segunda-feira, 13 de outubro de 2025

MAIS PALAVREADO – LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Quando li o conto a seguir, eu tive a sensação que o autor  que eu não conhecia  usava droga, tão delirante é o texto. Depois de descobrir que o Luis Fernando Veríssimo é gaúcho, eu tive certeza. Porque chimarrão é uma coisa horrível, uma verdadeira droga.

Brincadeiras à parte, esse texto me transformou em fã total do Veríssimo. Não conheço outro autor que faça textos de humor com tanto nonsense como meu homenageado da semana. A palavra para ele é “Gênio”. Olhaí:


Contam que Pantufo, Rei da Cizânia, Imperador das Angulares (a Pequena e a Grande), do Alto e Baixo Fender e de todas as Rixas, tinha uma coleção de aves que piavam. Era a maior coleção de aves que piavam do mundo conhecido. E provavelmente do desconhecido também, se bem que deste se sabia pouco. Um dia chegaram a Nova Velha, capital da Cizânia (a Velha Velha fora destruída por um paroxismo), dois viajantes, Metatarso de Castro e Palpos de Aranha. Os dois se dirigiram ao palácio real e pediram uma audiência com o rei.
- De que se trata? – quis saber o custódio real.
- Sabemos que Sua Excrescência tem a maior coleção de aves que piam do mundo – disse Metatarso.
- É verdade – disse o custódio, olhando os forasteiros de balaio. – Todas as aves que piam do mundo estão na coleção do nosso rei.
- Todas não – plicou Palpos.
- Como não? – Replicou o custódio.
- Sabemos de aves raras que piam como nenhuma outra que não estão na coleção de Sua Indecência.
- E onde estão essas aves? – Triplicou o custódio.
- Só diremos para Sua Demência em pessoa.
Os dois foram levados à presença de Pantufo, que reclinava sobre um almoxarife, abanado por dezessete lupanares enquanto uma lêndea seminua coçava o seu estrôncio. A sala do trono era toda decorada de alvíssaras e rocamboles silvestres.
- Sim? – disse o Rei da Cizânia, mastigando uma véspera e cuspindo os cedilhas na mão de um limiar.
- Trazemos notícias de aves que piam como nenhuma outra – disse Metatarso, fazendo um salaminho.
- Aves de que Vossa Mumificiência jamais ouviu falar – completou Palpos, com um arrabal até o chão.
- Impossível – disse o rei, com suco de véspera correndo pela pauta e o jargão real. – Eu tenho todas as aves que piam do mundo.
- Vossa Ardência conhece a xerox emplumada?
- Xerox emplumada?
- É uma ave que nós descobrimos.
- E ela pia? – trucou o rei.
- Copia – retrucou Metatarso.
- Como é que eu não conheço essa ave? – disse o rei, olhando com sódio para Teflon, o caçador real. – Onde vocês a encontraram?
- Num lugar que só nós conhecemos, Vossa Carência. Na margem oposta de
um dos sete mares do vosso reino.
- Qual dos mares? O Mita, o More, o Racas, o Selhesa, o Fim ou o Condes Ferraz?
- Um desses – disse Palpos.
- Mmmm. Já vi tudo – disse Pantufo, coçando as bigornas. – Vocês querem alguma coisa em troca da informação. O quê? Digam que será seu.
- Bem, Vossa Displicência – disse Palpos -, somos viajantes solitários. Muita falta nos faz a companhia feminina, principalmente em noites de torresmo e barracas…
- Ah, quereis catimbas – disse o rei. – Pois escolham as que quiserem do meu catimbeiro.
- Preferimos escolher entre as suas filhas, Vossa Insuficiência.
O rei esbravejou chamando os viajantes de tudo, desde arrebóis até filhos de uma turbina, mas acabou concordando. Mandou chamar as filhas para que os viajantes escolhessem. Metatarso ficou com Ampola e Palpos com Lentilha, as mais encarnadas de todas.
- Agora digam onde estão essas aves que piam como nenhuma outra.
- Bem – disse Metatarso -, vossas filhas tem hábitos caros, Vossa Decadência.
Como conseguiremos mantê-las felizes, comprar picuinhas, aleivosias…
- Está bem – interrompeu o rei. – Vocês terão uma renda vitalícia de um milhão de dolos por mês. Terei de aumentar os impostos, mas o povo compreenderá.
Agora, vamos às aves!
No dia seguinte, partiu a armada real, dez bulhufas escanhoadas e uma bulhufa-apitânia, entre gritos dos seus comanches:
- Arrebitar o vetusto!
- Suspender o bilboquê de açafrão e o lume da alcatra!
- Pinicar a espátula e dobrar o macambúzio!
Durante a viagem, Pantufo não parava de pedir mais informações sobre as aves que encontrariam.
- Há a “voiyeur de nuit” – disse Metatarso.
- E ela pia? – torquiu o rei.
- Espia – retorquiu Metatarso.
- Há a piorra azul – disse Palpos.
- E ela pia?
- Rodopia.
- E a clínica do banhado.
- Ela pia?
- Terapia.
- Não podemos esquecer o marrecão larápio.
- Ele pia?
- Surrupia.
- E as cócegas selvagens…
- Elas piam?
- Arrepiam.
A armada real levou dois anos para atravessar seis mares, com Metatarso e Palpos seu milhão de dolos por mês e entregando-se, todas as noites, a longas lengas e intermináveis charnecas com Ampola e Lentilha. Finalmente chegaram à margem oposta do Mar Condes Ferraz e desceram à terra. Mas não encontraram aves que piavam como nenhuma outra.
- Onde estão as aves? – Quis saber Pantufo.
- Já sei o que houve, Vossa Dissidência – disse Palpos. – Esta não é a margem oposta.
- Claro – disse Metatarso. – A margem oposta fica do outro lado.
E lá se foi, de novo, a armada real.
- Arrematar as polpas de antanho!
- Acinturar a sirigaita maior!
Contam que a armada real está navegando até hoje, pois a margem oposta sempre muda, misteriosamente, de lado. Apesar dos gritos do Rei Pantufo:
- Bando de conúbios!
- Caramanchões de uma pipa!
- Arras cuneiformes!

