do semestre com as dependências que precisava concluir (acho que dá
para imaginar o tipo de aluno que fui, concordam?).
Outro assunto que
deve surgir nesses encontros são as lembranças de sacanagens com esse ou aquele
professor (ou colega). Por mais paradoxal que seja - pois gosto de contar casos
antigos - acho isso extremamente tedioso, coisa de gente saudosista. Afinal,
uma coisa é registrar fatos e casos pitorescos do passado, outra é ficar
salivando de saudade dos tempos idos. Por isso, o máximo que consigo é tentar
imaginar os papos que rolam. Foi esse o motivo de tentar reproduzir o
"lado negro" de uma dessas reuniões, quando alguém propõe que se
contem casos de fracassos, medos, insucessos e fragilidades. Sinceramente,
duvido que isso possa acontecer em um encontro de "doutores". Mesmo
assim...
A reunião anual da
turma de ex-colegas transcorria normalmente, com seu desfile previsível de egos
anabolizados, relatos de viagens internacionais, carrões e sucesso
profissional. Todos exibiam um pedantismo inexistente nos tempos de faculdade.
Como tinham se formado há muito tempo, o numero de presentes diminuía a cada
ano. Em certo momento, um deles fez uma proposta para tornar a reunião mais
divertida.
- Que tal
se cada um contasse uma história profissional que gostaria de ver reescrita, de
nunca ter acontecido?
Olhar-se no
espelho e admitir as próprias falhas e fracassos perante aquele grupo tão
esnobe causou algum desconforto na maioria, com alguém logo reclamando:
- Eu não tenho
nenhuma história desse tipo para contar. E se tivesse não contaria!
- Deixa de
ser viado, conta logos os podres do passado!
- Já disse
que não tenho! E já que esta reunião vai ficar esse "vale de
lágrimas", vou aproveitar e me mandar mais cedo, pois tenho hoje um
compromisso inadiável.
Abraços,
cumprimentos e juras de "ano que vem estaremos aqui novamente"
liberaram a saída do fujão, discretamente acompanhado por mais dois. E o
silêncio instalou-se no meio do grupo.
- Quem
começa?
- Já que a
sugestão foi sua, pode começar.
- Conta aí,
Fred!
- Bom, vocês sabem que eu fui o pior aluno da nossa turma, não é?
- O pior eu
não sei, mas o mais escrotão, sim!
- Então...
Eu tinha pouco tempo de formado quando me mandaram para uma obra no interior. A
sorte é que por ser um contrato grande, havia mais engenheiros.
Assim, se o bicho pegasse pro meu lado, eu tinha a quem recorrer. Um dia, um
dos encarregados me procurou para saber o que fazer em determinado assunto da
obra. Escutei o que ele me disse, não entendi merda nenhuma, mas dei nele o
maior esporro: -"Se você, puta velha de construção que é, ainda não sabe
como fazer, não sou eu que vou te ensinar"! Virei as costas e saí
rapidamente dali. Me dei bem, não?
- O coitado
do encarregado deve ter xingado umas dez gerações de sua família!
- Ah, ah,
ah! Depois disso, ele passava longe de mim.
- Grande
filho da puta, isso sim! Quem é o próximo agora?
- Bom, eu fui um aluno relapso e medíocre, graças à minha imaturidade,
preguiça e falta de responsabilidade. Como vocês se lembram, na nossa época não
havia estágio obrigatório. Por isso, quando consegui meu primeiro e único
estágio eu já estava no quarto ano. Mas eu não sabia literalmente nada de nada!
A empresa enviou-me para uma obra em cidade da região metropolitana. No
primeiro dia, depois andar a pé feito um condenado para chegar ao canteiro de
obra, apresentei-me ao engenheiro, um sujeito recém-formado e com cara de
poucos amigos. Disse-me que estava de saída para resolver algum pepino e que eu
poderia ficar por ali, olhar os projetos, andar pela obra, etc. E que os
serviços eram interrompidos às 17h30. Mas já passava das 14h00 quando consegui
chegar até aquele fim de mundo.
