sábado, 6 de agosto de 2016

PROPOSTA TÉCNICA - VOLUME 2

Uma das técnicas mais sofisticadas e eficientes de manipulação de licitações de obras surgiu em São Paulo no final da década de 1970 ou início da década de 1980, aparentemente de forma inocente e bem intencionada. Era um procedimento rigorosamente legal e incontestável, mas dizem que "o diabo está nos detalhes". Daí...

Em 1980 fui admitido em uma empresa de médio a grande porte, uma "grandinha", onde passei os melhores anos de minha vida profissional. Essa construtora tinha as características de empresa familiar: um presidente extremamente sério e competente e alguns irmãos com cargos na direção empresa, que mais atrapalhavam que ajudavam, pois viviam em permanente conflito com outro diretor, esse sim, genial e competentíssimo, mas com gênio irascível e nenhuma paciência com a mediocridade de seus pares na diretoria. Talvez seja esse o segredo de sua demissão e da derrocada da empresa. Mas meu tema não são brigas de diretoria. Por isso, vamos lá.

Pouco depois de admitido, fui convocado a ajudar na elaboração de uma proposta para alguma obra em São Paulo. Essa licitação tinha três etapas de seleção de empresa: documentação, proposta técnica e proposta comercial. Esse modelo foi seguido e depois replicado pelo Brasil afora durante toda a década de 1980 e princípio da de 1990, até a promulgação em 21/06/1993 da Lei 8666, que estabeleceu “normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Até essa legislação entrar em vigor, o sistema funcionou às mil maravilhas.

Infelizmente, não sei como é hoje, pois minha saída da empresa e da área de engenharia aconteceu quase simultaneamente à aplicação dessa lei. Mas está aí o Petrolão para demonstrar que a criatividade das grandes empreiteiras continua muito eficiente.

Pois bem, voltando à formulação da proposta, logo descobri que o preço ofertado era o que menos importava. E o motivo era simples: no próprio edital de licitação já se encontrava a estimativa detalhada feita pelo órgão contratante. Qualquer empresa que quisesse participar da concorrência era obrigada a balizar seu preço dentro dos limites de mais ou menos dez por cento do valor estabelecido no edital. Imagino que o detalhe sutil e saboroso seria o fato de essa estimativa aparentemente ser alta pra kawaka. Essas condições pré-estabelecidas obrigavam a que todos os licitantes oferecessem o limite mínimo, ou seja, o preço do órgão menos dez por cento. A única forma de excluir alguém nessa fase era encontrar algum erro de conta, de soma, que elevasse o preço mínimo do concorrente em um centavo que fosse. Quando isso acontecia, a empresa ficava em último lugar e dava atestado de burrice e incompetência de sua equipe.

Fazendo um pequeno retrospecto, quando esse critério era adotado, aparentemente a obra já nascia com preço superestimado, pois ninguém nunca reclamou disso. Quem preparava essas estimativas? Boa pergunta...

Então, se a maioria das empresas participantes passasse ilesa pelo exame detalhado de sua documentação e atestados técnicos e se todo mundo empatasse na Proposta Comercial, ofertando o preço mínimo permitido pelo edital, como desempatar a licitação e escolher a empresa vencedora? Elementar, meu caro estagiário: só mesmo com a ajuda da Proposta Técnica. E que ajuda!

Voltando ao meu primeiro contato com essa situação (e o primeiro contato a gente nunca esquece), fui incumbido de ajudar a detalhar algum método executivo. Mas eu era grosso e inexperiente nesse assunto, pois, além de ter sido um aluno relapso do curso de engenharia, nunca tinha trabalhado nesse tipo de serviço. Mesmo assim, comecei a escrever sobre o que não entendia. Escrevi uma página (a duras penas) e mostrei para meu chefe. Olhou rapidamente e disse que estava pouco detalhado, que precisaria escrever mais. Na prática, “encher mais linguiça”. Para ajudar, com um sorriso irônico, entregou-me um pacotaço de cópias xerox de uma proposta antiga de outra empresa.

Aquilo foi uma epifania: a tal empresa tinha detalhado cada uma das etapas construtivas previstas quase ao nível molecular. Além disso, a proposta original continha fotos para ilustrar cada método executivo, etc. Essa era a chave de uma proposta técnica vencedora: qualidade, qualidade, qualidade. Você quer saber o que eu fiz? Copicolei o texto que estava escrevendo, tendo o cuidado de mudar palavras e frases do texto base. Muita competência!