E a todas estas o povo pagando impostos.

02/07/2014


domingo, 12 de outubro de 2025

PROFUNDAMENTE - MANOEL BANDEIRA

Embora goste muito de poesia, devo confessar minha imensa ignorância sobre o assunto. Por exemplo, quase nada sei (mas é nada mesmo) sobre Manoel Bandeira. Apesar disso, a reverência hoje é para ele. E poema escolhido é “Profundamente”.

Foi só quando comecei a ler “Baú de Ossos”, de Pedro Nava, é que tomei conhecimento dessa poesia, que serve como preâmbulo, como mote para esse incrível livro. Como o assunto “memória” mexe muito comigo, bastou ler para virar fã eterno dos dois escritores. E se o Manoel Bandeira tivesse escrito apenas esse poema, já teria direito de entrar em qualquer antologia que se fizesse. Olha só que beleza:


Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
 Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

09/07/2014

FELIZ DIA DAS CRIANÇAS!

Feliz Dia das Crianças!
 
Dia das crianças tímidas, superprotegidas, invejosas, inseguras, neuróticas, depressivas, cruéis, vítimas de bullying, analfabetas, pobres, famintas, deficientes, amputadas, com doença terminal, abandonadas, espancadas, ladras, viciadas, abusadas sexualmente e suicidas. E a todas as outras.
 
Que a vida lhe seja leve. E que se não tiverem muitos motivos para se alegrar, que pelo menos tenham poucos para se entristecer. Como a criança da foto. 



sábado, 11 de outubro de 2025

VOCÊ É UM TASMANÍACO?


Já faz algum tempo que eu gosto de comparar o comportamento dos animais selvagens com o dos seres humanos, pois sempre encontro alguma semelhança e um motivo a mais para refletir. O último a chamar minha atenção é o diabo da tasmânia, depois ler uma reportagem sobre ele em um número antigo da Veja.

Segundo a revista, esse animalzinho corre o risco de se extinguir nos próximos trinta anos, e o motivo disso é uma espécie de câncer transmitido através de mordidas ou contato físico com um animal infectado. E isso é facilitado por conta de uma característica muito especial: esse animal é extremamente agressivo e vive às turras com outros de sua espécie. Aliás, essa agressividade serviu de inspiração para o personagem “Taz”, surgido em desenhos mais antigos do Pernalonga.

Pois bem, bastou eu ler a reportagem para fazer associação de seu comportamento belicoso e agressivo com comportamentos semelhantes que observei muitas vezes ao longo da vida.  Tudo isso porque tenho constatado que em muitas famílias, em muitos relacionamentos, existe uma inexplicável agressividade entre pessoas que se amam. Fico perplexo (e triste) de ver como essa agressividade pode contaminar o dia-a-dia de uma família, de um casal, de um grupo de amigos.

