Depois de ter contado alguns casos sobre os
cinco irmãos de minha mãe, fiquei meio travado e sem inspiração para escrever
sobre as mulheres da família. Aliás, só me dei conta disso depois de publicar o
post sobre meu tio mais novo. Há vários motivos e explicações para isso, mas
talvez o principal seja o fato de ter poucas coisas a dizer sobre elas e que
sejam ao mesmo tempo divertidas, curiosas ou reveladoras de suas
personalidades, sem resvalar para o grosseiro e indelicado. Depois disso,
consegui "entregar" os posts sobre minha mãe e três de suas irmãs.
Foi difícil e acho que ficaram bem fraquinhos. Faltava a tia mais nova, que
estou pagando agora. Como já disse que esses posts são apenas
"para cumprir tabela", vamos tentar avançar.
A caçula das mulheres, tia Marisa, nasceu em 15/12/1935. Provavelmente casou-se
com uns vinte e poucos anos, talvez antes de Tia Dalva. Essa pode ser uma das
explicações de nunca ter trabalhado fora, ao contrário de Tia Dalva e Tia
Aidê. Essa é apenas uma suposição, pelas pouquíssimas lembranças que tenho
dessa época,
O que sei é que antes de eu entrar para o grupo escolar, me obrigava a deitar
após o almoço, coisa que sempre me deixava puto. Para me manter na cama,
deitava também e eu acabava pegando no sono. Era brava, independente e, creio,
bem geniosa. Esse temperamento de gato do mato talvez tenha influenciado sua
vida de casada, que imagino não ter sido "aquela brastemp".
Casou-se com o Jorge (Giorgio),
quinze anos mais velho que ela e irmão mais novo de Tio Tristano, marido de Tia
Ci. Essa diferença de idade e o fato de Tia Marisa já ser sua conhecida há
muito tempo me faz pensar que o Jorge era extremamente tímido, apesar do bom
humor e do riso alto. Era engenheiro-arquiteto e foi o responsável remoto por
eu ter cursado engenharia civil.
Aliás, esse é quase um conto do vigário,
pois, até onde sei, a única obra que fez ou projetou foi a ampliação do hotel
que a mãe possuía no centro de BH. Mas eu achava que o papel do engenheiro é
projetar casas, o que é um equívoco total. Mesmo assim, sempre disse que iria
virar engenheiro como ele. E na hora da escolha, deixei-me levar pelo desejo de
infância. "Ocevê" (sotaque
mineiro) que merda!
Quando ainda namorava minha tia, às vezes chamava minha mãe ou Tia Aidê para ir
junto com eles dar um passeio de carro (o controle de Dona Leta devia ser
brabo). Nessas ocasiões, eu e meu irmão íamos também. Para mim esses
passeios noturnos eram tudo de bom, pois sempre nos levava para ver a fonte
luminosa da Praça Raul Soares. Eu ficava embevecido olhando a constante mudança
de cores e ele dizia que cada hora jorrava um suco diferente: groselha,
morango, etc. E o coitado do Zezim acreditava
em tudo e até pedia para descer do carro e beber um pouco (menino pobre e
idiota é uma tristeza!).
Após a contemplação da fonte, levava-nos a uma sorveteria próxima e nos
comprava um eskibon. Nessa época o
sorvete vinha embrulhado em papel manteiga ou coisa parecida e acondicionado em
uma caixinha de papelão ou cartolina. Invariavelmente eu deixava cair na roupa,
mas nem ligava. Se alguém se interessar em ver como era isso, está aí a imagem, tirada do excelente blog "Caríssimas Catrevagens".
Na volta para casa depois dessas
"emoções", o sono batia e eu chegava dormindo. Entendeu agora por que
eu sempre disse que seria engenheiro? Tudo por conta do filho da puta de um
sorvete e de uma fonte de onde jorrava quissuco!
Depois do casamento, Tia Marisa dividiu com a
sogra e a cunhada o segundo andar do casarão onde já vivia a família de Tia Ci (sua
irmã mais velha, que ocupava o primeiro andar). Provavelmente ficaram no antigo
quarto de solteiro do Jorge, agora equipado com cama de casal. Esse arranjo não
durou muito tempo, pois deve ter prevalecido a máxima de que "boi preto reconhece boi preto", ou
seja, a autoritária Dona Clara encontrou uma pedreira igual na pessoa da nora.
Para mim, isso ficou definitivamente claro quando minha tia ganhou da sogra uma
geladeira vermelha. Só fiquei sabendo que Tia Marisa deve ter dado um piti ou
feito “o” barraco e se recusou a receber e abrir o presente, pois não queria
nem gostava de geladeira vermelha. E tinha raiva de quem gostava.
E o Jorge ali, coitado, marisco entre a rocha e o mar. Não demorou muito para
que se mudassem para um apartamento amplo em uma parte boa da área central de
BH, bem em frente à faculdade de direito da UFMG. Talvez os dois filhos tenham
nascido já no novo endereço. Só sei que moraram muito tempo lá, uns dez anos
talvez. Essa estimativa está relacionada às minhas idas frequentes a esse
apartamento, para ler
histórias em quadrinhos.