Foi nessa época que a empresa tentou entrar para o seleto clube de grandes empreiteiras que faziam obras espetaculares pelo país afora. Seguindo a trilha indicada pelas grandonas, a cada nova licitação providenciavam-se capas personalizadas onde eram impressos os dados da obra e do órgão licitante, papeis timbrados de qualidade encomendados especificamente para cada proposta, fotos em tamanho A4, desenhos e projetos executivos em profusão, folhas e mais folhas datilografadas detalhando o passo a passo da obra. Resumindo: cada proposta técnica era uma maravilha e um curso rápido de engenharia (e, claro, muita cola e muita imitação). Quase invariavelmente, só tinha um defeito: os lobistas da empresa nunca conseguiam antecipadamente "combinar com os russos". E o resultado era sempre o mesmo: ficávamos em terceiro, quarto, quinto lugar na licitação, nunca no primeiro.

E o motivo era simples e a chave da história: as propostas técnicas dos diversos concorrentes recebiam notas para cada quesito, igualzinho ao que acontece nos desfiles de escola de samba. E os quesitos eram conhecimento do problema, metodologia proposta, equipe técnica, equipamentos disponíveis, plano de suprimento, currículo dos responsáveis técnicos indicados, organização do canteiro de obras e todo tipo de exigências que acabavam virando "pegadinhas" e de julgamento totalmente subjetivo. Bastava tirar meio ponto ou até menos, para que a nota final ficasse inferior à da vencedora, que era, afinal, aquela "que tinha combinado com os russos".

Qual era a explicação para isso? A empresa em que trabalhei não tinha lobistas com o trânsito e a influência dentro dos diversos órgãos públicos que as grandes construtoras possuíam. Além disso, nunca conseguia igualar o padrão de qualidade das propostas que as maiorais foram atingindo. Ouvi dizer que uma delas, para determinada obra, levou uma maquete (!) super detalhada como parte integrante de sua proposta. Outras esmeravam-se no acabamento gráfico, com os desenhos executivos propostos impressos a cores, etc. Era uma briga desigual entre as "escolas do primeiro grupo" com as coitadinhas do "grupo de acesso". Dar notas assim ficava fácil quando alguém já sabia quem deveria ganhar essa ou aquela obra.

Só as maiores construtoras sobreviveram às sucessivas crises econômicas e à escassez de grandes obras. Só as grandes e algumas de médio porte que souberam, de alguma forma, crescer. Coincidentemente são as mesmas retidas na peneira do Petrolão. A OAS era uma empresa inexpressiva conhecida pela sacanagem que os concorrentes faziam com as letras do seu nome. Na piada, "OAS" significava Obras Arranjadas pelo Sogro, pois um dos sócios da empresa era genro de Antonio Carlos Magalhães, o Toninho Malvadeza, político baiano já falecido. A Queiroz Galvão era apenas uma empresa pernambucana boa de briga e muito competitiva, até mudar sua sede para o Rio de Janeiro.

A empresa onde trabalhei fechou as portas, o mesmo acontecendo com várias construtoras de porte equivalente, durante um dos diversos solavancos cíclicos que a economia do país sofreu. Quem conseguiu sobreviver e até crescer, deve ter descoberto o caminho da pedras.

Bem se alguém imagina tirar uma moral dessa história, eu diria que não há moral em práticas amorais. Como não tenho nenhuma pretensão de tirar alguma lição disso, deixo apenas algumas frases descosidas e sem pontos comuns, para servir de epílogo (ou epitáfio) deste post:

A espécie humana é um equívoco da Natureza
"Para farinha pouca, meu pirão primeiro"
Só punições severas e rapidamente aplicadas poderiam reduzir a corrupção (mas nunca acabariam com ela)
"Ou locupletamo-nos todos ou restaure-se a moralidade" (Sérgio Porto)
Uma guerra nuclear (ou queda de um asteroide gigante) seria uma boa ideia para acabar com a corrupção (e com toda a vida na Terra)
Não tenho mais nenhuma esperança de que algum dia o mundo fique melhor do que está


Estava neste ponto do texto, quando minha mulher me chamou para ver um vídeo do Youtube que recebeu via Whatsapp ou FacebookOuvir essa palestra (mais de uma hora) me indicou o patamar de mediocridade das coisas que escrevi para o Blogson, mas deu-me um alento de esperança, pois o tema está, de alguma forma, relacionado a este post. Talvez a Ética possa melhorar um pouco este país idiota. Quem sabe?

O último a acessar o link é mulher do padre (ou marido, vá saber). Espero que alguém goste. Vê aí
.
https://www.youtube.com/watch?v=_pTJ7feeiDI





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