Não é preciso agressão física para machucar ou magoar alguém. As “mordidas” são apenas palavras  ásperas, contundentes ou depreciativas. Podem ser recriminações, às vezes ditas em tom elevado de voz, ou podem ser palavras que diminuem, menosprezam ou desqualificam a quem estão sendo dirigidas. E a pergunta que surge é: POR QUÊ?

Se você convive diária ou frequentemente com outras pessoas, por que ceder ao impulso de sempre se exaltar, xingar ou – pior – menosprezar e desqualificar a quem você ama? E uma das piores agressões é ridicularizar características físicas. Chamar alguém de barrigudo, narigudo e coisas do gênero pode machucar quem as escuta. E isso não é piada, é puro bullying. Se a pessoa tem baixa autoestima, aí é ainda pior. Agressões verbais constantes, ironias e desprezo ou zombaria dirigidas às pessoas que amamos, de quem gostamos, são um tiro no nosso próprio pé.

Recentemente descobri uma palavra que poderia explicar pelo menos em parte esse comportamento agressivo. E o nome é DISTIMIA. Segundo o site do Dr. Dráuzio Varela,

“Distimia é um tipo de depressão crônica, de moderada intensidade. Diferentemente da depressão que se instala de repente, a distimia não tem essa marca brusca de ruptura. O mau humor é constante. Os portadores do transtorno são pessoas de difícil relacionamento, com baixa autoestima e elevado senso de autocrítica. Estão sempre irritados, reclamando de tudo e só enxergam o lado negativo das coisas. Na maior parte das vezes, tudo fica por conta de sua personalidade e temperamento complicado.”

Como não sou psicólogo nem antropólogo, devo evitar a seara alheia. Mas fica a perplexidade de ver como uma família, como um casal pode, aos poucos, perder a amizade, a cumplicidade e a alegria de estar juntos, por causa de um comportamento que tem na base uma agressividade sem propósito, quase uma mania, por ser viciosa e recorrente.

É isso, aí está o link com o diabo da tasmânia: essa agressividade contra as pessoas que amamos pode acabar extinguindo o amor e o respeito mútuos. E sua repetição viciada pode tornar-se uma mania, ou melhor, uma “tasmania”.

Por isso, se eu pudesse, eu perguntaria (com um pouco de ironia e um pouco de preocupação) a alguém que venha a ler este texto:

VOCÊ É UM TASMANÍACO?

Se a resposta for “sim” ou “talvez”, para o próprio bem de quem assim respondeu, eu iria sugerir que mudasse, que buscasse ajuda especializada, que fizesse qualquer coisa, menos permanecer como está, porque o tempo faz acumular a decepção, o rancor e a desesperança, tal como os sedimentos trazidos pelas chuvas e que se depositam no fundo de uma lagoa. E esses sedimentos se acumulam, ficam mais espessos, até ficar impossíveis de remover. Ou, se quiserem, imaginem-se tentando colar um vidro quebrado: pode até colar, mas a superfície nunca mais terá o brilho e a uniformidade de antes.

Este texto era para ser mais leve e bem humorado, mas acabou ficando meio azedo. Paciência. Até porque minha preocupação é real, apesar do trocadilhinho. Por isso, eu pergunto novamente a um improvável leitor: você é um tasmaníaco? Se for, cuide-se, mas, principalmente, cuide daqueles a quem ama.

04/07/2014

PARLENDA (PROMESSA É DÍVIDA)

 
Eu tinha dito aqui que tentaria encontrar e publicar no blog uns versos infantis que acreditava terem sido escritos por um psicopata ou por um candidato a serial killer. Por estar sem saco (metaforicamente falando) e sem joelho para subir escada (situação real) só para tentar achar aqui em casa o livro infantil da década de 1950 onde li esses versos, acabei pesquisando “Tangolomango” na internet. Descobri umas cinco versões diferentes (algumas bem ridículas) e escolhi a que mais identifiquei com o livrinho infantil que meu irmão ganhou há quase setenta anos.
 
Descobri também que Tangolomango é uma brincadeira folclórica, uma “parlenda”. Segundo o pai dos muito burros, as parlendas são versos ritmados e de fácil memorização, em sua maioria com temáticas infantis. Derivada do verbo ‘parlare’, que significa ‘conversar’”.
 