Meu primo mais velho, na época com uns onze, doze anos, tinha carta branca dos
pais para comprar quantas revistas quisesse, o que realmente fazia. Depois de
lê-las, trocava imediatamente por outras na mesma banca, na proporção de duas
lidas por uma nova. Com isso, não tenho dúvida de que era o melhor cliente do
proprietário. Por conta dessa fartura, da minha infantilidade congênita e da
minha falta absoluta de responsabilidade (eu tinha acabado de entrar na
faculdade!), eu ia para lá e ficávamos lendo os gibis a tarde toda.
Que ninguém pense que só existiam revistinhas infantis. Claro que existiam,
pois ele colecionava várias. Uma delas era a revista da Mônica que havia sido lançada há pouco tempo (as primeiras
histórias tinham um enredo menos repetitivo e menos óbvio que hoje). Mas meu
primo era quase um connoisseur de
quadrinhos e comprava álbuns fantásticos de capa dura, com reedições primorosas
de HQ das décadas de 1930 e 1940, desenhadas pelos autores originais: O
Fantasma (Ray
Moore), O
Príncipe Valente (Hal
Foster), Flash
Gordon (Alex
Raymond) e outros menos votados. Lia também tudo dos personagens do Stan Lee,
as reedições das primeiras histórias do Popeye feitas
pelo Segar, etc.. Era um mundo revistas a encarar e não me lembro do motivo de
ter acabado essa mamata. Só sei que fui me afastando aos poucos daquela
quadrinhoteca.
Quando esse primo atingiu a maioridade, comprou um ultraleve e saiu voando por
aí. Segundo me contou, muitas vezes decolava da beira da lagoa, em frente à
casa da família, em Lagoa Santa. Dito assim parece tranquilo, mas a
distância é mínima, qualquer vacilada faria com que enfiasse o chifre na água.
Depois, apaixonou-se sucessivamente por paraquedismo, paraglinder (ou
parapente) e asa delta. Com essa, quase morreu.
Estávamos nos arrumando para ir à missa de sétimo dia do Osíris, marido de Tia
Dalva, quando uma notícia extraordinária na TV informou a queda de duas asas
delta na serra de Moeda e deu o nome dos pilotos. Um tinha morrido na hora.
Quem ouviu a notícia foi minha mulher, que repetiu para mim o nome do
sobrevivente, perguntando se não seria meu primo. Eu nem sabia ainda que ele
voava com asa delta. Por isso, ligamos para a emissora e confirmamos o nome.
Era mesmo meu primo.
Fomos para a igreja e encontramos Tia Marisa, que acenou para nós toda
alegrinha. Minha mulher falou para eu lhe perguntar se estava sabendo do
acidente. Truquei na hora, pois não sou nada solidário com ninguém, ao
contrário de minha amada. Sem problema. Levantou-se, chamou Tia Marisa para
fora da igreja e deu-lhe a notícia. Minha tia não sabia de nada e pediu para
que minha mulher fosse com ela ao hospital.
Chegaram lá e encontraram um bando de amigos
e colegas de meu primo, dentre eles sua esposa (a segunda), que nem tinham se tocado
da necessidade de informar os parentes próximos. Quando meu primo saiu do
hospital, minha tia deu uma festa para comemorar. Da família, só eu e minha
mulher fomos convidados. Todo o resto era a gangue que tinha estado com ele no
hospital.
Quando Tio Tristano morreu e estava sendo velado, sentei-me ao lado do Jorge, que me cumprimentou
meio sem jeito, pois havia anos que não nos falávamos. Comentei que o tinha
visto na televisão, falando de moedas antigas. Sabia que era filatelista, mas
numismata era novidade. Riu meio sem jeito e contou-me que tinha como hobby uma
lojinha com um amigo, e que tinha dado ao filho mais novo uma moeda da Roma
antiga, mas tinha quase certeza que era falsa, apesar de muito bonita. E
ficamos ali conversando sobre esse assunto um bom tempo, praticamente
esquecidos do caixão que estava à nossa frente.
Um dia fiquei sabendo que Tia Marisa e ele
tinham se separado, apesar de continuarem morando no mesmo apartamento, em um
prédio construído por um sobrinho no terreno do casarão onde tinham começado a
vida e os desencontros de casados (prova de que o inferno pode ser aqui
mesmo). Os dois filhos seguiram o padrão dos pais, pois casaram-se, tiveram
filhos, desentenderam-se e se separaram.
Depois da morte do Jorge, minha mãe ou uma de minhas tias comentou
escandalizada que o filho mais novo de Tia Marisa tirou-a do apartamento em que
vivia e colocou-a em um quarto no pardieiro em que se transformou o hotel
fundado por Dona Clara, sua avó. Creio que isso fez parte da negociação entre
os dois filhos de Tia Ci e os dois de Tia Marisa, quatro primos-irmãos, durante
ou após a partilha de bens deixados pela italiana. O filho mais novo de Tia Marisa
teria comprado do irmão e primos o hotel (ou o que restou dele) e a casa de
Lagoa Santa, onde mora atualmente.
Todos os anos, no dia do meu aniversário, Tia
Marisa me liga para dar parabéns, não falha nunca. Eu sempre finjo surpresa e
ela sempre pergunta quantos anos estou fazendo. Diz também que não se esquece de
ligar porque gosta muito de mim. Este ano não foi diferente. Apenas pediu-me
para ir visitá-la no hotel, "pois fica lá o dia todo". Fique
tranquila, Tia Marisa, eu irei, pode acreditar nisso.
10/07/2016