quarta-feira, 1 de julho de 2015

SÉCULO DEZENOVE VÍRGULA NOVE

A família de meu pai, tal como a conheci, sempre me pareceu oriunda de um século próprio, só deles, tal a singularidade de comportamentos e características. Teriam nascido e vivido no século 19,7 ou no século 20,3. Alguma coisa desse tipo. Porque tinham traços de grande modernidade misturados com um imenso conservadorismo. Todos os irmãos que chegaram à idade adulta tinham curso universitário. Isso, na primeira metade do Século XX! 

As moças estudaram línguas, piano e violino. Os homens tinham queda pela literatura. Lembro-me de um lindo soneto, escrito a lápis em uma folha de caderno, que meu pai um dia me estendeu. Como sabia da fama literária de meus tios mais velhos, perguntei se era de um deles. Deu um sorriso misterioso. Perguntei então se era ele o autor. Sorriu mais misteriosamente ainda e pegou de volta o papel, apesar da minha insistência em copiá-lo. Infelizmente - assim como fizeram os irmãos antes dele - pouco antes de morrer, meu pai destruiu todos seus papeis pessoais.



Não sei de seus irmãos, mas meu pai nasceu em São José dos Oratórios, antigo distrito de Ponte Nova. Saiu de lá na década de 1930, creio, mas guardou sempre uma lembrança carinhosa de sua terra. De tal forma que, quando mencionei que o João Bosco, compositor nascido em Ponte Nova, havia composto uma música com o nome de “Das Dores de Oratórios”, meu pai espantou-se:
 Não é possível! Será que é mesmo a minha querida Oratórios?
Era. Dei a ele o disco que continha essa música. A bem da verdade, não era uma música para se gostar de imediato (ou algum dia). Falava de uma noiva que foi abandonada no altar, enlouquecendo a partir daí. Vestida com os restos da roupa de casamento, ficava gemendo e gritando pela cidade.

De minha avó, tenho apenas uma única lembrança. Fui uma vez visitá-la e ela estava doente, de cama. Levei para ela um pente verde, de cabo largo e arredondado (meu irmão deu um, igual, de cor vermelha, para minha avó materna). Creio que ela me pediu para penteá-la, não sei. Imagino que tenha morrido pouco tempo depois. O que me causa alguma estranheza é o fato de eu conseguir lembrar - com absoluta nitidez - do tal pente, pois devia ter uns cinco anos ou menos quando isso aconteceu.
Casa da família de meu pai

Meu pai tinha verdadeira adoração por ela e cursou medicina só para atendê-la. Apesar disso e embora fosse um ótimo médico, odiava essa profissão e toda a carga de sofrimento a ela relacionada. Para mim e para meu irmão, ela era a “vovó Vita”, em contraponto à avó materna, com quem morávamos (Dona Leta), tratada apenas de “vovó”.

Segundo as informações de minha irmã, teria nascido em 27 de outubro de 1878. Todos os meus tios (e primos!) referiam-se à minha avó apenas pelo apelido, Vita. Nada de “Mãe”, nada de “”. Só meu pai referia-se a ela como “Mamãe” ou, tomado de emoção, como “minha querida mãezinha”. Curiosamente, “Papai” era o tratamento que todos davam a meu avô.



Augusto era o seu nome. A data provável de seu nascimento é 19 de julho de 1866 (!). Foi dono de armazém em Oratórios e, segundo ironizava meu pai, era a terceira pessoa em importância no distrito, atrás apenas do padre e do delegado. Com essa “importância” toda, tinha muitos afilhados (provavelmente, muita venda fiado também). De acordo com meu pai, em uma visita a um dos afilhados nascido há pouco tempo, meu avô deparou-se com a “comadre” segurando uma mamadeira e o menino, no colo, berrando. Perguntada sobre o que estava acontecendo, disse que estava dando cachaça para o menino. Diante da reação escandalizada de meu avô (-“está louca, comadre?”), a mãe esclareceu: -“se não acostumar desde pequeno, depois não acostuma mais”. Quando nasci, meu avô já tinha morrido.

Apesar da criação humanista, meus tios tinham uma timidez e introversão enormes, percebidas até por uma criança como eu. Já adulto, comecei a pensar que a família de meu pai tinha uma grande vocação para a auto-extinção. Afinal, em uma época de famílias com prole numerosa, apenas quatro dos oito adultos se casaram. Assim mesmo, dentre os que se casaram, meu pai foi o que teve mais filhos, três, ao todo. Ou seja, minha avó, que teve dez filhos, talvez ficasse silenciosamente escandalizada por ter apenas oito netos. Mais introversão que isso é difícil. Curiosamente, essa tendência continuou a se manifestar nos netos e até nos bisnetos. Há, entretanto, alguns casos obscuros sobre filhos não reconhecidos. Um deles, se não me engano, aconteceu com tio Delvô.