Podem até ser, mas para mim o livreto que meu irmão ganhou quando tinha dez, onze anos deve ter sido escrito por alguém da Família Adams para ensinar subtração para a Wandinha. Olha que sinistro:
 
TANGOLOMANGO

Eram nove irmãs numa casa, foram todas fazer biscoito. 
Deu tangolomango numa delas e das nove ficaram oito.

Essas oito, meu bem, que ficaram, foram juntas jogar confete. 
Deu tangolomango numa delas e das oito ficaram sete.

Essas sete, meu bem, que ficaram, foram juntas aprender francês. 
Deu tangolomango numa delas e das sete ficaram seis.

Essas seis, meu bem, que ficaram, foram juntas comprar um brinco. 
Deu tangolomango numa delas e das seis ficaram cinco.

Essas cinco, meu bem, que ficaram, foram todas fazer teatro. 
Deu tangolomango numa delas e das cinco ficaram quatro.

Essas quatro, meu bem, que ficaram, foram juntas jogar xadrez. 
Deu tangolomango numa delas e das quatro ficaram três.

Essas três, meu bem, que ficaram, foram juntas passear nas ruas, 
Deu tangolomango numa delas e das três ficaram duas.

Essas duas, meu bem, que ficaram, viajaram para Inhaúma. 
Deu tangolomango numa delas e das duas ficou só uma.

Essa uma, meu bem, que ficou, resolveu fazer coisa alguma. 
Deu o tangolomango nela, e não sobrou nenhuma.
 
   

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

SEXTOU!

 


E AGORA, JOSÉ?

Eu tive um chefe que caminhava no limite da normalidade. Era quase um doido manso, de tão excêntrico. Mas era brilhante, genial e engraçadíssimo. Via os problemas com uma clareza absoluta, mas emitia suas opiniões do jeito mais caricato ou destemperado possível. Eu ria até mandar parar com seu estilo ensandecido e anárquico.

Um dia comentei que ele deveria expor suas críticas e análises certeiras de forma menos enlouquecida, pois mesmo que tivesse uma espécie de visão de raio X que lhe permitia ver com clareza o que todos demoravam a enxergar, as pessoas riam de seu comportamento aloprado em vez de prestar atenção ao que dizia. Para reforçar o conselho, disse-lhe que agindo assim ele estaria lembrando São João Batista, "a voz que clama no deserto".

-"João Batista, é?", foi a reação que teve. Mas deve ter gostado da comparação, pois um dia à porta de minha sala disse que estava "joãobatistando" alguma coisa. Essa era uma de suas excentricidades, tinha a mania de transformar substantivos e nomes próprios em verbos.

Não faz muito tempo, lembrando-me desse caso, comecei a achar que, sim, que alguns nomes (nem todos) têm realmente jeitão de verbo. E aí comecei a viajar.

Por exemplo, Orfeu dá uma frase do tipo “ele orfeu a casa toda” (pretérito perfeito do indicativo, 3ª pessoa do singular). Romeu poderia dar uma frase assim: “ele romeu toda a comida que estava na geladeira” (mesmo tempo de verbo de “Orfeu”).

E aí a gente continua: Osmar – “só se ele osmar o forno” (Infinitivo da melhor qualidade). Ludmila dá duas possibilidades: “ela ludmila isso muito bem” (presente do indicativo, 3ª pessoa do singular) ou “ludmila aquelas cartas para mim” (imperativo, 2ª pessoa do singular).

E a viagem é longa: Maria – futuro do pretérito do indicativo (ela maria...); Silmara – pretérito mais-que-perfeito do indicativo; Caio – presente do indicativo, 1ª pessoa do singular.

Mas é com os nomes terminados em “ando” que a coisa fica legal: Armando e Rolando são autênticos gerúndios dos verbos Armar e Rolar. Mas há também alguns bem mais engraçados, justamente pelo non sense: “Fernando”, por exemplo. Dá vontade de perguntar “o que você está fernando aí”? Gerúndio do verbo “Fernar”, lógico.

Deve ser por esse tipo de associações alopradas que eu e meu ex-chefe descompensado combinávamos tão bem.

Resumindo: tem gente que gosta muito de um “papo cabeça”. Às vezes, eu até “tropeço” em um também. Mas, pelos exemplos acima, nota-se que eu sou chegado mesmo é em assuntos sem pé nem cabeça.

08/07/2014

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

CERTO DIA, NO VALE DOS REIS...

