terça-feira, 25 de outubro de 2016

SOCIEDADE ANÔNIMA

SOLICITAÇÃO DE AMIZADE
Hoje, ao acessar o Facebook, surpreendi-me com a existência de uma "solicitação de amizade”. Fui ver quem era e descobri tratar-se de um ex-colega da última empresa onde trabalhei. Como ele me encontrou? Não temos amigos em comum, não nos vemos há uns sete anos, pelo menos. E nem somos amigos mesmo. Por ele ser músico semi-profissional  (fazia bicos musicais) e tocar uns quatro instrumentos, às vezes eu gostava de conversar com ele sobre música. Essa era a linha ou partitura que nos unia. Nunca fui visitá-lo nem ele a mim. Aliás, tendo tão pouca coisa em comum seria estranho que um de nós fizesse isso.

E lá estava ele com seu sorriso meio maroto, barba quase toda branca, solicitando minha amizade feicibucal. Ainda não recusei o pedido, mas provavelmente é o que acontecerá. Nada tenho contra ele, que sempre me tratou muito bem. Apenas receio que junto com a confirmação de nossa "amizade" ressurjam, revigorados, os pesadelos que ainda tenho às vezes, relacionados a essa empresa (pesadelos mesmo, eu sonho que ainda estou lá e acordo mal). Poderia escolher uma frase para dizer a ele. Talvez a da Greta Garbo (“leave me alone”) ou a do general Figueiredo (“quero que me esqueçam”). Mas acho que encontrei uma solução: não aceitarei nem excluirei a solicitação de amizade. Ficará lá, abandonada, sem resposta, mesmo que ele não tenha culpa nenhuma.


SOCIEDADE ANÔNIMA
Tive um colega que possuía uma ironia muito boa. Um dia comentou que estava pensando em abrir uma empresa para ele, uma S.A. “Sociedade anônima”?, perguntei. "Não, Sem Amolação". Lembrei-me disso hoje, depois de perceber que um blog - ou, pelo menos, o Blogson -, guarda alguma semelhança com uma Sociedade Anônima.

Vejam bem, há a figura do "controlador da empresa", que seria equivalente ao dono ou titular do blog; existe também a figura dos "grandes acionistas", que seriam os leitores que acessam o blog com mais frequência, às vezes comentam alguma coisa e até motivam a criação de algum post (mas não mandam porra nenhuma). Para completar a “sociedade", existem os "pequenos acionistas" (ou minoritários), formados pela "maioria silenciosa" (aquela que pode até ler o post, mas não comenta) e pelos leitores bissextos.

Alguém pode estar se perguntando qual a razão dessa maluquice sem graça nenhuma e eu explico. Estava relendo o livro de crônicas do Rubem Braga ("Duzentas Crônicas Escolhidas") e (re) descobrindo sutilezas e detalhes que tornam saborosíssima a leitura de seus textos. O sujeito era muito fera! E a redescoberta de hoje é a divertidíssima crônica "Eu, Lúcio de Santo Graal" (já reverenciada nesta bagaça), em que conta de seu desejo de ser um colunista social. E o trecho que mais curti reler é esse:

Absolutamente, ab-so-lu-ta-men-te não cederia aos rogos de missivistas ansiosas por me falar pessoalmente, ou sequer pelo telefone. Não, nunca. Ao palerma do Braga elas não pilhariam; só poderiam lidar com o fantástico doutor de almas, profundo conhecedor do coração epistolar feminino, irônico porém tão humano, severo porém tão meigo.
É inútil, ó belas do Brasil; no dia em que eu me instalar atrás de meu soberbo pseudônimo podeis me mandar retratos até em maiô. Pessoalmente só merecereis o meu desprezo; porque “Juan" (ou “Vic", ou “Parsival", ou “Dr. Cândido"?) só tratará com as senhoras e senhoritas através de cartas.
Pessoalmente (que terá havido com ele, com esse terrível conhecedor de mulheres? desengano ou soberbo fastio? mágoa ou tédio, Senhor?), pessoalmente as mulheres jamais o atingirão, ainda que venham lágrimas sobre a tinta azul em papel cor-de-rosa.
Sim, eu serei misterioso; magnífico e irredutível, quer me chame “Dr. Mefisto", quer me chame “Johnny", ou, o que talvez prefira, “Lúcio de Santo Graal". E então as damas ficarão exasperadas, fascinadas...
E lá atrás de seu pseudônimo fabuloso ficará escondido, mergulhado na escuridão, ferido e medroso, o pobre coração do Braga.

Como diria o Roberto Chapinha Carlos, "esse cara sou eu"! Não que eu pretendesse ser um Amaury Jr., pois jamais pensei em praticar tal overdose de futilidade. Além disso, faltam-me traquejo social e desejo de me encontrar com gente desconhecida. A razão da identificação com o texto é justamente o oposto disso: eu sou um ogro, ou, pior: ao vivo e a cores, sou um ogro hibernando.

Comentar coisas, falar besteira, inventar piadinhas e trocadilhos infames faz parte da minha porção "Lúcio de Santo Graal", mas expor-me mais ainda do que já me expus no blog é totalmente indesejável. Sociedade Anônima. O que significa que meu desejo é sempre ficar "escondido, mergulhado na escuridão", um ogro total em plena hibernação. Ou manter-me anônimo, ser apenas o “controlador de uma S.A”.


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