Consta que um dia, muitos e muitos anos atrás, bateu à porta do laboratório farmacêutico de propriedade de meu pai e seus irmãos, uma senhora que trazia uma criança pela mão, filho provável desse tio. Essa senhora queria falar com tio Delvô. Meu pai, que a atendeu, em vez de conversar civilizadamente com a mulher, fez o contrário: bem ao seu estilo explosivo e antissocial, botou a dona pra correr (em estilo figurado, claro). Curiosamente, existe hoje em Ponte Nova uma família cujo sobrenome é “Delvaux”, a grafia exata do nome de meu tio. Seriam eles descendentes desse meu primo desconhecido?



Quando ia com minha mãe e meu irmão à casa de meus tios, tinha a sensação que eles se escondiam de nós, pois surgiam, cumprimentavam, riam e depois sumiam de novo para dentro de seus quartos. Tinham o risinho nervoso das pessoas tímidas e inseguras, olhavam como se estivessem medindo nossa aprovação. Mas eram de trato doce e muito carinhosos, exceção feita apenas para meu pai, de gênio tempestuoso e irascível. Quando queria, suas palavras cortavam silenciosa e profundamente, como se fossem lâminas de bisturi. Não sei se foi sempre assim, mas era o bicho-papão da família. E, não tenho dúvida, foi quem mais perdeu com isso.

Chamava-se Amynthas. Assim mesmo, com y e th, pois não concordava em alterar o nome que seus pais haviam dado a ele só por conta de uma reforma ortográfica ocorrida após seu nascimento. Curiosamente, embora considerasse “sagrada” a grafia original, achava muito feio o próprio nome, referindo-se ironicamente a ele na terceira pessoa: “porque o Amynthasssssss...”, sibilando fortemente o “s”, de pura sacanagem.

Tendo muitos irmãos, sempre que contava algum caso sobre eles, o fazia com indisfarçado amor. Para mim, que os via só de vez em quando, tinham uma magia e um encanto incríveis, tal o carinho e admiração com que meu pai se referia a cada um deles.

Aliás, papai nunca escondeu seus sentimentos positivos. Como tinha perdido tudo e estava sempre às voltas com agiotas, dizia-nos que não tendo nada material para nos deixar, só poderia nos deixar educação e instrução formal. Mas hoje sei que ele nos deixou muito mais do que isso: sua capacidade de demonstrar, sem nenhuma reserva, o amor incondicional que sentia pelos filhos.

Em uma época em que a maioria dos pais que conheci era distante e autoritária, ele contava histórias para nos fazer dormir (histórias absolutamente sensacionais sobre sua própria infância), beijava nossas testas e murmurava orações e bênçãos inaudíveis (quase como se fossem mantras) quando íamos sair.


Mesmo depois de casado, quando nos encontrávamos, em qualquer lugar que estivéssemos, eu me curvava para que ele me beijasse novamente a testa e me abençoasse, em retribuição a todo o carinho e amor que tinha recebido dele (hoje, eu ajo da mesma forma com meus filhos). Mas, vamos voltar à trilha original.

7 comentários:

  1. Tão bonito que não pude deixar de comentar. Excelente texto e parabéns pela família.
    "J"

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  2. Bacana demais o texto. O meu tipo predileto de textos que você publica, na verdade. Longa vida à extinção! :-D

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  3. Dois comentários positivos (que me deixaram muito feliz) em um blog que tem, no máximo, uns cinco leitores mais frequentes (ou 2,3 como gosto de dizer) é demais para mim. Por isso, farei um post agradecendo e comentando um pouco mais.
    A propósito, dias 4, 6 e 8 de julho sairão os posts que completam minha homenagem à família de meu pai.

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  4. Jotabe, aqui e o Marreta. Pura texto, cara. Pode não parecer, mas essas sagas familiares muito me agradam e até comovem. Estou na Serra Gaúcha e aqui a base da economia é a empresa familiar. Visitei umas vinícolas e em todas elas sempre ouvimos uma história de família, de valores tão em desuso no sudeste, mas ainda muito valorizados e arraigados por aqui. Abraço

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  5. Muito bom, hoje há tanta falta de sentimento, tanto distamnciamentoventre familiare....que um texto dsste deixa bem claro que regredimos..sou nostálgico e saudosista por um tempo que não vivi...obrigado!

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