 (Estou esguichando ansiedade. Isso faz minha cabeça pirar)





MANUAL DO PROPRIETÁRIO

 
Repetindo o que disse (escrevi) recentemente, ninguém nunca me alertou que viver exigiria resiliência, resignação e estoicismo, que a vida seria como uma senoide, uma montanha russa que alterna alegria e tristeza, felicidade e sofrimento de forma tão dramática. Eu não me preparei para suportar isso! E, podem acreditar, este desabafo não é força de expressão. Talvez seja consequência de uma educação muito protetora que me fez crescer desfibrado, frágil, inseguro. Como poderia ter evitado isso? Já vai saber.
 
Com exceção de produtos primários ou vendidos a granel, tais como pedra britada, legumes, verduras, tábuas, cordas, pregos, que estejam à temperatura ambiente ou não embalados, tudo vem com instruções sobre como consumir e onde armazenar, como instalar ou como montar – medicamentos, televisores, móveis, celulares, etc.
 
Algumas instruções são verdadeiras bíblias, de tão grandes,  calhamaços apresentados na forma de Manual do Proprietário e que acompanham os automóveis zero-quilômetro, por exemplo. Para ser sincero, quase nunca leio nada – ou apenas o basicão (falha minha!).
 
Mas se existe algo que precisaria ser entregue com manual de instruções detalhadíssimo são os bebês recém-nascidos. E nem me refiro às orientações sobre alimentação, vacinas, funcionamento do intestino. O que realmente faz falta é um manual de Vida, ensinando os pais sobre o que não fazer, ou como orientá-los diante de uma perda, ou frustração, por exemplo. Um manual que ensinasse os pais a não descarregar suas frustrações nem projetar nos pimpolhos os sonhos e desejos não alcançados. Um manual que nos orientasse em cada etapa da existência, uma espécie de terapeuta impresso.
 
Meu pai e seus quatro irmãos estudaram medicina no início do século XX para atender a um desejo da minha avó (meu pai, pelo menos, fez isso). Quantos exerceram essa profissão? Nenhum! Imagino a decepção vivida por minha avó. A sorte (ou azar) é que também tinham direito de exercer a profissão de farmacêutico (naquela época podia).
 
Mas, à falta de um manual de Vida, todos ou quase todos morreram na mais profunda depressão, talvez semeada por uma educação repressora na infância. Não tenho certeza de nada disso, são apenas especulações que fiz juntando cacos do que ouvi, tal como um paleontólogo montando pedaços de um fóssil incompleto.
 
O que sei é que talvez por ter tido seus sonhos destroçados e ser incapaz de reagir adequadamente a isso, meu pai tentou me proteger da dureza de uma vida semelhante à dele, ao não me exigir nem cobrar dedicação e empenho nos estudos.
 
Na época do vestibular, por motivo alheio à natural disputa por uma vaga em curso concorrido, eu estudei feito um cavalo – diariamente, obsessivamente e até nos fins de semana à noite (eu queria reatar o namoro com a paixão da minha vida, que disse desejar me ver “careca”, situação provocada pelos trotes sofridos pelos “calouros burros”). Mas ao me ver debruçado nas apostilas, talvez em uma noite de sábado, meu pai me disse para não estudar tanto, que eu precisava descansar, coisas assim.
 
E é com esse tipo de comportamento, baseado na própria experiência, nas frustrações ou sonhos inatingidos que muitos pais educam seus filhos. Se pudessem consultar o manual talvez não agissem assim – e os filhos não cresceriam fragilizados, incapazes ou com imensa dificuldade para pegar o touro da vida pelos chifres.
 
E então, que acha da ideia desse manual do que não fazer? Talvez o ChatGPT até pudesse redigi-lo!
 
Ou não?

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

UM DIA ISSO ACONTECERÁ

 
SONETO DE SEPARAÇÃO
 
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
 
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
 
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
 
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
(Vinicius de Moraes – 1938)

O CRIME (DE PLÁGIO) PERFEITO - RUBEM BRAGA

 
Depois do surgimento da IA – das IAs, na verdade – ficou fácil posar de escritor, músico ou desenhista. Só que não! Ter uma ideia e pedir a uma delas para gerar um texto, um desenho ou criar uma melodia não faz de ninguém o autor. Você pode até ter a veleidade e a vaidade de apresentar-se como se fosse o autor da “maravilha”, mas intimamente sabe que não é.
 
