Ao
entrar na adolescência já tinha lido toda a obra infanto-juvenil de Monteiro
Lobato. Por isso, quando meu pai trouxe da casa de sua irmã um exemplar antigo
e muito manuseado de "Cidades Mortas", não tive dúvida, encarei com
prazer a leitura do livro. Era bem diferente das histórias mirabolantes do
Sítio do Picapau Amarelo, mas foi pura diversão.
Esta é
uma das explicações por resolver postar mais um conto desse livro aqui no blog
(o primeiro saiu em agosto de 2014). Mas não há só prazer nem acaso nesta
escolha. O principal motivo é a semelhança que encontrei entre uma cidadezinha
fictícia do início do século XX com o velho Blogson. "Como assim?",
direis (refiro-me ao robô do Google). E eu vos direi que graças às mudanças recentes
promovidas pelo Google e/ou à alteração do nome de meu perfil (mudei para
"Jotabê”), as anêmicas visualizações que aconteciam até recentemente
praticamente se extinguiram.
Fiquei
pensando se isso não seria decorrente da transformação do blog Marreta em
"fantasma". Sim, porque tirando os meus familiares que acessaram o
blog em seu início (e só mesmo no início), os leitores do Blogson chegaram até
ele graças à sua inclusão na lista de blogs seguidos pelo Marreta. Em outras
palavras, o Marretão sempre foi meu outdoor. Como ele não aparece mais nas
pesquisas do Google, só mesmo alguns iniciados têm acesso aos links de blogs
que ele acompanha.
Mas a
verdade é que ninguém (eu, pelo menos, sou assim) escreve para ficar inédito. E
se além disso, for somada a mediocridade da produção recente do Blogson (nunca
deixou de ser medíocre), aí é que o caldo entorna. Refletindo sobre esse
quadro, lembrei-me do conto do Monteiro Lobato. Relendo-o percebi que a
cidadezinha decadente descrita por ele é a cara deste blog. Como eu poderia
deixar de usar um retrato tão realista assim? Eis o "retrato":
A cidadezinha onde moro lembra soldado que
fraqueasse na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho
se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de
poeira erguida além. Desviou-se dela a civilização. O telégrafo não a põe à
fala com o resto do mundo, nem as estradas de ferro se lembram de uni-la à rede
por intermédio de humilde ramalzinho.
O mundo esqueceu Oblivion, que já foi rica e
lépida, como os homens esquecem a atriz famosa logo que se lhe desbota a mocidade.
E sua vida de vovó entrevada, sem netos, sem esperança, é humilde e quieta como
a do urupê escondido no sombrio dos grotões.
Trazem-lhe os jornais o rumor do mundo, e
Oblivion comenta-o com discreto parecer. Mas como os jornais vêm apenas para
meia dúzia de pessoas, formam estas a aristocracia mental da cidade. São “Os
Que Sabem”. Lembra o primado dos Dez de Veneza, esta sabedoria dos Seis de
Oblivion.
Atraídos pelas terras novas, de feracidade
sedutora, abandonaram-na seus filhos; só permaneceram os de vontade anemiada,
débeis, faquirianos. “Mesmeiros”, que todos os dias fazem as mesmas coisas,
dormem o mesmo sono, sonham os mesmos sonhos, comem as mesmas comidas, comentam
os mesmos assuntos, esperam o mesmo correio, gabam a passada prosperidade, lamuriam
do presente e pitam – pitam longos cigarrões de palha, matadores do tempo.
Entre as originalidades de Oblivion uma pede
narrativa: o como da sua educação literária.
Promovem-se três livros venerandos,
encardidos pelo uso, com as capas sujas, consteladas de pingos de vela – lidos
e relidos que foram em longos serões familiares por sucessivas gerações. São
eles: La mare d’Auteuil, de Paulo de Kock, para o uso dos conhecedores do
francês; uns volumes truncados do Rocambole, para enlevo das imaginações
femininas; e Ilha maldita, de Bernardo Guimarães, para deleite dos paladares
nacionalistas. O dono primitivo seria talvez algum padre morto sem herdeiros.