Sem saber o que fazer, petrificado pelo medo de alguém me pedir uma
orientação para algum problema técnico, fiquei paralisado sem fazer nada dentro
daquele barracãozinho feito de tábuas, até o horário de saída dos operários.
Pedi ao motorista do ônibus que transportava a peãozada uma carona até a
portaria da empresa. Esqueci-me de dizer que a obra resumia-se à construção de
algumas casas dentro da área da empresa, em um local distante das instalações
industriais. Depois de ser deixado na portaria, descobri que só conseguiria
pegar um ônibus de volta para casa lá pelas 19h00. Fiquei ali, sozinho na beira
da rodovia, vendo a noite chegar, puto da vida, desesperado para voltar à
civilização.
- Só isso?
- Calma, pô, me deixe molhar a garganta, pois o pior vem agora. Esse
estágio teve a duração de apenas um mês, pois talvez de saco cheio com minha
total inutilidade, avisou-me que iria me colocar à disposição de seu gerente.
- Mas você não fazia nada mesmo?
- Nada! O ônibus que eu pegava só saía da rodoviária às 12h30, demorava uma hora para
chegar ao ponto onde eu tinha de descer. Depois, andava uns três quilômetros a pé em
terreno acidentado, tipo trilha. Chegava pouco antes das três e saía às cinco e
meia. Além disso, ficava apavorado de exibir minha ignorância absoluta.
Lembro-me de um dia ter ido (por sugestão do engenheiro!) olhar o revestimento
de azulejo que estava sendo executado em uma das casas. Coloquei o capacete
branco (que identificava a "alta hierarquia da obra") e saí. Entrei
na tal casa em silêncio e fiquei fingindo que "analisava" o
prumo da parede, como se entendesse alguma merda. O pedreiro ficou me olhando
meio ressabiado, talvez esperando alguma reclamação ou orientação. Hoje eu
penso que deve ter-se assustado com meu olhar vidrado, pois eu estava quase
catatônico. E sempre que me lembro disso, sinto a maior vergonha.
- Rapaz, nunca imaginei que você era tão boçal assim!
- Pra você ver! E já que malhou meu infinito cagaço, agora é sua vez.
- Eu sou
uma fraude!
- Fraudador
você sempre aparentou ser, mas, fraude, nunca imaginei. Você usa peruca?
- Porra,
lógico que não!
- Já sei!
Você usa prótese no pau!
- Caralho,
também não, idiota! Querem ou não ouvir minha história?
- Vai, faz
mais uma lavação de roupa velha...
- Bom, como
todos os que já falaram até agora, eu também fui um aluno medíocre. Eu queria
ser calculista, mas não consegui estágio nessa área.
- Graças a
Deus! Já pensou construir um prédio calculado por você? Eu não passaria nem
perto!
- Se ficar
me gozando eu paro de contar essa merda! Continuando: também não arranjei
estágio em obra grande. Assim, depois de formado, eu cagava de medo de me
contratarem para tocar uma obra, qualquer obra. Porque uma coisa é ser
estagiário burro, outra coisa é ser engenheiro toupeira. Por isso mesmo, eu
xerocava tudo o que aparecia pela frente. Mas tudo mesmo, até catálogos de
equipamentos estrangeiros. E foi assim que eu acabei por entrar na área
comercial, pois ninguém nunca quis me contratar para tocar obra ou para ser
calculista.
- Só um
aparte... Pessoal, vocês estão ouvindo memórias de alguém que esteve na
pré-história da Lavajato.