Quando trabalhava em construtora, fiquei sabendo de um caso explícito de “mau-caratismo”. Um colega fez um elaborado estudo sobre algum assunto, para a diretoria da empresa. Esse engenheiro era muito inteligente, culto e escrevia bem pra caramba, além de ter ótima caligrafia. Não sei se chegou a apresentar o relatório. O que sei é que outro engenheiro, um picareta ignorante e mesquinho, pegou esse trabalho, reescreveu tudo com a própria letra (não havia computadores) e o apresentou ao diretor.
 
Quando ficamos sabendo disso, um colega sarcástico disse que o texto tinha sido “passado a sujo”, porque estava até com erros de português e a letra do plagiador era muito mais feia que a do autor original – e comentou: “como ele é semianalfabeto, nem passar a limpo direito ele conseguiu”. Nós (aí incluído o diretor) rimos muito desse caso, mas, curiosamente, não houve punição para o mau-caráter.
 
Lembrei-me desse caso ao ler uma divertida crônica do Rubem Braga em que ele confessa ter plagiado descaradamente o Carlos Drummond de Andrade. Espero que gostem. De uma coisa quem acessa este blog desconjuntado pode ter certeza: as tranqueiras que escrevo e publico aqui sairam de minha mente desmiolada, são apenas minhas, não têm plágio nem IA (a baixa qualidade já denuncia). Lêaí.
 
Aconteceu em São Paulo, por volta de 1933, ou 4. Eu fazia crônicas diárias no Diário de São Paulo e além disso era encarregado de reportagens e serviços de redação; ainda tinha uns bicos por fora. Fundou-se naquela ocasião um semanário humorístico. O Interventor, que depois haveria de se chamar O Governador. Seu dono era Laio Martins, excelente homem de cabelos brancos e sorriso claro, boêmio e muito amigo. Pediu-me colaboração; o que podia pagar era muito pouco, mas eu não queria faltar ao amigo. Escrevi algumas crônicas assinadas. Depois comecei a falhar muito, e como Laio reclamasse inventei um pretexto para não escrever. Seu jornal era excessivamente político (perrepista, se bem me lembro) e eu não queria tomar partido, na política paulista, mesmo porque tinha muitos amigos antiperrepistas. Laio não se conformou: “Então ponha um pseudônimo!”
Prometi de pedra e cal, mas não cumpri. Laio reclamou novamente, me deu prazo certo para lhe entregar a crônica. No dia marcado estava atarefadíssimo, e quando veio o contínuo buscar a crônica para O Interventor eu cocei a cabeça – e tive uma ideia. Acabara de ler uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Minas Gerais, órgão oficial de Minas, com um pseudônimo – algo assim como Antônio João ou João Antônio, ou Manuel Antônio, não me lembro mais; ponhamos Antônio João. Botei papel na máquina, copiei a crônica rapidamente e lasquei o mesmo pseudônimo.
Dias depois recebi o dinheiro da colaboração, juntamente com o pedido urgente de outra crônica e um recado entusiasmado de Laio: a primeira estava esplêndida!
Daí para a frente encarreguei um menino da portaria, que estava aprendendo a escrever à máquina, de bater a crônica de Drummond para mim; eu apenas revia, para substituir ou riscar alguma referência a qualquer coisa de Minas. Pregada a mentira e praticado o crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes senti remorso, eu o afogava em chope no bar do alemão ao lado, e o pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale do Antônio João.
O remorso não era, na verdade, muito: Carlos não sabia de nada, e o que eu fazia não era propriamente um plágio, porque nem usava matéria assinada por ele, nem punha o meu nome em trabalho dele. E Laio Martins sorria feliz, comentando com meu colega de redação: “O Rubem não quer assinar, mas que importa? Seu estilo é inconfundível!”
O estilo era inconfundível e o chope era bem tirado; mas você pode ter certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas vezes eu o bebi à sua saúde, ou melhor, à saúde do Antônio João, isto é, à nossa. Dos vinte e cinco mil-réis que Laio me pagava, eu dava cinco para o menino que batia à máquina; era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes graças ao seu trabalho. Laio, o menino, os leitores e eu – e você em Minas não era infeliz. Não creio que possa haver um crime mais perfeito.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

ADÃO E EVA ERAM ASSIM

 
Li no livro “O caldeirão azul” do físico muito foda Marcelo Gleiser que os primeiros organismos seriam criaturas do tipo “anaeróbica (que vive sem oxigênio) e termofílica (que gosta de ambientes quentes), uma criatura unicelular simples, que viveu onde a água do mar encontrava o magma que jorrava do interior da Terra, em ventas hidrotermais".
 
