quinta-feira, 30 de março de 2017

TINHA UMA PEDRA, CAMÕES

Já falei da família de meu pai aqui nesta bagaça, mas talvez por esquecimento ou desinteresse, deixei passar dois pequenos detalhes que iluminam um pouco mais essas pessoas queridas.

Nos quatro posts que dediquei a essa família que viveu em um século só deles, mencionei o contraste – e essa é apenas minha opinião – entre a modernidade de sua educação formal, ainda no início do século XX, todos formados em faculdade, com seu comportamento arredio, tímido e introvertido de matutos nascidos no interior de Minas Gerais entre o final do século XIX e início do século XX. Daí a ideia de terem vivido no século 19,4 ou 20,3, por exemplo.

Pois bem, apesar da cultura humanista a que tiveram acesso, eram profundamente formalistas e conservadores quando se tratava de pintura e poesia. Minha tia Sinhá era uma pintora acadêmica bastante boa, qualidade que deixou de explorar quando os negócios da família foram para o brejo. Mas recusava-se a aceitar como arte a pintura moderna de Portinari, Picasso e todos que viraram pelo avesso o estilo com que se identificava. Lembro-me de tê-la ouvido contar a reação de espanto e consternação que algum intelectual que conhecia esboçou ao ouvi-la comentar de forma depreciativa (-"Deveras, Sinha?) os painéis de Portinari que estão na igrejinha da Pampulha, em BH.

Já com meu pai o problema eram as poesias modernas. Para ele, poesia tinha de ter métrica e rima. Sem isso, era prosa ou bobagem modernosa. Creio que tinha especial antipatia pelo poema “No Meio do Caminho”, de Carlos Drummond de Andrade.  Aquele negócio de “Nunca me esquecerei que no meio do caminho Tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho” era demais para ele.

Lembrei-me desses casos remexendo em coisas guardadas há mais tempo. Uma delas é um livro de sonetos de Camões, que ganhei de uma ex-nora. Como o livro tinha servido apenas para que ela fizesse algum trabalho escolar, perguntou-me se eu o queria. E aí, pimba.

Lembrando-me das rimas e métricas dos sonetos, redondilhas, e alexandrinos “d’antanho”, tão ao gosto de meu pai e de seus irmãos, resolvi encerrar este post com um soneto que achei no tal livro. Certamente teriam apreciado, pois o sujeito entendia muito do assunto.


Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Um comentário:

  1. Para mim é justamente "a bobagem mordernosa", pode parecer espantoso ou pura ironia, mas eu abomino rima.
    "J"

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