Depois, à força de girarem de déu em déu, esses livros forraram-se à
propriedade individual. Quem, por exemplo, deseja ler o Rocambole diz na
rodinha da farmácia:
– Onde andará o Rocambole?
Informam-no logo, e o candidato toma-o das
mãos do detentor último, ficando desde esse momento como o seu novo
depositário. Processo sumaríssimo e inteligente.
Quando se esgotou a minha provisão de livros
e, ignorante ainda da riqueza literária da terra, deliberei decorrer ao estoque
local, dirigi-me a um dos Seis. O homem enfunou-se de legítimo orgulho ao
dar-me os informes pedidos.
– Temos obras de fôlego, poucas mas boas, e
para todos os paladares. Gênero pândego, para divertir, temos, “por exemplo”,
La mare d’Auteuil, de Paulo de Kock. Impagável!
– Obrigado. De Kock, nem a tuberculina.
– Temos o célebre Rocambole, “gênero
imaginoso”; infelizmente está incompleto; faltam uns dezessete volumes.
– Não me serve o resto.
– E temos uma obra-prima nacional, a Ilha
maldita, do “nosso” Bernardo Guimarães.
Parando aí o catálogo, era forçoso escolher.
No concerto dos nossos romancistas, onde
Alencar é o piano querido das moças e Macedo a sensaboria relambória dum
flautim piegas, Bernardo é a sanfona. Lê-lo é ir para o mato, para a roça – mas
uma roça adjetivada por menina de Sion, onde os prados são amenos, os vergéis
floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes, os píncaros altíssimos, os
sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo descreve a natureza como um cego
que ouvisse contar e reproduzisse as paisagens com os qualificativos surrados
do mau contador. Não existe nele o vinco enérgico da impressão pessoal. Vinte
vergéis que descreva são vinte perfeitas e invariáveis amenidades. Nossas
desajeitadíssimas caipiras são sempre lindas morenas cor de jambo.
Bernardo falsifica o nosso mato. Onde toda a
gente vê carrapatos, pernilongos, espinhos, Bernardo aponta doçuras, insetos
maviosos, flores olentes. Bernardo mente.
Mas como mente menos que o Paulo de Kock ou o
truculento Ponson, pai do Rocambole, escolhi-o.
Veio o livro. Volume velho como um monumento
egípcio e como ele revestido de inscrições. Cada leitor que passava ia deixando
o rastro gravado a lápis.
“Li e gostei”, dizia um, “Li e apreciei”,
afirmava certa senhorita. Inscrição quase em cuneiforme rezava “Fulano leu e
apreciou o talento do grande escritor brasileiro”. Outro versificava: “Já foi
lido – Pelo Walfrido”. Tal moça notara parcimoniosamente: “Li” e assinou. Um
amigo da ordem inversa pôs: “Li e muito gostei”.
Houve quem discordasse. “Li e não gostei”,
declarou um fulano. O patriotismo literário dum anônimo saiu a campo em prol do
autor: “Os porcos preferem milho a pérolas”, escreveu ele embaixo. Monograma
complicadíssimo subscrevia isto: “O Rocambole diverte mais”.
E assim, por quanto espaço em branco tinha o
livro, margens ou fins de capítulo, as apreciações se alastravam com levíssimas
variantes ao sóbrio “Li e gostei” inicial. Havia nomes bem antigos, de pessoas
falecidas, e nomes das meninas casadeiras da época.
Os intelectuais de Oblivion bebiam à farta
naquela veneranda fonte. Em Bernardo abeberavam-se de “estilo e boa linguagem”,
conforme afirmou um; no Rocambole truncado exercitavam os músculos da
imaginativa; e no Paulo de Kock, os eleitos, os Sumos (os que sabiam francês!)
fartavam-se da grivoiserie permitida a espíritos superiores.
Essa trindade impressa bastava à educação
literária da cidade. Feliz cidade! Se é de temer o homem que só conhece um
livro, a cidade que só conhece três é de venerar. Veneração, entretanto, que
não virá, porque o mundo desconhece totalmente a pobrezinha da Oblivion…
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