Imagino que a Terra nesse momento era a expressão máxima do caos, com tsunamis gigantescos com ondas de 500 metros (a imaginação é minha, tã legal?), vulcões vomitando lava para todo lado e a todo momento, terremotos com escala Richter maior que 15 (nem sei se isso é possível), furacões, radiação cósmica, queda de meteoros gigantescos, uma zona, enfim.
 
Quando eu ainda tinha inspiração e piração, criei uma série de dezénhos (os desenhos do Zé) sobre esses proto-organismos. Um dos que mais gosto é este, onde tentei mostrar dois "protos" sendo jogados para lá e para cá num oceano primitivo:



NO CONFESSIONÁRIO

Eu sou católico, mas vivo às voltas com minha falta de fé. Talvez por isso, eu sempre brinque e ironize questões relacionadas à fé (ou à sua falta). Um dos nossos filhos é declaradamente ateu e a gente vive brincando com isso, debochando de tudo, especialmente dos fundamentalistas de qualquer religião. E, acreditem, minha fé é insignificante. 

Eu sempre digo (sou chegado em frases de efeito ou provocativas, mesmo que não totalmente corretas) que minha fé é como a chama de uma vela: basta qualquer ventinho para ela bruxulear. E por esse caminho estreito segue a minha vida.

Alguém poderia perguntar por que insisto nesse caminho. Bom, preciso também esclarecer minha posição nesse lance de religião, com outra frase, bem mais antiga e sem humor, uma ideia que me ocorreu há muito tempo: Eu preciso mais de Deus do que Ele de mim

Mas não sou fundamentalista, descreio da maior parte dos textos bíblicos (especialmente o Antigo Testamento), acho o Apocalipse um porre (ou melhor, São João devia estar de porre ou drogado quando o escreveu). Enfim, sou um católico iconoclasta. 

Apenas acho (ainda) que a religião faz bem para mim, acalma um pouco meus fantasmas interiores (o que não me impede de tentar fazer humor com isso). 

13/07/2014

Atualização para 2025: Hoje eu tenho saudade do tempo em que minha fé bruxuleava, pois creio que a chama se apagou definitivamente, ou quase isso.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

MUNDO PERDIDO

Desde criança me interesso por animais extintos. A culpa talvez seja de um álbum de figurinhas que eu e meu irmão ganhamos quando eu tinha uns dez anos. Não era colecionável: todos os cromos vinham junto, bastava destacar e colar. Uma salada de dinossauros, mamíferos, peixes e anfíbios que me deixou fascinado.
Lembro-me de ter visto ali figurinhas com a representação provável de um mastodonte, seu primo mamute, do ancestral dos cavalos, um “brontossauro” (era assim que se chamava), dimetrodon, celacanto, boi almiscarado e tantos outros. Não sei que fim levou o álbum — talvez tenha ficado com meu irmão ou virado banquete de cupins.

Então, ler sobre fósseis e curtir suas reproduções artísticas virou minha praia. Recentemente, assistindo no youtube a um vídeo sobre animais anteriores aos dinossauros, fiquei fascinado ao ver o crânio de um “ET” pré-histórico, bizarro demais para passar em branco. Foi ele que inspirou este post. Antes de continuar, dê uma olhada na “lindeza”:

 

Essa simpatia viveu no período Permiano, há 260 milhões de anos. Conhecido nas rodas boêmias pelo nome de Estemmenosuchus mirabilis, pesava uns 500 kg e talvez fosse algo entre os répteis e os mamíferos.Quando vi seu crânio, com protuberâncias ósseas para todos os lados, já pensei logo em um canivete suíço, no cinto de inutilidades do Batman ou em uma esponja de aço de 1.001 utilidades (hoje só mil, já que ninguém mais as usa na ponta das antenas da TV para melhorar a imagem).

E aí surgiu a pergunta inevitável: como nasceu esse troço? Para o bem de sua mamãe, espero que esse bonitão tenha saído de um ovo. Porque, se não, depois do parto alguém de outra espécie poderia dizer:
- "Lá vem a arregaçada"

PITAIAS DE SABEDORIA

 
Já disse isso uma vez, mas vou repetir: acho um absurdo que o Todopoderoso tenha deixado os frutos da árvore do conhecimento ao alcance da mão do proto-casal. Que Ele pretendia com isso? Pai onisciente, onipresente, que ele ganharia deixando os filhos usar drogas? Sim, porque o fruto mastigado não era uma maçã – a menos que fosse uma versão vívlica da maçã envenenada da Branca de Neve. Imagino que nem era uma árvore, mas um cacto com um fruto alucinógeno, antepassado do peyote que o Aldous Huxley e o Carlos Castañeda consumiram para abrir as portas da percepção.
 