- Claro que
não, pois só trabalhei em empresa de merda, só em gatinha. Bem que eu gostaria
de ter trabalhado em uma daquelas grandonas! Mas, voltando ao assunto
principal, eu tinha muita vergonha de demonstrar minha ignorância,
principalmente por ela ser real. Então, eu tentava emular tudo o que os colegas
falavam ou faziam, tentava aprender por osmose o que eu nunca consegui
realmente saber. Tudo o que eu fazia era repetir uma “receita de bolo” criada
por quem entendia do que estava falando. Lembrando o Djavan, o que eu fazia
eram tentativas de “aprender japonês em Braille”. E o pior é que os diversos
chefes aceitavam, talvez por sentirem pena de mim – ou até eu cometer algum
erro grosseiro. Aí a regra do pé na bunda era aplicada. E foi assim até que eu
conseguisse um empreguinho público, onde a mediocridade é aceita sem muito
problema. Hoje, olhando para trás e vendo que eu poderia ter feito e não fiz, o
que poderia ter sido e não fui, acabo entrando em depressão, acabo sentindo
vergonha de mim. Essa deve ser a explicação de quase ter virado alcoólatra. Eu,
infelizmente, sempre fui uma fraude.
- Pessoal,
acho que deveríamos parar com esses depoimentos, pois está todo mundo agora com
cara de luto. Essa não foi definitivamente uma boa ideia.
- Eu também
gostaria de fazer meu depoimento, só para encerrar o assunto. Aliás, nem é
depoimento, é um comentário sobre esta reunião.
- OK, manda
lá.
- Vocês
ainda não se deram conta de que estamos todos mortos? Vocês realmente
acreditaram que um engenheiro padrão assumiria publicamente suas falhas e erros
sem problemas? Nós estamos fisica e mentalmente mortos!
- Isso é
besteira, você só bebeu mais que os outros!
- Engano
seu! Você, Tonico, morreu de acidente um ano depois da formatura. Você,
Wandick, morreu de infarto uns cinco anos depois.Você, Toninho, morreu de
câncer há uns vinte anos. Já você, Luís - um aluno brilhante - suicidou-se. O
Kênio tomou um tiro na cara. E você, Fred “Boca de Égua”, também morreu
infartado. Vocês estão mortos! Só serviram para materializar meus pesadelos
recorrentes, para eu expiar minha culpa.
Nesse momento,
acordei assustado e sentei-me na cama, A boca estava seca, os lábios pareciam
estar colados e a noite ainda demoraria muito a acabar. Mas sabia que não
conseguiria dormir novamente.
- Bom, vocês sabem que eu fui o pior aluno da nossa turma, não é?
texto assustador
ResponderExcluirum velhinho sendo assombrado pelas memorias de antigos colegas defuntos
"Coincidentemente, em menos de um mês fui transferido para outro setor. "
o novo setor foi melhor que o anterior?
* melhor pra vc e sua carreira, digo.
ExcluirVocê não perguntou mas vou responder. As histórias são reais, acontecidas com pessoas diferentes. Os nomes e os motivos da morte dos colegas também são reais. E a ideia de "um velhinho sendo assombrado" por fantasmas foi inspirada no "Um conto de Natal", de Charles Dickens.
Excluirblogson Scrooge !
ExcluirAntes de mais nada, obrigado pela citação no novo post. Quanto à perguntas, a resposta é "temporariamente melhor, pois fui trabalhar com um cara que ficou meu fã, mas essa transferência me descolou da engenharia, passei a ser uma espécie de subgerente, mas cara pouco depois mudou-se para São Paulo. Se quer saber o resumo, eu odiei cada dia dos onze anos que trabalhei nessa empresa, pois descobri que empresa pública, a caretice das empresas publicas, de seus funcionários mega burocráticos nunca foi a minha praia, mas eu tinha família para sustentar (e muitos sapos para engolir). Já escrevi alguma coisa sobre isso, mas é muito dolorido. Hoje, talvez pelo tempo já passado, esqueci muita coisa. Ainda bem.
Excluirlembro de ler alguma coisa no passado
Excluiracho melhor vc esquecer mesmo e só lembrar da parte boa