Mas tenho pra mim que essa pitaia vívlica só servia para dar barato, sem nenhuma outra função útil. E o pior é que a certeza da finitude seria seu efeito colateral!
 
Estava matutando com meus borbotões sobre isso, sobre a sacanagem de não nascermos com manual de instruções, tendo de aprender a nos virar sozinhos para ganhar o primeiro bilhão.
 
A única orientação que Adão recebeu foi “comerás o pão com o suor do teu rosto”. Mas, e quem não tem vocação para padeiro ou pizzaiolo nem gosto para por as mãos na massa? Só mesmo investindo na bolsa (não a da madame desavisada, preocupada em mandar mensagem pelo whatsapp, mas bolsa de valores).
 
Enfim, eu acho essa história muito mal contada e mal escrita, principalmente por confundir o leitor. Como aceitar que o Deus do Antigo Testamento, sempre pronto a passar a régua por qualquer motivo, seja o mesmo Deus amoroso do Novo Testamento? Para mim, o primeiro redator da Vívlia (um tal de Moche) redigiu sua versão preconceituosa e primitiva do que ouviu do Todopoderoso. Só pode!

domingo, 5 de outubro de 2025

LÍGIA - TOM JOBIM E CHICO BUARQUE

Por sugestão de uma pessoa muito querida, minha reverência hoje está relacionada à música; mais precisamente, aos autores de letras de música.
E vou dar uma homenageada dupla, postando uma curiosidade. Os envolvidos são os geniais Tom Jobim e Chico Buarque. A música é “Ligia”.
Originalmente, letra e música eram apenas do Tom Jobim. A pedido do maestro, o Chico deu uma guaribada.
Outra curiosidade: Em um daqueles shows de fim de ano do Roberto “Chapinha” Carlos na TV, o Tom, de sacanagem, começa a cantar a letra original. O Roberto - que ainda usava roupa escura - se surpreende e diz para cantar de verdade, ou coisa assim. As duas letras são lindas e a música é mais linda ainda.  É isso.

Lígia

Lígia
(primeira versão, sem parceria do Chico)

(a definitiva, em parceria com Chico Buarque)



Eu nunca sonhei com você

Eu nunca sonhei com você
Nunca fui ao cinema

Nunca fui ao cinema
Não gosto de samba

Não gosto de samba,
Não vou a Ipanema

Não vou a Ipanema
Não gosto de chuva

Não gosto de chuva
Nem gosto de sol

Não gosto de sol



Eu nunca te telefonei

E quando eu lhe telefonei
Para que, se eu sabia?

Desliguei, foi engano
Eu jamais tentei

O seu nome eu não sei
E jamais ousaria

Esqueci no piano
As bobagens de amor

As bobagens de amor
Que aprendi com você

Que eu iria dizer
Não, Lígia, Lígia

Não, Lígia, Lígia



Sair com você de mãos dadas

Eu nunca quis tê-la ao meu lado
Na tarde serena

Num fim de semana
Um chope gelado

Um chope gelado
Num bar de Ipanema

Em Copacabana
Andar pela praia até o Leblon

Andar pela praia até o Leblon



Eu nunca me apaixonei

E quando eu me apaixonei
Eu jamais poderia

Não passou de ilusão
Casar com você

O seu nome rasguei
Fatalmente eu iria

Fiz um samba canção
Sofrer tanta dor

Das mentiras de amor
Pra no fim te perder

Que aprendi com você
Lígia, Lígia.

É Lígia, Lígia



Você se aproxima de mim

E quando você me envolver
Com esses modos estranhos

Nos seus braços serenos
E eu digo que sim

Eu vou me render
Mas seus olhos castanhos

Mas seus olhos morenos
Me metem mais medo

Me metem mais medo
Que um raio de sol

Que um raio de sol
Lígia, Lígia.

Lígia, Lígia

            
11/06/2014

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Quando li o conto a seguir, eu tive a sensação que o autor  –  que eu não conhecia  –  usava droga, tão delirante é o texto. Depois de des...